DOM JUAN - Conto Clássico Fantástico - E. T. A. Hoffmann
DOM JUAN
E. T. A Hoffmann
Tradução de Antônio Marques Rodrigues
(1826 – 1873)
A
voz sonora que dizia “vai começar o espetáculo!” acordou-me do brando sono em
que eu estava. As violas murmuram... ouço prelúdios de violinos... uma
consonância de trompa... uma nota de oboé... esfrego os olhos... o demônio
zombará de mim? Não. Estou no quarto da hospedaria, aonde cheguei
ontem à noite moído de cansaço. Junto a mim está o cordão da campainha, puxo-o
e um criado aparece.
—Em
nome do céu, o que significa esta música desordena que ouço?! Haverá um
concerto na hospedaria?
—Talvez
Vossa Excelência (durante o jantar eu havia bebido vinho de champanhe) ignore
que a hospedaria é contígua ao teatro. Esta porta alcatifada abre para um
pequeno corredor, que vai ter no nº 23, o camarote de estrangeiros.
—O
quê? Um teatro! O camarote dos estrangeiros!
—Sim,
senhor, um pequeno camarote para duas ou três pessoas somente, o que é da maior
distinção. É gradeado, atapetado de verde e está perto da cena. Agrada a V.
Exa.? Hoje, representa-se o Dom Juan,
do célebre Mozart: o lugar custa escudo e meio: lançaremos na conta.
Disse
estas últimas palavras abrindo a porta do camarote porque, ouvindo eu pronunciar
o nome de Dom Juan, tinha-me precipitado para o corredor.
A
sala era vasta, bem ornada, bem iluminada: os camarotes, a plateia estavam
cheios de espectadores. Os primeiros
sons da sinfonia deram-me excelente ideia da orquestra e, se os cantores ajudassem
um pouco, por certo que ia desfrutar dignamente a obra-prima do grande mestre.
No movimento andante, o terror sombrio e terrível regno all pianto lançou em minha alma profunda apreensão. A música
festiva do sétimo compasso alegro ressoou com o grito ruidoso do crime, e
pareceu-me ver sair das trevas espíritos de fogo com garras luminosas, e depois
a dança doidejante de homens à beira do abismo.
Ao meu espírito, apresentou-se luta da natureza com as forças
desconhecidas que a cercam para destruí-la. Enfim, a tempestade aplaca-se: o
pano ergue-se.
Embrulhado
no capote, tremendo de frio, Leporello dirige-se à meia-noite para o pavilhão,
murmurando:
Notte
e giorno faticar...
Assim,
eu digo em italiano: Ah! che piacere!
Vou, pois, ouvir todos os recitativos como o mestre os compreendeu e nos
deixou.
Dom
Juan precipita-se na cena acompanhado de Dona Ana, que retém o culpado pelo
capote. Que olhar! Poderá ser maior, e mais majestosa, no andar; porém, que
fronte! Como fogo de artifício, que não se pode extinguir, os olhos expulsam a
cólera, o amor, o ódio, o desespero. Negras tranças de cabelo ondeam-lhe o
pescoço: o vestido branco esconde e descobre graças que não podem ser vistas
sem perigo. O coração, agitado por motivo desumano, palpita com violência... E
que voz! Non sperar se non m’uccidi.
No
tumulto dos instrumentos, a voz de Dona Ana sobressai como relâmpago. Em vão, Dom
Juan se esforça em separar-se dela. Desajará ele isto? Por que não repele
energicamente essa mulher? Por que não foge? Seu crime tirou-lhe a força, ou a
luta do ódio e do amor lhe cortam a resolução?
