O HOMEM CONGELADO - Conto Clássico de Ficção Científica e Suspense - G. A. Wells

 

O HOMEM CONGELADO

G. A. Wells

(Início do séc. XX)

Tradução de João de Harlequin

 

  Por favor, lembre-se disso, eu definitivamente não compactuarei com este relato. Eu costumava ter muita fé na veracidade das histórias de Chris Bonner, mas isso é coisa do passado. Ele é um mentiroso; um mentiroso sem consciência! Eu quase disse isso na cara dele. Eu me pergunto que tipo de tolo ele pensa que eu sou!

  Preste atenção agora, e você ouvirá a história mais notável que ele me contou. Claro que era uma mentira, nada mudará minha opinião quanto a isso.

  Ele veio marchando até o meu iglu, que fica na Baía da Aurora, no norte do Alasca. Eu vendia peles para uma empresa de Nova York e, devido ao azar, não cheguei à costa até o terceiro dia, quando o último navio partiu para além do mar Ártico. E lá estava eu, abandonado no inverno, sem chance de sair até a primavera, com algumas dezenas de índios ignorantes como companheiros. Graças a Deus eu tinha bastante comida em lata!

  Como eu disse, Chris Bonner veio andando até mim da mesma forma que você desceria o quarteirão algumas portas para visitar um vizinho.

  “E de onde diabos você veio?” Eu exigi, ajudando-o a tirar sua jaqueta apertada.

  “Estava lá embaixo” ele respondeu, apontando o dedo para o sul “Vamos comer algo, MacNeal, estou com muita fome. Olhe o pacote que eu trouxe, por gentileza.”

  Eu já tinha olhado para a mochila que ele havia jogado no chão. Estava magro como um cão faminto. Aqueci uma lata de caldo de carne e alguns feijões, e fiz um bule de café sobre o fogão a óleo que servia tanto para cozinhar alimentos como para iluminação. Coloquei esses e alguns biscoitos diante do meu convidado. Ele rasgou sua refeição como um lobo.

  “Agora um cachimbo e um pouco de tabaco, MacNeal.” Ele ordenou, empurrando os pratos vazios para o lado.

  Dei-lhe um dos meus cachimbos e a minha bolsa de tabaco, ele acendeu e saboreou a fumaça; imaginei que ele havia passado muto tempo sem fumar.

  Ficou sentado em silêncio por um tempo, enquanto olhava para a chama bruxuleante.

  “Diga, MacNeal,” ele falou longamente “o que você sabe sobre uma teoria que diz que uma vez este nosso velho mundo girou em seu eixo em um plano diferente? Eu ouvi dizer que a Terra inclinou cerca de setenta graus. O que você sabe sobre isso?”.

  Foi estranho ouvir Chris Bonner fazer uma pergunta deste tipo. Ele era um garimpeiro ignorante, eu nunca tinha visto ele se afastar muito do assunto de mineração e garimpo. Ele havia caçado ouro do Panamá ao Círculo Polar Ártico nos últimos trinta anos.

  “Não sei mais do que você, provavelmente,” disse, respondendo a sua pergunta. “Também já ouvi falar dessa teoria. Eu diria que é uma incógnita.”

  “Esta teoria sustenta que o Polo Norte costumava estar onde o Equador está agora” disse ele. “Você acredita nisso?”.

  “Não sei muito sobre isso, Bonner” respondi. “Mas eu sei que eles descobriram algumas coisas que são peculiares para esta região, materiais existentes somente em locais de bioma tropical.”

  “O que, por exemplo?”.

  “Palmeiras e samambaias, uma espécie de papagaio, tigres-dentes-de-sabre; e também os mastodontes, membros da família dos elefantes. Fósseis e partes de esqueletos, você entende.”

  “Sem seres humanos, MacNeal?  Algum esqueleto ou fóssil daqueles que como nós estão por aqui?”.

  “Nunca ouvi falar. No entanto, pessoas pré-históricas estão sendo encontradas na Inglaterra e na França.”

