O SOLDADO E A MORTE - Conto Clássico Sobrenatural - Alexander Nikolayevich Afanasyev
O SOLDADO E A
MORTE
Alexander Nikolayevich Afanasyev
(1826 - 1871)
Um
soldado, após vinte e cinco anos de serviço militar, pediu baixa e ganhou o
mundo.
Tendo
caminhado por um tempo, encontrou um homem pobre, que lhe pediu uma esmola. O
soldado, tendo apenas três biscoitos, deu um deles ao mendigo e ficou com os restantes.
O
soldado continuou seu caminho, e logo se deparou com outro esmoler. O pobre
homem, cumprimentando-o humildemente, também lhe pediu uma caridade. O soldado dividiu
com ele sua provisão, dando-lhe um biscoito e ficando com o que lhe restara.
Caminhava
já por um tempo quando encontrou um terceiro pedinte. Era um homem velho, de
cabelos brancos como a neve, que também o cumprimentou humildemente, pedindo-lhe
esmola. O soldado pegou seu último biscoito, assim pensando:
—Se
eu te der o biscoito inteiro, vou ficar sem provisões; se, todavia, eu der a
este velho homem a metade, e ele achar os dois outros mendigos, vendo que eu ofertei
um biscoito inteiro para cada um, poderá ficar ofendido. É melhor que eu lhe dê
o biscoito inteiro; poderei passar sem meu bocado.
E
deu ao pedinte o seu último biscoito, ficando, pois, sem suprimentos. Então o
velho perguntou-lhe:
— Diga-me, meu filho: o
que você quer e de que você precisa?
—
Deus o abençoe, meu velho — respondeu o soldado. — O que eu posso lhe pedir,
senhor, já que é tão pobre e nada me pode oferecer?
—
Não atente à minha miséria, senhor. Apenas me diga o que quer; talvez eu possa
recompensá-lo por seu bom coração.
—
De nada preciso. Mas, se o senhor tiver um baralho, me dê como lembrança sua.
O
velho tirou do bolso um baralho e deu ao soldado, dizendo:
—Pegue-o,
senhor. E tenha a certeza de que, com quem o senhor vier a jogar, sempre irá
vencer. Há, aqui, também, um alforje. Quem quer que o senhor encontre na
estrada — seja uma pessoa, um animal ou qualquer outra coisa —, caso você o
abra e diga: "Entre aqui!", ele entrará imediatamente.
—Muito
obrigado! — disse-lhe o soldado.
E
sem dar muita importância ao que o velho lhe dissera, pegou as cartas e o
alforje e continuou o seu caminho.
Depois
de caminhar por muito tempo, o soldado chegou à margem de um lago e viu três
gansos a nadar. Ocorreu ao soldado testar seu alforje. Abriu-o e exclamou:
—Ei,
gansos, entrem aqui!
Mal
acabara de dizer tais palavras quando, para seu espanto, os gansos voaram em
sua direção e entraram no alforje. O soldado amarrou-o, colocou-o no ombro e
seguiu seu caminho.
Caminhou
e caminhou. Finalmente, chegou a uma grande cidade, que lhe era desconhecida. Entrou
numa taberna e disse ao estalajadeiro:
—Ei,
pegue esse ganso e asse-me para o jantar. Por este outro você me dará pão e um
bom copo de conhaque. Ademais, dar-lhe-ei este terço como pagamento pelo seu
trabalho.
Sentou-se
à mesa e, disposto a jantar, começou a comer. Tomou o conhaque e comeu o
saboroso ganso. Enquanto jantava, ocorreu-lhe olhar pela janela e viu que,
próximo à taberna, erigia-se um magnífico palácio, cujos vidros à janela
estavam inteiramente partidos.
—Diga-me — perguntou ao estalajadeiro —, que palácio é esse e por que está abandonado?
—Há
muito tempo — respondeu o estalajadeiro — nosso czar mandou construir aquele
palácio, mas lhe era impossível estabelecer-se nele. Está abandonado há dez
anos, porque os demônios o tomaram como residência e expulsam todos que entram.
Assim que cai a noite, eles ali se reúnem ali para dançar, fazer algazarras e
jogar cartas.