O
velho pai pagou com a vida a loucura que teve em combater este feroz adversário
na escuridão. Dom Juan e Leporello adiantam-se e conversam juntos em frente da
cena. Dom Juan tira o capote e aparece com a veste magnífica de veludo bordado
a prata: a estatura é nobre e majestosa; o rosto, varonil; os olhos,
penetrantes; os lábios, voluptuosamente desenhados. O movimento das
sobrancelhas empresta à fisionomia uma certa expressão diabólica, expressão que
faz nascer terror involuntário, sem alterar a beleza das feições. Poderíamos
dizer que ele deve exercer mágico poder de fascinação, e que arrasta as
mulheres que vê, e que as subjuga com essa força misteriosa, que conduz ao
abismo.
Alto
e magro, trazendo colete de listras vermelhas e brancas, um pequeno capote
vermelho e chapéu branco na cabeça com pluma rubra, Leporello acompanha o amo.
O rosto mostra a singular mistura de sinceridade, astúcia, ironia e audácia.
Percebe-se que esse velho maroto é digno de ser o criado mimoso de Dom Juan.
Felizmente, eles fugiram escalando o muro... Archotes... Aparecem Dona Ana de Dom
Otávio, homem pequenino, enfeitado, afetado, delicado, e que não tem mais de
vinte anos. Como desposado de Dona Ana, devera sem dúvida morar em casa dela,
visto que o chamaram depressa. Ao primeiro rumor que ouviu, poderá ter vindo e
talvez salvado o pai de Dona Ana. Porém, antes de tudo, julgou necessário
vestir-se cuidadosamente, e, além disso, ele não gosta de arriscar-se nas
trevas:
Ma
qual mai s’offre, o Dei, spettacolo funesto agli occhi mei!
Nos
acentos dolorosos e medonhos deste duo e deste recitativo há mais que o
desespero. Não é só o atentado de Dom Juan e a morte do velho que podem
produzir sons como esses: é uma guerra interna, uma luta horrível.
A
magra e comprida Dona Elvira, conservando ainda os sinais de peregrina
formosura, malgrado já desbotada, queixa-se do pérfido Dom Juan e o malicioso
Leporello judiciosamente observa que ela fala como livro:
Parla
come um libro stampato.
Neste
momento, senti que havia alguém atrás de mim. Pudera alguém ter aberto a porta
do camarote e sentado no lugar do fundo. Para mim, foi uma penosa descoberta.
Julgava-me tão feliz por me achar sozinho no camarote, por desfrutar
sossegadamente aquela obra-prima, por dar largas a todas as minhas sensações,
que uma só palavra, uma palavra comum, houvera-me dolorosamente roubado o
entusiasmo poético e musical que desfrutava. Resolvi não dar atenção ao meu
vizinho, nem falar-lhe, nem olhá-lo, e abismar-me no êxtase daquela
representação. Encostando a cabeça sobre a mão, voltando as costas ao
recém-chegado, continuei a olhar. A peça apresentava-se do melhor modo. A
pequena Zerlina, brincalhona, amável, distraía com as suas canções o pobre e
ingênuo Mazetto. Dom Juan exprimia a precipitação de sua alma, o prazer que
sentia em desprezar os seus semelhantes, e com vigor cantava esta ária
acelerada e interrompida:
Fin
ch’han dal vino.
A
expressão dos seus músculos tornara-se mais viva.
Apareceram
os mascarados: o trio era uma prece harmoniosa, que subia ao céu. Depois,
abre-se o fundo do teatro: a alegria manifesta-se; os copos tinem; os
camponeses, os mascarados, atraídos pela festa de Dom Juan, alegremente se
confundem. Os três mascarados conjurados para a vingança aproximam-se e, até
começar a dança, tudo se reveste de caráter solene. Zerlina é salva e Dom Juan,
com a espada em punho, marcha denodado contra os inimigos, desarma o rival e
abre caminho por entre a multidão perturbada.