  “Hum”, disse. Ele ponderou, fumando seu cachimbo, com os olhos no fogo, parecia perplexo com alguma coisa.

  “Olhe aqui, MacNeal,” ele disse de repente “digamos que um homem morra. Ele está morto, não está?”.

  “Sem dúvidas.” eu ri, imaginando.

  “Não poderia voltar à vida, hein?”.

  “Dificilmente, se ele estivesse realmente morto. Já ouvi falar de casos de animação suspensa[1]. O coração, aparentemente, para de bater por um, dois ou possivelmente dez minutos. Na verdade, não; é simplesmente que sua batida não pode ser detectada. Quando o coração de um homem para de bater, ele está morto.” Bonner assentiu.

  “Animação suspensa”, ele murmurou, mais para si mesmo do que para mim. “Deve ser isso. Essa é a única coisa que explicará, nada mais o fará.  Se pode cobrir um período de dez minutos, por que não um período de vinte ou mesmo cem mil anos...”

  “Chris, se você quiser se deitar e descansar um pouco... posso cuidar de você, está cansado.”, interrompi.

  Ele percebeu o significado do meu tom e sorriu.

  “Você acha que eu sou louco, hein?” ele disse. “Eu não sou. É uma maravilha, porém, considerando o que eu vi e o que eu... aqui, deixe-me mostrar uma coisa para você!”

  Ele enfiou a mão em sua mochila magra e tirou um objeto que à primeira vista pensei ser uma faca de açougueiro.

  Ele me entregou, e eu imediatamente vi que não era uma faca de açougueiro, nunca havia visto lâmina igual àquela. Era um tipo curioso de faca, pelo qual um colecionador de antiguidades teria pago um bom dinheiro.

  Tinha uma cor muito escura, quase preta; corroído, parecia-me, como se tivesse permanecido por muito tempo em um porão úmido. Era uma peça inteira, o cabo com cerca de 12 centímetros de comprimento e a lâmina talvez com 20 centímetros. Tinha aponta afiada assim como suas bordas, parecia uma adaga. Certamente não era de aço. Arranhei um lado da lâmina com a unha do polegar e expus um amarelo cremoso sob o verniz preto.

  “Parte do que você raspou é sangue. MacNeal.”  Bonner disse. “Agora, do que essa faca é feita?”

  Examinei a mancha amarela de perto. A faca era feita de marfim. Não era o tipo de marfim que eu conhecia, entretanto; era um tipo muito mais grosseiro do que qualquer marfim que eu já tivera visto.

  “Isso saiu da presa de um mastodonte, MacNeal”, disse Bonner.

  Eu olhei para ele, e o vi balançando a cabeça, sério. De qualquer forma, ele aparentemente acreditou no que disse.

  “Bela curiosidade, Chris,” eu comentei, entregando a coisa para ele.

  “Relíquia de família, sem dúvida. Pegou em uma das aldeias indígenas, hein?”

  Ele não falou nada. Sentou-se fumando, olhando para o fogo. Franziu as sobrancelhas em uma carranca profunda, esperando...

  “Tenho feito prospecção[2] , como sempre”, disse ele por fim.  “Lá embaixo, nas terras dos Tukuvuk. É um lugar horrível, ninguém nunca vai lá. Os índios me dizem que os espíritos dos mortos vivem lá. Eu posso acreditar pois, é um lugar ideal para diabinhos e demônios. E eu estava bem no meio disso tudo. Eu acredito que sou o primeiro a botar os pés naquelas áreas. Não importa como cheguei lá, eu vim do Sul no verão passado. Veja bem, eu tinha uma ideia de que havia ouro naquelas terras distantes.”

  “O lugar onde finalmente me estabeleci foi em um pequeno vale em um dos braços do Tukuvuk entre duas cadeias de colinas que vão de quinhentos a talvez três mil pés de altura. Era um lugar de aparência bagunçada, eu vi coisas estranhas e antigas lá, era como se Deus tivesse algumas criações que não gostou e simplesmente os guardou lá embaixo para ficar fora do caminho, e lá foram esquecidos.”

