A MONTANHA E O SAPATEIRO CAOLHO - Narrativa Clássica Sobrenatural - Marco Polo e Rusticiano de Pisa
A
MONTANHA E O SAPATEIRO CAOLHO
Marco
Polo (c. 1254 – 1324) e Rusticiano de Pisa (séc. XIII)
Queremos
relatar uma grande maravilha que aconteceu entre Bagdá e Mossul.
No
ano 1275 da Encarnação de Cristo, havia um califa de Bagdá que odiava os
cristãos e, dia e noite, pensava como os poderia converter em sarracenos — ou
fazê-los perecer, se não conseguisse obter o primeiro intento.
Todos
os dias, o califa reunia, em conselho, os seus ministros e seis sábios para
preparar os seus planos, pois todos eles abominavam os cristãos. É verdade que
todos os mouros odeiam os cristãos. O fato é que o califa — e os sábios que o
rodeavam — descobriu que no Evangelho está escrito: "Se um cristão
tiver tanta fé como um grão de anis, obterá de Deus, pela sua oração, que duas
montanhas se unam". Ao ler isto, o califa alegrou-se imensamente, pois
ali vislumbrou um pretexto para converter os cristãos à religião sarracena ou sacrificá-los
a todos.
Então
o califa convocou todos os cristãos do seu reino e, quando estes estavam em sua
presença, aludiu-lhes ao Evangelho e mandou que o aludido texto lhes fosse
lido. Tendo os cristãos escutado, perguntou-lhes se o que lera era a verdade.
Os cristãos responderam que era inteiramente verdade.
—
Dizeis, então — respondeu-lhes o califa —, que um cristão, que tem fé, é capaz
de unir duas montanhas com as suas orações dirigidas a seu Deus? Como sois
cristãos, deve haver, entre vós, alguém que tenha um punhado de fé. Por isso,
deslocareis essa montanha, que vedes daqui. Caso isto não seja feito, far-vos-ei
morrer miseravelmente, eis que, se não a deslocardes, é porque fé não tendes. Destarte,
farei com que todos vós pereçais, a menos que vos convertais à lei de Maomé; em
o fazendo, ingressareis na verdadeira fé e sereis salvos. Por isso, dou-vos dez
dias para o conseguirdes. Se não o fizerdes no prazo de dez dias,
condenar-vos-ei à morte.
Dito
isto, o califa calou-se e despediu os cristãos.
Ouvindo
isto, os cristãos tornaram-se presa de um intenso temor da morte. No entanto,
confiavam no seu Criador, que os livraria de tão dura provação.
Os
sábios cristãos reuniram-se em conselho, pois havia entre eles arcebispos,
bispos e padres. Só lhes restava rezar a Deus Nosso Senhor para que, em Sua
grande misericórdia, os inspirasse naquela ocasião e os fizesse escapar à morte
certa, caso não fizessem o que o califa lhes exigia.
Sabei,
pois, que, dia e noite, estiveram em oração e rogaram devotamente a Deus — o
salvador do céu e da terra — que os auxiliasse na difícil situação em que se
encontravam.
Durante
oito dias e oito noites, homens, mulheres e crianças pequenas e grandes
permaneceram em oração.
Aconteceu,
todavia, que um anjo do Senhor apareceu a um bispo — que era homem de vida
santa e imaculada — e lhe disse:
—
Procura um sapateiro que só tem um olho e diz-lhe que reze para que a montanha
se mova; então, a montanha mudará de lugar.
Conto-vos
como era a vida deste sapateiro. Em verdade vos digo que era um homem honesto e
casto. Jejuava com frequência e a sua alma não estava contaminada por pecado
algum. Ia à missa todos os dias e frequentava assiduamente a igreja. Suas maneiras eram tão gentis, e a sua vida
tão exemplar, que não havia alguém melhor do que ele num raio de cem léguas. Algo
é certo: tinha ele o direito de dizer-se
homem de grande fé. Ouvira ele dizer várias vezes no Evangelho: "Se o
olho te faz pecar, arranca-o ou faz com que não te faça pecar".
Certa
feita, uma bela senhora foi à casa do sapateiro comprar sapatos. Este quis olhar-lhe
o pé e a perna para ver que sapatos poderia a dama usar. E ela mostrou-lhe a
perna e o pé. E eram tão bonitos que nunca houve outros mais formosos. Quando o
mestre sapateiro viu as pernas daquela mulher, sentiu-se tentado, pois os seus
olhos deliciavam-se com elas. Por isso, deixou a senhora ir embora e não quis
vender-lhe os sapatos. E quando a dama se foi embora, o sapateiro disse para si
mesmo: "Ah, desleal e enganador, em que estás a pensar? Vou vingar-me
muito dos meus olhos, que me escandalizam". Tomou uma sovela e furou um
olho, de modo que este vazou e ele já não mais conseguia ver com ele. Assim, aquele
bom sapateiro esvaziou o olho, e era de fato um homem santo.
Mas voltemos à história.
Quando
o bispo teve a revelação de que a oração de um sapateiro caolho poderia mover a
montanha, contou isto aos cristãos. E os cristãos fizeram com que ele mandasse
chamar o sapateiro. Depois disseram-lhe que rezasse ao Senhor para mover a
montanha. Quando o sapateiro ouviu o que os cristãos queriam dele, respondeu
que não era assim tão santo para que o Senhor o ouvisse num milagre assaz grandioso.
Os cristãos pediram-lhe, encarecidamente, que intercedesse por eles, até que
conseguiram persuadi-lo a fazer a sua vontade e a presentear o seu Criador com tal
sacrifício.
Exaurido
o prazo concedido pelo califa, os cristãos levantaram-se de madrugada, e —homens
e mulheres, pequenos e grandes — foram em procissão até o sopé da montanha,
levando a Cruz do Salvador. Mais de dez mil pessoas, reunidas na planície,
rodearam a Santa Cruz. O califa e inúmeros sarracenos ali estavam, prontos a
exterminar os cristãos assim que a montanha permanecesse imóvel. Os cristãos —
grandes e pequenos — estavam em grande angústia e medo. Apesar disso, esperavam
no seu Criador.
Quando
todos — cristãos e sarracenos — estavam reunidos no vale, o sapateiro
ajoelhou-se diante da Santa Cruz e, erguendo os braços para o céu, implorou ao
Salvador que a montanha se movesse e que os cristãos não tivessem de sofrer uma
morte adversa. Quando acabou de implorar a clemência do Céu, a montanha começou
a tremer e a mover-se violentamente.
Assim
que o califa e os sarracenos viram o prodígio, ficaram maravilhados. Vários se converteram
e o próprio califa tornou-se cristão em segredo.
Quando
morreu o califa, encontraram com ele uma cruz, e os sarracenos não o enterraram
no túmulo dos outros califas, senão num lugar isolado.
E
assim se operou o milagre.
Versão em português de
Paulo Soriano.
Vim aqui por indicação do Prof.Fávaro.
ResponderExcluirMuito obrigado!
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