Muitas
vezes julguei ouvir atrás de mim uma respiração pura, ardente, e o rugir das
sedas de um vestido. Julguei seria uma mulher quem estria ali. E, mergulhado de
todo no mundo poético, não quis distrair-me. Quando o pano desceu, voltei o
rosto para a minha vizinha... Não há palavras que possam descrever a minha
surpresa: vi Dona Ana como acabara de ver a cena, fitando-me com os olhos
vivos, expressivos. Emudeci ao vê-la e os seus lábios desataram uma espécie de
sorriso imperceptível, no qual eu vi refletir-se minha párvoa figura. Conheci a
necessidade de falar-lhe, e a admiração — ou antes o terror — paralisava-me a
língua. Enfim, dos meus lábios saíram, contra aminha vontade estas palavras:
—Vós
aqui? Como é possível?
Respondeu-me
no mais puro toscano que, se eu não falava italiano, seria impossível ter o
gosto de conversar comigo, porque não entendia outra língua. Como cântico
harmonioso vibrava a sua voz, os olhos tornavam-se mais expressivos, e o lume
que desprendiam infamava-me o coração, fazia-me palpitar as artérias com mais
força.
Era
a própria Dona Ana, sem dúvida. Não me vinha a ideia como estava ela na cena e
no meu camarote. Como o sonho feliz, que vence as maiores dificuldades, como a
fé ardente que sobe às regiões sobrenaturais, que domina as fases ordinárias da
vida, assim uma espécie de sonambulismo prostrava-me na presença dessa mulher a
tal ponto que, se eu a vira ao mesmo tempo no teatro, por certo que não me
espantara. Como poderei contar o diálogo que tive? Tentando traduzi-la a cada
palavra, é pálida, é fria e as frases tornam-se grosseiras para exprimir a
graça, a delicadeza do idioma toscano.
Enquanto
ela me entretinha acerca do papel que representava, e de Don Juan, pareceu-me que o gênio deste primor de arte pela primeira
vez se manifestava ao meu pensamento, e que pela primeira vez me confundia umas
regiões maravilhosas de um mundo estranho. Disse-me que a vida de sua vida era
a música, e que muitas vezes, quando cantava, sentia comoções desconhecidas, e
que não podiam ser descritas.
—
Sim — exclamava com voz entusiasmada, com olhar cintilante —, então entendo
tudo, porém tudo que me cerca é frio, inanimado, e enquanto me aplaudem os
garganteios difíceis, parece que mão de ferro esmagam-me o coração ardente.
Porém, vós entendeis a minha alma, porque não vos é desconhecido esse império
maravilhoso, esse mundo romanesco, onde ressoam mágicas harmonias.
—Mulher
adorável, como podeis conhecer-me?
Falou
em uma das minhas óperas e pronunciou o meu nome.
Ouviu-se
o apito do teatro e a rápida palidez cobriu o rosto de Dona Ana. Pôs a mão no
coração, como se o magoasse uma dor repentina, e murmurou com voz débil:
—
Infeliz Ana, eis os teus mais terríveis momentos...
Dizendo
isto, desapareceu.
O
primeiro ato havia-me extasiado. Porém, depois desta aparição estranha, a
música produziu-me efeitos inexprimíveis. Era como a realização, há muito
esperada, dos mais belos sonhos de minha vida. Era como se todos os
pressentimentos de minha alma reproduzissem timbres harmoniosos. Na cena de Dona Ana, senti-me como se
arrebatado em cálida de voluptuosa atmosfera. Meus olhos cerraram-se
involuntariamente e julguei sentir em meus lábios um beijo ardente, beijo
rápido e imperceptível como um som melodioso.
Ouço
retumbar alegremente o confuso fina:
Giá la mensa è preparata!