  “Mas o ouro estava lá, eu quase podia sentir o cheiro do metal dourado esquentando na minha panela, foi por isso que decidi ficar lá. Cheguei no vale em meados de julho e passei o resto do verão cavando buracos na beira do riacho até chegar nas partes mais elevadas. O que encontrei, indicava que havia um poderoso veio rico de metal dourado por ali, com uma das pontas em um bolsão. Se eu pudesse localizar aquele bolsão, ficaria rico. Mas não consegui encontrar o deposito, os buracos que eu cavava não se alinhavam em nenhuma direção específica.”

  “Estava tão focado em estabelecer uma linha que levasse ao deposito de ouro, não percebi que a temporada estava acabando. Mas como eu havia trazido comida suficiente para durar o inverno, não me importava em me prolongar naquelas terras.”

 “Mesmo assim, dependia de mim conseguir algum tipo de abrigo sobre minha cabeça, então construí com pressa uma cabana de um cômodo, cortei a madeira das encostas montanhosas com meu machado. Levou uma tarde para terminar, a cabana não era nada extravagante, mas era confortável o suficiente. Fiz uma fogueira, depois cortei e empilhei muita lenha do lado de fora.”

  “Com tudo feito, o inverno havia caído sobre mim de forma feroz. Eu deveria ficar no abrigo, mas não resisti à tentação de tentar mais uma vez encontrar o bolsão que guardava todo o metal dourado daquela área. Como eu disse, não obtive nenhuma informação do local onde estaria o deposito, foi pura suposição de minha parte. Imaginei que encontraria o deposito na encosta de uma certa colina, cerca de sessenta metros acima do nível do riacho. Uma geleira descia pela encosta daquela colina através de um pequeno desfiladeiro, e minha ideia era que o gelo se movia no bolsão e trazia o metal para o riacho, e o riacho o espalhava. Essa teoria foi confirmada até certo ponto pelo fato de que minhas melhores amostras de ouro na bateia, sempre vinham de um ponto um pouco abaixo da conjunção do riacho e da geleira.”

  “Estava nevando na manhã em que peguei minha panela e pá e comecei a subir a encosta da colina, mantendo-me na borda da geleira. Não era bem uma geleira para o tamanho, digamos, cerca de quinze pés de largura, podia vê-la serpenteando pela encosta da colina até desaparecer de vista por uma fenda acerca de trezentos metros de altura, provavelmente era alimentada por um lago acima.”

  “Eu tinha subido a colina cerca de trinta metros, seguindo a borda da geleira, quando avistei uma mancha escura na borda do gelo. Estava a cerca de meio metro abaixo da superfície. Afastei a película de neve para dar uma olhada. O gelo era claro como um cristal, de cor azul. E então eu vi, MacNeal... Era o corpo de um homem!”

  Ele fez uma pausa e me deu um olhar rápido. Ele queria ver como eu reagi a isso, presumo.

  “O corpo de um homem...”, ele continuou “era o homem de aparência mais esquisita que já vi na minha vida. Ele estava deitado de bruços, por isso não pude olhar o seu rosto naquele momento, mas eu sabia que era um homem. Ele estava todo coberto por longos cabelos, como um – bem, como um urso, digamos. Não tinha nenhum pedaço de roupa”.

  “O que você fez?” Perguntei.

  “Eu fiquei tão surpreso que deixei minha panela e pá cair e comecei a olhar para a maldita coisa com os olhos quase saltando da minha cabeça. O que alguém faria ao encontrar uma coisa coberta de cabelo como aquela, congelada em uma geleira? Não vou negar que estava um pouco assustado, MacNeal.”

  “Bem, eu fiquei lá olhando para a coisa por não sei quanto tempo. Não pensei em nenhum momento em me perguntar, como a coisa foi parar ali.  Certamente a ideia de fósseis ou homens pré-históricos não me passou pela cabeça. Não pensei em nada, apenas fiquei lá boquiaberto.”