O
soldado, sem parar para pensar, dirigiu-se ao palácio, apresentou-se ao czar e,
fazendo uma saudação militar, assim lhe disse:
—Majestade,
perdoe-me a audácia de vir vê-lo sem ser chamado. Gostaria que me desse
permissão para passar uma noite em seu palácio abandonado.
—
Está louco? Muitos homens ousados e corajosos já se apresentaram pedindo o
mesmo de mim. Dei permissão a todos eles, mas nenhum deles voltou vivo.
—
O soldado russo não se afoga na água, nem queima no fogo — respondeu-lhe o
soldado. — Servi a Deus e ao czar por vinte e cinco anos e não morri. Vossa
majestade acha que vou morrerei agora à noite?
—
Cumpre-me adverti-lo de que, sempre que um homem vivo entrou no palácio ao
anoitecer, na manhã seguinte apenas os seus ossos foram encontrados — respondeu
o czar.
O
soldado persistiu em seu desejo, implorando ao czar permissão para passar a
noite no palácio abandonado.
—Bem
— disse, por fim, o czar —, vá ao palácio se quiser. Mas não poderá o senhor
dizer que desconhecia a morte que o esperava.
O
soldado dirigiu-se ao palácio abandonado. Lá, instalou-se na grande sala, tirou
o alforje e o sabre. Colocou o alforje num canto e pendurou o sabre num prego.
Sentou-se à mesa, tirou a tabaqueira, encheu o cachimbo, acendeu-o e começou a
fumar calmamente.
Às
doze horas da noite, de onde não se sabe, surgiram incontáveis demônios.
Pusera-se aquela legião a gritar, dançar e fazer algazarra, produzindo um
barulho infernal.
—
Olá, soldado! Aqui também? — gritaram os demônios ao vê-lo. — O que você veio
fazer aqui? Quer jogar cartas conosco?
—Por
que eu não deveria querer? — respondeu o soldado. —Imponho, todavia, uma
condição: temos que jogar com o meu baralho, porque não confio no dos senhores.
Imediatamente,
o soldado tomou o seu baralho e começou a distribuir as cartas. Jogaram uma
partida e o soldado ganhou. Na segunda partida, deu-se o mesmo. Apesar de toda
a astúcia que os demônios engendraram, perderam todo o dinheiro que tinham, e o
soldado foi recolhendo-o calmamente.
—Espere,
amigo — disseram-lhe os demônios. —Temos uma reserva de cinquenta arrobas de
prata e quarenta de ouro: vamos jogar essa prata e esse ouro.
Mandaram
um diabrete trazer os sacos da reserva e continuaram jogando. O soldado prosseguiu
ganhando, e o diabinho, depois de trazer todos os sacos de prata, cansou-se
tanto que, sem fôlego, implorou ao velho diabo calvo:
—Deixe-me
descansar um pouco.
—Sem
descanso, preguiçoso! Traga-nos os sacos de ouro de uma vez!
O
diabrete, assustado, correu a toda velocidade e foi trazendo os sacos de ouro, amontoando-os
num canto. Mas o resultado foi o mesmo: o soldado continuou vencendo.
Os
demônios, aos quais desagradava desfazerem-se, assim, de sua riqueza, chutaram
a mesa e atacaram o soldado, rugindo em coro:
—
Despedacem-no! Despedacem-no!
Mas
o soldado, sem se incomodar, pegou seu alforje, abriu-o e perguntou:
—
Sabem você o que é isso?
—
Um alforje — responderam os demônios.
—
Então, venham todos para ele!
Mal
pronunciou essas palavras, toda a legião foi sugada pelo alforje, que ficou
completamente cheio de demônios, agarrados uns aos outros em seu interior. O
soldado amarrou, com uma corda, a bolsa o mais firmemente possível, pendurou-a
na parede e, depois, deitado sobre os sacos de dinheiro, caiu em sono profundo até
o amanhecer.
Bem
cedo, o czar disse a seus servos:
—
Vão ver o que aconteceu com o soldado; se ele estiver morto, recolham os seus
ossos.
Os
servos chegaram ao palácio e ficaram surpresos ao ver o soldado andando
alegremente pelos quartos e fumando o seu cachimbo.