Dom
Juan, sentado entre duas moças, mexia ora com uma, ora com outra, e fazia
saltar rolhas das garrafas para dar livre saída aos espíritos gasosos
encerrados no cristal. Isto acontecia num quarto estreito, no fundo do qual se
avistavam, por uma janela gótica, as sombras da noite. Enquanto Elvira lembrava
ao infiel todos os seus juramentos, via-se o fuzilar dos relâmpagos, ouviam-se
rugidos abafados, que anunciavam a tempestade prestes a desabar. Enfim, batem à
porta com violência. Elvira e as moças fogem. Por entre as horrendas
consonâncias dos espíritos subterrâneos, o colosso de mármore caminha e põe-se
em frente a Dom Juan, que a seu lado parece minúsculo. O chão treme sob os pés
do gigante. No meio da tempestade que ruge, dos raios que estalam, dos demônios
que urram, Dom Juan pronuncia o seu nome terrível. A hora fatal chegou, a
estátua desaparece, um vapor espesso inunda a sala, e desse vapor surgem
fantasmas horrendos. De tempo em tempo, vê-se Dom Juan lutando com demônios. De
repente, ouve-se o estrondo de uma explosão: os espíritos infernais e Dom Juan
desaparecem. Não se sabe como, Leporello está desmaiado no fundo do quarto. Que
prazer não se sente ao tornar a ver os outros personagens que procuram Don
Juan! Parece que acabam de escapar à medonha coorte dos demônios. Dona Ana
tornou a aparecer. Como está mudada! Em
seu rosto, estampa-se a palidez da morte, os olhos estão amortecidos, a voz é
trêmula, desigual e, contudo, produz mavioso efeito no pequeno duo com o noivo
afável, que deseja celebrar já as núpcias, feliz de se livrar assim do pesado
encargo da vingança.
O
coro rematou perfeitamente a ópera e eu, entregue à minha exaltação, fui
encerrar-me no quarto. O criado veio chamar-me para a ceia: acompanhei-o
maquinalmente. A sociedade era numerosa e a representação de Dom Juan ocupava
os ânimos. Todos concordavam em louvar o canto dos italianos, e o modo de
representar. Porém, algumas reflexões destacadas e maliciosas provaram-me que
ninguém compreendeu e suspeitou o profundo sentido deste primo das óperas. Dom
Otávio Agradou muito, Dona Ana pareceu um pouco apaixonada.
—
Devia — disse um dos convivas — moderar-se na cena, e não manifestar comoções
exaltadas.
Fazendo
esta reflexão, o crítico saboreou uma pitada de rapé, olhou de um modo
inteligente e satisfeito para o seu vizinho, que dizia ser a italiana mulher
formosa, mas um pouco desleixada nos enfeites, porque na ária principal um dos
anéis do cabelo lhe açoitava o rosto.
Outro pôs-se a cantarolar em voz baixa a ária: Fin ch’han dal vino, e uma senhora observou que não estava contente
com o Dom Juan, que era sombrio demais e que não sabia mostrar-se leviano ou
frívolo. Contudo, louvaram muito a explosão final.
Aborrecido
de tantos desagradáveis ditos, retirei-me para o quarto.
Camarote dos
Estrangeiros nº 23
Sentia-me
incomodado: o calo do meu quarto era extremo.
Pareceu-me, à meia-noite, ouvir pronunciar o meu nome junto à porta
alcatifada. “Quem me proíbe — disse comigo —, quem me proíbe ver mais uma vez o
lugar onde me ocorreu essa aventura singular? Pode ser que eu veja novamente
aquela que vive em meu pensamento. Não é difícil levar ali uma pequena mesa,
duas velas e um tinteiro”.
O
criado vem servir-me o ponche que eu lhe pedira: acha o quarto vazio, a porta
alcatifada aberta, segue-me no corredor, lança-me um olhar equívoco. A um sinal
que lhe faço, põe o bule na mesa e retira-se, olhando-me como quem desejava
questionar. Encostando-me na borda do camarote, contemplo a sala deserta e a
arquitetura que, ao frouxo clarão das velas, desenha reflexos estranhos,
sombras fantásticas. O vento agita o pano do palco. “Se o erguessem, se Dona Ana aparecesse ainda
na sua terrível agitação. Dona Ana!”
Meu
grito perde-se nos espaços da sala, vibra nos instrumentos da orquestra, um
sonido confuso despende-se, julgo que murmuram esse nome querido e não posso
vencer uma espécie de terror oculto, embora me cause comoção agradável.