  “Você me conhece, MacNeal, acho que tenho um coração muito mole em alguns aspectos. Eu parei uma vez para enterrar um cachorro morto que encontrei na estrada. Sabia que não ficaria em paz até cortar aquela coisa da geleira e dar a ela um enterro decente. Além disso, não queria ver aquela coisa de novo quando voltasse a trabalhar naquela encosta na primavera; pois tenho certeza que ela estaria ali já que aquela geleira não se mexe um centímetro por ano, imagino.”

  “Então voltei para o barraco e peguei meu machado, e com um pressentimento ruim no coração, voltei ao local e fiz as lascas da parede de gelo voarem. Levei cerca de três horas para tirar a coisa da geleira. Fiz todo o trabalho com muito cuidado não queria danificar o corpo, mesmo sendo de um homem morto.”

  “Diga, MacNeal, você pode imaginar o que significou para mim, desenterrar um cadáver de uma geleira lá embaixo na encosta de uma colina, naquelas terras esquecidas, dominadas pelo demônio? Não, você não pode, e essa é a verdade. Você teria que passar por isso para saber o inferno que é. Não quero passar por aquilo nunca mais. Estremeço só de lembrar os eventos que se seguiram...”

  “O que aconteceu lá?” Eu perguntei quando ele deliberou.

  “Você vai ouvir” ele respondeu, e continuou: “Finalmente tirei a coisa daquela colina, havia pequenos pedaços de gelo agarrados a ela, arrastei-a para a praia - se é que uma geleira possui uma costa.

  “Meu corpo estremeceu ao olhar para aquela coisa com aqueles pedaços de gelo grudados no cabelo comprido. Certa vez, em Dawson, vi um homem cair no rio Yukon, quando o retiraram, seu corpo estava coberto de gelo, tiveram que reanimá-lo. Virei a coisa para ver como era seu rosto.”

  “E?” disse eu.

  “Você já viu macacos, MacNeal?”

  “Essa coisa parecia com isso?” Eu perguntei, começando a conectar suas primeiras perguntas estranhas com o que ele estava me dizendo “Você não quis dizer isso, Bonner!”

  “Estou lhe dizendo”, ele assentiu solenemente. “Um homem-macaco, era isso. Mais homem do que macaco, se você me perguntar. Por exemplo, o rosto era mais plano que o de um macaco, e a testa e o queixo eram mais pronunciados. O nariz era achatado, mas não era o nariz de um macaco. E as mãos e os pés eram como os de um homem. Oh, era um homem, tudo bem. A única coisa que me convenceu, eu acho, foi a faca em sua mão.”

  “A faca que você tem aí?” perguntei.

  “Esta mesma faca” ele respondeu.

  “E então, Bonner?” Eu o encorajei a continuar.

  “Dei uma boa olhada naquela coisa e parti para o meu barraco. Sim, MacNeal, eu corri, e não tenho vergonha de dizer isso. Aquela coisa me assustou. A coisa mais feia que já vi. Olhos bem abertos, brilhantes e os lábios grossos separados para mostrar o pior conjunto de presas que eu já vi na boca de um homem ou animal. Ora, eu lhe digo que a maldita coisa parecia viva! Não é à toa que eu fugi. Você teria feito o mesmo. Qualquer um faria.”

  “De volta ao barraco, sentei-me na cama para pensar. E foi enquanto eu estava sentado tentando decifrá-lo que me lembrei daquela teoria sobre a queda da Terra. Isso me deu uma dica do que eu havia enfrentado. Claro, eu tinha ouvido falar de fósseis e partes de esqueletos de homens pré-históricos sendo encontrados. Teria eu encontrado não um fóssil ou parte de um esqueleto, mas o próprio homem pré-histórico? Aquilo me tirou o fôlego.  Se assim fosse, meu nome entraria para a história e eu seria chamado para dar palestras em sociedades científicas e afins. Considere isso, MacNeal.”