—Olá
amigo! Já não mais esperávamos vê-lo vivo. Como o senhor passou a noite? Como
lidou com demônios?
—Personagens
corajosos esses demônios! Vejam quanto ouro e quanta prata ganhei-lhes nas
cartas!
Os
servos do czar ficaram surpresos e não acreditavam nos próprios olhos.
—
Estão todos boquiabertos! — continuou o soldado. — Enviem-me, prontamente, dois
ferreiros e diga-lhes para trazerem a bigorna e os martelos com eles.
Quando
os ferreiros chegaram, trazendo consigo a bigorna e os martelos, disse-lhes o
soldado:
—Tirem
esse alforje da parede e batam nele com força.
Os
ferreiros começaram a despendurar o alforje e falaram entre si:
—Meu
Deus, quanto pesa! Parece que está cheio de demônios!
E
eles exclamaram de dentro:
—Somos
nós, queridos amigos!
Os
ferreiros puseram o alforje sobre a bigorna e a martelaram a bolsa como se
malhassem em ferro. Os demônios, incapazes de suportar a dor, cheios de medo,
gritaram com todas as suas forças:
—
Oh, soldado! Liberte-nos! Jamais nos esqueceremos do senhor! Nenhum demônio
jamais entrará neste palácio e nem se acercará dele num raio de cem léguas.
O
soldado mandou os ferreiros pararem de bater. Assim que desamarrou o alforje,
os demônios correram em disparada, sem nem olhar para trás. Num piscar de olhos,
desapareceram do palácio. Mas nem todos tiveram a sorte de escapar: o soldado
manteve no saco, como refém, um demônio coxo, que não conseguia correr como os demais.
Quando
anunciaram as ações do soldado ao czar, o soberano o trouxe à sua presença, cobriu-o
de elogios e permitiu que morasse no palácio. A partir de então, o bravo
soldado começou a desfrutar da vida, já que tudo tinha em abundância. Os seus bolsos
transbordavam de dinheiro, e tinha o respeito e a consideração de todo o povo.
Os cidadãos, ao encontrá-lo, prestava-lhe respeitosas reverências. Além disto,
desfrutava do afeto do czar.
Estava
o soldado tão feliz que pretendeu se casar. Encontrou uma noiva, celebraram-lhe
o casamento e, ainda por cima, o soldado obteve de Deus a graça de ter um filho
um ano após a boda.
Pouco
tempo depois, o menino adoeceu e ninguém conseguiu curá-lo. Muitos médicos e
curandeiros visitaram a criança, mas esta não melhorava. Então o soldado se
lembrou do demônio coxo. Tomou, então, o alforje onde o diabo estava trancado e
perguntou-lhe:
—
E está vivo, diabo?
—Sim,
estou vivo. O que você quer, meu senhor?
—Meu
filho adoeceu e não sei o que fazer. Talvez você saiba como curá-lo.
—Sim,
eu sei. Mas, antes de tudo, deixe-me sair do alforje.
—E se você me trair e fugir?
O
diabo coxo jurou que nem por um momento lhe ocorrera tal ideia. Então o
soldado, desamarrando o alforje, libertou o seu prisioneiro.
O
demônio, recuperando a liberdade, tirou um copo do bolso, encheu-o com água da
fonte, colocou-o na cabeceira da cama onde jazia a criança enferma e disse ao
pai:
—Venha
cá, amigo! Veja esta água.
O
soldado olhou para a água e o diabo perguntou-lhe:
—
O que vê o senhor?
—Eu
vejo a Morte.
—
Onde ela está?
—
Está aos pés do meu filho.
—Está
bem. Se estiver aos pés, significa que o enfermo ficará curado. Se ela
estivesse à frente, o doente haveria de morrer irremediavelmente. Agora, pegue
o copo e borrife o menino.
Com
a água, o soldado aspergiu a criança e, instantaneamente, a doença foi
removida.
—Obrigado
— disse o soldado ao demônio coxo, e o libertou, ficando apenas com o copo.
Desde
aquele dia, fez-se curandeiro, dedicando-se a tratar de boiardos e generais. À
cura, bastava-lhe olhar para o vidro e, prontamente, podia dizer, com toda
certeza, qual dos pacientes morreria e qual sobreviveria.