Acalmo-me,
enfim. E eis-me disposto, querido
Teodoro, a dizer-te como entendo essa obra prima do grande mestre e a sua
profunda concepção. A alma ideal é quem pode encarnar-se na natureza ideal: o
espírito da poesia, que recebe a consagração no templo, é quem pode compreender
a linguagem do entusiasmo. Se considerarmos o poema de Dom Juan sem procurar
nele significação profunda, se considerarmos somente o romance que lhe forma o
assunto, apenas se concebe como pôde Mozart meditar e compor, à vista de tal
motivo, semelhante música.
O
homem ardiloso, que morre pela demasia do vinho e das mulheres, que de
propósito convida para a sua mesa a estátua de pedra do velho que matou e que
morreu defendendo a própria vida, em verdade não revela muita poesia e, falando
com franqueza, esse homem não merece que as potências infernais se conjurem
para procurá-lo, e que a estátua de pedra anime-se, e mova-se, e desça do
cavalo para o convidar à penitência, e que o demônio mande arrebata-lo ao outro
mundo pelos seus melhores satélites.
Podes-me
crer, Teodoro, a natureza sorriu a Dom Juan como a seu filho querido. Deu-lhe
tudo o que o distingue do homem vulgo, dos trabalhos, dos cálculos insípidos.
Aproximou-o da essência divina. Fez com que vencesse, com que dominasse.
Deu-lhe estatura grande de majestosa, rosto resplandecente de fogo celeste,
alma profunda, inteligência rápida e viva. Mas a terrível consequência do
pecado original é o poder que tem o demônio de fascinar o homem, quando se
esfola por atingir o infinito. É o poder que tem de lhe armar ciladas no
próprio sentimento da sua natureza divina. Esta luta do princípio celeste e do
princípio diabólico produz a paixão terrena, e a vitória que daí nasce produz a
vida sobrenatural. A organização física de Dom Juan inflamou-lhe a ambição e o
desejo insaciável, que lhe nasceu do ardor do sangue, precipitou-o à procura de
todos os prazeres passageiros, nos quais procurava em vão o gozo completo.
Não
há coisa no mundo que exalte mais o homem que o amor. O amo, por sua influência
misteriosa e forte, esclarece e perturba os elementos da natureza. Devemo-nos,
pois, admirar que Dom Juan tivesse a esperança de que o amor havia de
saciar-lhe os desejos que o agitavam, e que o demônio empregasse este meio para
o perder? Foi ele que persuadiu Dom Juan, que pelo amor, pelo gozo da mulher,
havia de encontrar na terra a realização das promessas celestes que temos
gravadas na alma, assim como o fim dessa aspiração infinita que nos leva ao
contato das regiões superiores.
Correndo, sem descansar, de beleza em beleza; embriagando-se,
fartando-se nos encantos da beleza; sempre julgando-se enganado nas escolhas
que fazia; esperando sempre atingir o ideal da felicidade, por fim Dom Juan
haveria de aborrecer-se desta vida positiva e, como desprezava os homens, irritou-se
contra as aparições que havia invocado, e que dele fizeram inútil ludibrio. Já
não lhe trazia prazeres terrenos a mulher que subjugasse, e, para melhor dizer,
era o objeto de insultos desmedidos à natureza humana e ao seu criador. O
desprezo irônico pelas coisas da vida, acima das quais supunha estar, fez com
que zombasse cruelmente das brandas e queixosas criaturas. Cada vez que roubava
uma noiva querida, cada vez que rompia violentamente a ventura de dois amantes,
alcançava magnífico triunfo sobre a natureza, sobre o criador e sobre essa
força inimiga que o arrastava para fora dos limites da vida ordinária. Queria
ultrapassar estes limites e, desta vez, devia despenhar-se no abismo. O rapto de Dona Ana, com as circunstâncias
que o acompanharam, foi a empresa mais audaciosa que tentou.