  “Eu lhe digo, pensar em todas essas possibilidades foi algo incrível! Lá estava eu neste ano de nosso Senhor, com o cadáver intacto de um homem que viveu sabe Deus há quantos séculos atrás. Aquele cadáver, entenda, poderia muito bem ser a chave para o mistério da origem da humanidade. Possivelmente poderia resolver a teoria darwiniana para sempre, de uma forma ou de outra. Eu estava em uma situação muito séria, você não vê?”

  “Bem, eu decidi preservar a coisa para que eu pudesse partir e fazer um relatório da descoberta. Mas como preservá-lo? É claro que se eu o tivesse deixado na geleira, ele teria se conservado indefinidamente, como um pedaço de carne no frigorífico. Tive medo de colocá-lo de volta no buraco da geleira e congelá-lo novamente com a água que trouxe do riacho; a água do riacho poderia exercer alguma ação química que arruinaria a coisa. E se eu o deixasse onde estava, a neve o cobriria, formaria um cobertor quente e provavelmente faria com que se decompusesse, então não sobraria nada além do esqueleto.”

“Eu queria preservar a coisa exatamente como a encontrei até que os cientistas chegassem e estudassem uma maneira de embalsamá-lo corretamente.”

  “Finalmente cheguei ao plano de mantê-lo em uma bolsa de gelo. Os dias ficaram em uma temperatura moderada por algumas semanas. Foi um trabalho desagradável manter aquela coisa congelada com os pedaços que eu cortava da geleira. Então, de repente, o mercúrio em meu pequeno termômetro baixou rapidamente e ficou muito frio. Levei a coisa para o barraco e coloquei-a contra a parede do lado de fora, onde não poderia ser coberta com neve, e amarrei-a lá.”

  “Você pode me imaginar eu indo dormir na minha cama no barraco todas as noites depois disso, com aquela coisa encostada na parede do lado de fora a menos de meio metro de distância? Claro que você não pode. Isso deixou meus nervos em frangalhos e, mais de uma vez, fui tentado a abrir um buraco no gelo do riacho e jogar a maldita coisa onde nunca mais a veria.  Mas não, tive que guardar para os cientistas e colocar meu nome na história; essa ideia tornou-se uma obsessão para mim. Eu sabia muito bem que, se alguma vez contasse as pessoas a história que estou contando agora, sem alguma prova disso, eu seria ridicularizado.”

  “Sem dúvida.”  Eu zombei.

  “Os dias foram passando,” ele continuou falando ignorando meu desdém, “e cada vez mais aquela coisa lá fora me dava nos nervos. O sol foi para o sul e de um dia para o outro nunca mais o vi. A noite interminável já era ruim o suficiente, mas quando você adiciona as milhares de luzes das estrelas do norte, o uivo dos lobos e a escuridão profunda, você tem uma condição que quebra um homem se ele não for cuidadoso.  Além disso, havia aquele demônio de aparência feia lá fora para se pensar.”

  “Eu estava pensando sobre isso constantemente, e não conseguia dormir.  Se fechasse os olhos, veria a imagem daquele rosto terrível, e se fosse dormir teria pesadelos. De vez em quando eu saía e ficava parado sob a luz das estrelas ou da aurora olhando para ela. Isso me fascinou, mas a visão da coisa me deu arrepios. Por fim, comecei a levar um porrete ou meu rifle quando ia dar uma olhada; fiquei com medo que a coisa ganhasse vida e tentasse me matar com aquela faca.”

  “E a rotina diária ficou desse jeito por talvez três meses ou mais. Meus pensamentos o tempo todo naquela coisa lá fora.”

  “Bem, isso não poderia continuar, você sabe. Certa manhã, acordei com a pior dor de cabeça que um homem já teve. Achei que minha cabeça fosse se abrir. Meu sangue era como ferro derretido fluindo em minhas veias. Eu sabia que era febre. Minha cabeça era uma bagunça, estava pensando em muitas coisas envolvendo aquela coisa. Eu estava fraco como um gato, mas consegui acender uma boa fogueira e arrumar minha cama, juntando todos os cobertores e peles que eu tinha e arrumá-los dentro da barraca. Eu só esperava não morrer congelado quando o fogo se extingue-se.”