Passaram-se
alguns anos.
Certo
dia, o czar adoeceu. Chamaram o soldado e ele, enchendo o copo com água da
fonte, colocou-o na cabeceira da cama. Ele olhou para a água e viu, com horror,
que a Morte estava, como uma sentinela, sentada à cabeceira do doente.
—
Majestade — disse-lhe o soldado —, ninguém lhe pode restaurar a saúde. O senhor
só tem três horas de vida.
Ao
ouvir essas palavras, o czar ficou furioso e gritou, furiosamente:
—Como?
Vossa mercê, que curou meus boiardos e meus generais, não me quer curar? Logo
eu, que sou o seu soberano? Sou de casta inferior ou indigno de seu favor? Se o
senhor não me curar, darei ordem para que seja executado uma hora depois da
minha morte.
O
soldado ficou perplexo diante de tal grave circunstância e começou a suplicar à
Morte, dizendo:
—Dê
ao czar a sua vida e tome a minha! Se eu tiver que morrer, que seja por sua mão
e não pela de um carrasco executor.
Ele
olhou para o copo novamente e viu a Morte, num gesto de aprovação, colocar-se
aos pés do czar.
O
soldado aspergiu o doente. Este, em seguida, recuperou a saúde e levantou-se da
cama.
—
Ouça, Morte — disse o soldado —, dê-me três horas. Preciso ir para casa me despedir
da minha esposa e do meu filho.
—
Está certo — respondeu a Morte.
O
soldado foi para casa, deitou-se e ficou muito doente. A morte não tardou a
chegar. Colocou-se à cabeceira da sua cama, dizendo-lhe:
—Despeça-se
logo de seus entes queridos. Só lhe restam três minutos de vida.
O
soldado estendeu o braço, tirou o alforje da parede, abriu-o e perguntou:
—O
que é isso?
A
Morte respondeu:
—Um
alforje.
—É
verdade. Então, entre aqui!
E
a Morte, em um instante, se viu no alforje.
O
soldado ficou tão aliviado que saltou da cama, amarrou o alforje, pendurou-o no
ombro e dirigiu-se para a densa floresta de Briauskie. Lá chegando, pendurou o
alforje no alto de um álamo e voltou feliz para casa.
A
partir de então, as pessoas não mais morriam. Nasciam e nasciam, mas jamais
morriam. Passaram-se, assim, muitos anos, sem que o soldado tirasse o alforje
do álamo.
Certa
vez, quando caminhava pela cidade, esbarrou em uma senhora tão velha e
decrépita que ia no chão a cada sopro de vento.
—Deus
da minha alma, quantos anos a senhora tem? — exclamou o soldado. Já lhe é hora
morrer!
—Sim,
meu filho — respondeu a velha. — Quando o senhor fez da morte prisioneira, só me
restava uma hora de vida. Tenho muita vontade de descansar. Mas, o que posso
fazer? Sem a morte, a terra não me permite descansar em suas profundezas. Deus há
de puni-lo por isto! Sobejam, neste mundo, por sua causa, os seres humanos que
sofrem como eu!
O
soldado ficou pensativo:
—É
claro que é preciso libertar a Morte, mesmo que ela me mate. Eu sou um grande
pecador!
Então
se despediu de sua família e seguiu à floresta de Briauskie. Chegando lá,
aproximou-se do álamo e viu o alforje que, pendurado no alto da árvore, balançava
ao vento.
—
Olá, Morte! Está viva? — perguntou o soldado.
A
morte respondeu-lhe com uma voz quase imperceptível:
—Estou
viva, amigo.
O
soldado apanhou o alforje, desamarrou-o e abriu-o, libertando a Morte. A ela, implorou
que o levasse o mais rápido possível, para que pouco sofresse. A Morte, todavia,
ignorando-o, pôs-se a correr e, em um instante, desapareceu.
O
soldado voltou para casa e viveu por muitos anos, desfrutando da maior
felicidade.
Todos
acreditavam que ele jamais morreria; mas, segundo dizem, faleceu recentemente.
Versão em português de
Paulo Soriano.
Imagem: Albrecht Dürer (1471 - 1528).
Comentários
Postar um comentário