ALFONSINA - Conto Sobrenatural - Ângelo Brea
ALFONSINA
Ângelo Brea
O
dia tinha sido especialmente caloroso. O mês de agosto avançava lentamente,
repleto de tardes plácidas e céus invariavelmente radiantes, sempre de um azul
luminoso e sem apenas nuvens durante dias a fio.
Tinha decidido ir até a praia, para aliviar
assim o calor. Desfrutaria da aragem marinha, sempre refrescante, e caminharia
de pés descalços pela areia molhada, ali onde o mar e a terra se beijam com
desespero.
Como
sou pessoa precavida, colocara no congelador, antes de me deitar, uma garrafa
de água, das de litro e meio. Tive a precaução de tirar uma pequena quantidade
do interior, porque ao se congelar a água poda fazer estourar a garrafa. Também
preparei, durante a manhã, algo de comer, mais com o intuito de passar o tempo
na praia, do que por ter realmente fome. Também comprei uns refrescos sem
açúcar. Coloque num tupper uns cubos de gelo, para as bebidas. E, como
não? Levei uma caneta e um caderno. Eu sem uma caneta na mão sinto-me sem alma,
como se estivesse incompleto ou se me faltasse metade de mim.
Tinha
muitas opções para escolher. Desde Santiago de Compostela há muitas praias a
uma distância de ao redor de uma hora. No Sul, a opção eram as Rias Baixas.
Podia ir à praia da Lançada ou, ali perto, a qualquer das praias de Ogrobe,
como Areia Grande, Mexilhoeira ou qualquer das pequenas praias que se encontram
na costa entre São Vicente do Mar e Ogrobe.
Também,
mais perto, estava a opção de ir a Boiro, à praia Jardim ou a Barranha, lugares
onde veraneava quando era criança, e dos quais tão gratas lembranças guardo
ainda. Outra possibilidade era ir, pela nova estrada de Noia, à praia de
Portosinho ou chegar ao areal do famoso castro Borneiro, ao que há anos tinha
dedicado um poema.
Decidi,
no entanto, ignorar todas aquelas possibilidades e viajar até à Costa da Morte,
não apenas por estar menos concorrida e, portanto, com menos tráfego, mas
também porque desfruto imenso das paisagens quase selvagens que oferece. Para
chegar ali contava com duas estradas possíveis. A primeira era seguir pelo
interior, até chegar a Santa Comba e dali ao cruzamento da Pereira, seguindo
então para Muros. A outra possibilidade seria ir pela costa, pela autovia que
se dirige a Noia e, antes de chegar, desviar-me por Vila de Cruzes em direção a
Muros, o monte Louro, Larinho, Ancoradouro, Lira e Carnota. Sim, era uma boa
opção. Decidi que iria até à praia de Lira. Havia lugar para estacionar perto
da praia, ao pé de um pinheiral onde, quando adolescente, estivera num
acampamento juvenil que organizara o meu colégio. Desde então, ficara prendado
daquela costa escarpada, cheia de montanhas graníticas que se assomam ao mar,
deixando apenas uma pequena franja de terra cultivável, onde se assentavam as
populações da zona, em aldeias dispersas ou em vilas de escassa povoação.
Um
dos monumentos salientáveis de Lira é o famoso espigueiro, ao qual, como no
latim, denominamos hórreo. Há uma antiga polémica com o também famoso
espigueiro de Carnota para saber qual é o mais comprido e o de maior capacidade
da Galiza. Eu, que não devo preferências a nenhum deles, gosto por igual dos
dois. Cada vez que vou por aquela zona, paro algum tempo para visitá-los.
Cheguei
à praia de Lira ao redor de quatro horas e meia da tarde. Desci por uma estrada
íngreme, que leva ao areal. Ao longe, podia divisar-se a cativante imagem do
monte Pindo, sagrado para os nossos antepassados, e a cujo cume ascendi com meu
filho Álex, quando apenas contava quatro anos de idade, em uma experiência
formosíssima que deu lugar a um poema que dediquei à montanha e que ainda hoje
lembro com emoção.
Por
sorte, no estacionamento havia apenas uma vaga, num cantinho, e pude estacionar
sem problema. A praia de Lira tem o encanto de contar com uma paisagem
poderosa. Vários rochedos rompem a linha costeira e, para a direita, a olhar
para o mar, alça-se a pouca distância da costa uma ilha diminuta, composta por
rochas de granito e altos penhascos. Quando a maré desce o suficiente, uma
franja de areia molhada permite aceder a ela durante umas horas.
Na
distância aparece a mole imponente do monte Pindo, cheio de lendas e de
histórias míticas. No céu completamente azul não aparecia nem uma nuvem. O Sol
caía a pique sobre as brancas areias da praia. Decidi colocar-me a um canto,
sob um para-sol. Hesitei um momento em colocá-lo ou não, mas acabou vencendo a
precaução e o medo de ficar vermelho como um caranguejo sob os potentes raios
do nosso Sol.
Coloquei
a toalha e peguei em uma pena para escrever. Sempre costumo escrever ao menos
um bocadinho cada dia, para manter o hábito. Sei que quando abandono durante
vários dias esse saudável costume é muito mais difícil retomar a escrita no
lugar onde o deixei, quer seja um poema, um relato ou, ainda pior, um romance.
Não
escrevi muito. Apenas meia página. Em vez disso dediquei-me a contemplar a
paisagem e as pessoas que passeavam ou que tomavam o sol. Gostava do rumor do
mar, dos guinchos das aves e da aragem marinha que chegava até ao meu rosto.