  “Assim que me arrumei na barraca, as coisas começaram a fluir; eu fui completamente desligado. Não posso dizer positivamente o que aconteceu por alguns dias depois disso. Parece que me lembro, porém, de períodos em que eu era semirracional. Acho que uma vez me levantei para colocar mais lenha na fogueira. Outra vez, vi aquela coisa parada na porta sorrindo para mim, ela era como o diabo. Eu atirei com meu rifle e depois encontrei uma bala na porta. Meu tiro não havia sido uma ilusão. Mas a porta ainda estava fechada contra os lobos e não havia rastros na neve lá fora.”

  Bonner fez uma pausa para acender o cachimbo e continuou:

  “Não sei exatamente quanto tempo fiquei fora de mim. Eu tinha dado corda no meu relógio antes de rastejar para dentro do barraco pela primeira vez, e eu posso me lembrar de ter dado corda uma segunda vez, quando me levantei para colocar lenha no fogo que estava quase apagando. Eu me lembro de um clarão, e pronto! Devo ter passado quatro dias fora de mim”.

  “Bem, você pode apostar que eu estava farto de homens pré-históricos rondando o barraco naquela época. Que se danem os cientistas! Eu estava determinado a me livrar daquela coisa da maneira mais rápida possível. A maneira mais rápida, pensei, seria aquecer o cadáver para que se decompusesse rapidamente, depois colocá-lo do lado de fora, onde os lobos e corvos limpariam os ossos. Os cientistas teriam de se contentar com o esqueleto.”

  “Então fiz uma grande fogueira na lareira e esquentei bem o barraco, depois saí e trouxe o cadáver. Fiquei enjoado naquele trabalho, mas era o único jeito. Não tive coragem de fazer a fogueira do lado de fora e deixar a coisa lá.

  “Coloquei a coisa na porta diante da lareira e sentei-me na cama para esperar. Eu o observei bem de perto, porque, estando morto há tanto tempo, pensei que quando esquentasse e começasse a se decompor ficaria como manteiga, não queria que o barraco ficasse todo fedido com aquele fedor.  Provavelmente meia hora se passou e, de repente, vi a coisa tremer...”

  “Sua tempestade cerebral está voltando,” eu interrompi.

  “Espere” disse Bonner bruscamente. “Ele estremeceu, não muito, mas o suficiente para eu notar. Isso meio que me pegou, então raciocinei que qualquer coisa descongelando assim iria naturalmente tremer um pouco. Se passaram talvez uns quinze ou vinte minutos, então uma das pernas se moveu para frente. Isso me assustou. Lembre-se, lá estava eu naquelas colinas, sozinho com aquela coisa. Eu era bastante suscetível a influências estranhas. De qualquer forma, a perna se moveu e...”

  “Sentou-se e pediu um copo de água.” não pude evitar. Bonner continuou, sem dar atenção ao meu sarcasmo. Ele parecia estar falando em voz alta para si mesmo:

  “Eu o observei como um falcão por algum tempo depois disso, então, como não o vi mais se mover, saí para pegar mais lenha para o fogo e puxar algumas boas respirações de ar frio em meus pulmões. Aquele barraco era como o interior de um forno.”

  “Quando entrei de novo, vi que a maldita coisa tinha virado de costas. Virado de costas, eu digo. E houve uma mudança nos olhos também, eles tinham uma aparência meio acordada; um olhar mais vivo. E estava... respirando! Sim, senhor, respirando! Por que a coisa não me viu quando entrei e fechei a porta não sei. E, acredite ou não, a mão que segurava a faca estava aberta e a faca caída no chão, separada do corpo.”

  “Louco? Eu te digo não! Eu estava tão são quanto estou agora. Eu lhe digo que vi essas coisas com meus próprios olhos; os vi tão claros quanto vejo você agora. Vejo que não acredita em mim, MacNeal. Oh, bem, eu não culpo você; eu mesmo mal acredito às vezes.”

  Ele deu uma risadinha.

  “Mas lá estava, exatamente como estou lhe dizendo. Havia saído por alguns minutos e quando voltei e vi que a coisa tinha virado de costas, deixei cair a madeira que trazia nos braços. O barulho da madeira caindo no chão fez com que a coisa se levantasse com um salto. Você não precisa me olhar assim, eu te digo com toda certeza. Eu juro que sim! Lá estava ele, agachado como uma pantera pronta para a primavera, os olhos brilhando como fogo, os lábios puxados para trás sobre as gengivas e as presas amarelas aparecendo. Você consegue imaginar isso?  Não, você não pode.”

  Bonner fez um gesto expressivo com uma das mãos.

  “Notável, mas a coisa ainda não tinha me visto. Ele estava olhando para o fogo, mas estava virado suficiente em minha direção que pude vê-lo com nitidez. De repente, ele gritou em um jargão bizarro e saltou sobre a lareira e tentou lutar contra as chamas. Acho que a coisa nunca tinha visto fogo antes, não sabia o que era; provavelmente imaginou que era algum tipo de animal selvagem. Naturalmente, a única coisa que resultou dessa estripulia foram braços e mãos queimados, o cabelo comprido chamuscado e encaracolado. Ele saltou para trás com um rosnado, cuspindo aquele jargão engraçado. O som se assemelhava, acho eu, a um grunhido de corpo que vinha da barriga.”

  “Eu te digo, MacNeal, eu fui bastante corajoso de ficar ali, olhando a besta, minha vontade era de correr. Meu rifle estava encostado na cama, dei um mergulho rápido para pegá-lo. Então, aparentemente, a coisa me viu pela primeira vez. A maneira como ele me encarou com aqueles olhos brilhantes era um aviso. Não parei para discutir; peguei o rifle, engatilhei e dei um tiro instantâneo. A bala atingiu a coisa no peito esquerdo e o sangue jorrou. Claro que você não acredita. Mas eu lhe digo, o sangue jorrou do peito de uma coisa que esteve congelada em uma geleira por milhares de anos!”

  “Bem, aquilo veio em minha direção como um ciclone. Não tive tempo de mirar novamente. Ela começou a me estrangular. O cheiro? Aquela coisa cheirava a carniça. Talvez você saiba como a gaiola de um animal selvagem fede se não for limpa por uma ou duas semanas. Essa coisa cheirava assim, só que pior. Eu ainda posso sentir o fedor. Senhor!"

  Bonner torceu o nariz e estremeceu.

  “Mas lá estávamos nós, enfrentando um ao outro, a coisa fazendo aqueles barulhos de porco e cheirando a mil pilhas de lixo. Tinha a força de dez homens; eu senti isso. Ele puxou o rifle de mim e dobrou o cano com um giro dos pulsos. O cano de um rifle Winchester calibre 38 — entortou tão fácil quanto você ou eu entortaria um pedaço de fio de cobre.”

  “Então nós estávamos lá, brigando como um casal de gatos selvagens por todo o barraco. Eu mesmo não sou um homem desleixado quando se trata de confusão, MacNeal, mas aquela coisa me tratou como um bebê. Eu podia ver meu fim. Nós nos debatemos no chão, eu lutando como um demônio, ele lutando como quarenta demônios. Nós chutamos o fogo para dentro e para fora novamente e espalhamos brasas vivas por todo lugar, e o barraco pegou fogo.”

  “Eu estava quase desistindo quando minha mão segurou acidentalmente o cabo da faca que a coisa havia deixado cair no chão. Agarrei-me a ela e cutuquei aquela coisa com todas as minhas forças, conduzindo a lâmina até o cabo a cada soco.”

  “Aquela faca?” Eu interrompi.