Estava-se
tão bem ali que decidi aguardar a que o Sol se afundasse no horizonte. Como a
nossa terra se encontra fora do seu verdadeiro fuso horário, nos meses de verão
o Sol põe-se ao redor das dez da noite, fazendo com que os entardeceres pareçam
infinitos.
Enquanto
o Sol caía, o horizonte vestiu-se de amarelos, de ocres, de rubros e laranjas.
E o Sol, quase a tocar a linha do horizonte, adquiriu um matiz laranja escuro,
muito brilhante. Nesse momento, decidi arrumar as minhas coisas e preparar-me
para regressar, com o espírito em calma, ao meu andar. Queria assistir, no
entanto, ao espetáculo de observar como o disco solar desaparecia completamente
nas águas. Isso aconteceria em apenas uns minutos.
Naquela
altura, já não ficava ninguém na praia, à exceção de mim. Dúzias de gaivotas
começaram a pousar-se na areia, como a tomar possessão de um espaço que era seu
e que, durante os meses do verão, deviam compartilhar com aqueles ruidosos
humanos…
Foi
então que aconteceu algo de extraordinário. Quase frente a mim, seguindo a
minha linha de visão, talvez apenas a uns quatro metros à minha direita,
apareceu de repente, nas águas de cor azul-cobalto, uma cabeça de mulher. Por
um momento, temi que se tratasse de uma pessoa afogada. Mas não era assim. A
mulher, que usava um vestido e não roupa de banho, o que era realmente estranho
após um bonito dia de praia, começou a caminhar lentamente em direção à praia,
saindo do mar.
Fiquei
estupefacto. Como era possível que uma pessoa surgisse das águas sem que
tivesse estado nadando ou sem que visse como entrava na água?
A
mulher já tinha meio corpo fora da água. Apenas ficava a cintura e as pernas
por aparecer. Usava um vestido longo, de cor creme, mas que não parecia da
nossa época. Talvez fosse das primeiras décadas do século XX, o que dava à cena
um aspeto soturno e algo tétrico. Quem seria aquela pessoa e qual seria a razão
pela que usaria aquele vestido do século passado? O penteado também era
estranho. Tinha a melena curta, estilo anos vinte, e o cabelo, agora molhado,
impedia-me observar qual era a sua cor real.
A
mulher chegou à orla da praia, onde a espuma e a areia fazem remoinhos
amorosos… Nesse instante, a mulher pareceu perder as forças e, deixando-se cair
ao chão, ficou de joelhos. Mas foi apenas um instante, porque o peso do torso
fez que o corpo se vencesse e caiu para adiante. Teve de colocar as duas palmas
das mãos na areia, para não golpear com o rosto no chão.
Ela
enterrou a cabeça no peito, como ocultando-a do mundo que a rodeava. Não podia
deixá-la ficar assim. Peguei na minha toalha seca, já que hoje não me tinha
banhado, e me aproximei com ela àquela mulher. Quando estive diante dela,
perguntei se precisava de ajuda. Ela, ao ouvir-me, alçou a cabeça com
dificuldade e olhou para mim com uns olhos vivos, claros, que brilhavam como
áscuas.
Repeti
a pergunta, mas ela não pareceu perceber o que eu dizia. Talvez não percebesse
a minha língua. Seria uma turista? Repeti a pergunta em espanhol e a ela
iluminou-se-lhe o rosto. Respondeu que precisava de ajuda. Disse que estava
desorientada e que não reconhecia o lugar. Dei-me de conta, pelo jeito de
falar, que falava espanhol da Argentina. Era característico o uso que fazia de
algumas formas verbais e a utilização do pronome vos em vez de usar tú
ou usted.
Como
não consegui que se erguesse, coloquei a toalha ao redor do seu torso, para que
ela pudesse secar-se. Olhou outra vez para mim e insistiu em saber o lugar onde
nos encontrávamos. Quando lhe disse que estávamos na praia de Lira, na Galiza,
ela abriu os olhos, como se visse um fantasma. E quando lhe disse o ano, levou
a mão à boca, como se tivesse ouvido algo impossível.
— ¡No puede ser! - exclamou. — Estamos en otro
siglo…
Quando
a interroguei acerca do que queria dizer, ela não me respondeu. Pareceu-me que
estava a falar com uma louca, embora o seu aspeto não indicasse que sofresse de
uma doença mental.
Pedi-lhe
que me dissesse como se chamava. Ela olhou para mim e, como se fizesse um
enorme esforço de concentração, disse com voz muito ténue.
—
Alfonsina… Alfonsina Storni.
Fiquei
estupefacto. Por isso me soava tanto o rosto. Para mim, as três melhores poetas
de todos os tempos são Safo, Rosalia de Castro e Alfonsina Storni.
Estendi
para ela a minha mão, para ajudá-la a pôr-se em pé. Uff… Estava congelada.
Reparei que estava descalça. Supus que teria perdido os sapatos ou que os
deixara em algum lugar antes de entrar na água. Com muita dificuldade a ajudei
a dirigir-se até a plataforma de madeira que chega ao borde do areal. Deixei-a
ali um momento e fui procurar, a correr, as coisas que tinha deixado na areia.
Apenas a perdi de vista um segundo e regressei a correr para junto dela.
Na
plataforma de madeira havia umas pegadas de pés molhados. Apenas isso.
Procurei-a durante horas. Mas não a voltei a ver. Nem a ela nem a toalha com a
que a cobrira. Não se me ocorreu acudir à polícia. Diriam que estou louco.
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