  “Esta faca”, respondeu Bonner. “Ainda tem sangue seco. Mas acho que foi realmente a bala que fez o trabalho. Deve ter cortado uma artéria. De qualquer forma, o sangue continuou jorrando do peito da coisa; pegou nas minhas mãos e as deixou escorregadias. Eu sabia que a coisa não poderia derramar sangue assim e continuar, foi isso que me deu ânimo para continuar lutando. E, como eu disse, acho que foi a bala que fez o trabalho a longo prazo. Um tiro de sorte, caso contrário, eu não estaria aqui agora. Senti a coisa cedendo e ficando fraca em minhas mãos, e seu aperto começou a relaxar. Eu vi minha chance de escapar, acertei uma cotovelada no estomago do bicho, me livrando dos seus braços e depois o empurrei para longe. Ele cambaleou por um momento ou dois, agarrando o peito com as patas ensanguentadas, rangendo as presas e me olhando ferozmente, então ele caiu em cima das chamas.”

  “Eu vi claramente que não havia chance de salvar o barraco, então peguei o que pude colocar em minhas mãos na forma de comida, roupas e cobertores, e fui embora. Não me lembro de ter colocado a faca no bolso, mas foi onde a encontrei mais tarde. A cabana foi reduzida a nada e aquela coisa queimou com ela; provavelmente nem um osso dele sobrou. Os cientistas estavam sem sorte e um grande mistério da humanidade permaneceria sem solução.”

  “Não parei para investigar, claro; meu trabalho era fazer trilhas. Eu sabia sobre esta aldeia e vim. Como cheguei aqui não sei; esta é uma terra terrível para atravessar a pé no inverno. Quando cheguei ao vale onde tudo isso aconteceu, deixei meus dez huskies à deriva para se virarem sozinhos, eu não tinha comida para mantê-los vivos. Tive que andar até aqui.”

  “E isso é tudo, MacNeal. Você pode dizer o que quiser, eu sei o que vi com meus próprios olhos e você não pode mudar minha opinião sobre isso.  ‘Animação suspensa’? Sim, por um período que abrange muitos séculos.  Seria uma coisa muito boa se pudéssemos imaginar o que aconteceu lá atrás quando esta velha Terra tombou.”

  “Talvez víssemos um homem, um homem meio macaco, atravessando um riacho com uma faca na mão a caminho de matar um inimigo que dormia na margem oposta. Então, de repente, o eixo da Terra inclinou – as condições climáticas naqueles dias eram tais que congelavam as coisas num piscar de olhos – e a coisa fico mantida nas garras do gelo, assim como a poeira e a lava as seguravam nos dias de Pompeia, e... Bem, quem pode dizer o que aconteceu? Tudo era possível. Não sabemos as condições daqueles dias. De qualquer forma, aqui estou eu, milhares de anos depois, desenterrei um homem, com uma faca na mão, de uma geleira. Eu aqueço seu corpo para decompor a carne. Em vez de se decompor; ele ganha vida e eu tenho que matá-lo. Ele estava hibernando em uma geleira há séculos. Não sei o que pensar sobre isso.”

  Bonner acendeu o cachimbo e voltou a fumar, depois olhou para mim interrogativamente.

  “Chris”, eu disse, “eu lhe digo francamente que não acredito em uma palavra do que você disse. Você me diz que esteve fora de si por alguns dias.  Isso explica tudo. Você teve um ataque de depressão e nervosismo e imaginou tudo isso. Depois veio me contar tudo isso como se fosse um fato real.”

  Ele parecia magoado. Olhou fixamente para a faca em sua mão por vários momentos, então a empurrou para mim, seus olhos perfurando os meus.

  “Então onde diabos eu consegui esta faca?”

 



[1] A animação suspensa consiste na desaceleração dos processos fisiológicos vitais por meios externos sem levar à morte. (N. do T.)

[2] A prospecção é a primeira etapa da análise geológica de um território. É a busca de minerais, fósseis, metais preciosos ou espécimes minerais. (N. do T.)

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