A
formosura peregrina de Dona Ana é como o contraste de Dom Juan. Como Dom Juan é
o homem da beleza de uma força maravilhosa, assim é Dona Ana a mulher divina,
cuja alma celeste furtava-se ao poder de Satanás. Os demônios só podiam tocar
em sua vida terrena e, consumada uma vez sua perda, a justiça do Céu devia
cumprir-se.
Para
o seu alegre festim, Dom Juan convida, gracejando, o velho que matou, e o velho
não se importa de voltar do outro mundo para o chamar ao arrependimento. Porém
o coração de Don Juan está de tal modo perdido que a divina glória não lhe pode
sequer emprestar um raio de esperança, nem o sentimento de uma vida melhor.
Como
já te disse, Dona Anna é o contraste de Dom Juan. Era destinada para lhe fazer valer
os quilates de uma natureza divina e salvá-lo do desespero de inúteis esforços.
Ela a viu tarde, viu na hora do crime, e o pensamento diabólico de perdê-la é o
que sente. Ela não é salva: quando aparece, o crime está feito. Sente arder no
coração o fogo dos sentidos, o ardor do inferno, e não pode resistir. Só Dom
Juan podia inflamar-lhe esse delírio voluptuoso, que a faz lançar em seus
braços e sucumbir ao ardil dos demônios. Quando ele se afasta, ela sente as
agonias todas da sua queda. A morte de seu pai, assassinado por Dom Juan; a sua
aliança com o fio, o vulgar Dom Otávio; o ardor da paixão que a devora; o
arrojo impetuoso do ódio reúnem-se para atormentá-la. Sabe que a perdição de
Dom Juan pode sossegá-la um pouco; porém, será a sua morte esse sossego. Sem
descansar, instigará à vingança o noivo indolente: ela mesma persegue o infiel,
e quando o vê, arrebatado pelas potestades infernais, descansa um pouco. Mas
não pode ceder ao desejo ardente do esposo e diz-lhe: Lascia, o caro, un anno ancora allo sfogo del mio cor! Ela não
sobreviverá a esse ano e Dom Otávio jamais há de estreitar nos braços aquela a
quem um pensamento piedoso salvou das garras de Satanás.
Ah,
que comoções não sentia a minha alma ao ouvir a música pungente do primeiro
recitativo e aquele da surpresa noturna! A própria cena de Dona Ana no segundo
ato, que, superficialmente considerada, julga-se ter relação com Dom Otávio,
revela em melodias ocultas, em arrojos maravilhosos, toda a agitação de sua
alma. Que pensamentos enérgicos naquelas palavras que o poera escreveu talvez
sem entendê-las:
Torse un giorno il cielo ancora
sentira pieta di me!
Ouço
duas horas. Uma aragem elétrica banha-me o corpo. Sinto o aroma dos suaves
perfumes italianos, que me deram a conhecer ontem a presença de minha vizinha.
Sons harmoniosos é que podem exprimir a felicidade que sinto: as cordas do
piano da orquestra murmuram. Meu Deus! Parece que ouço a voz de Dona Ana levada
nas asas de uma música aérea. Parece que
a ouço cantar:
Non
mi dir bell' idol mio...
Abre-te
a meus olhos região longínqua e desconhecida, reino das almas, paraíso
esplêndido, onde, com a alegria imensa, a dor celeste realiza nos corações
absortos as promessas todas deste mundo. Deixa-me entrar no círculo das
aparições sublimes. Oxalá que os sonho que derramas no homem, ou como objeto de
terror, ou como mensageiros da paz, oxalá que possam eles levar o meu espírito
às regiões etéreas, quando o sono prender o meu corpo em laços de chumbo!
Conversação na mesa
redonda.
Um homem discreto batendo na tampa
de sua caixa de rapé:
—É
pena que não possamos ouvir tão cedo uma ópera. Essa fatal exageração é a causa
disto.
Um homem trigueiro:
—
Sim, sim. Muitas vezes eu disse isto. Ontem o papel de Dona Ana arrebatava-a
muito: estava como louca. Em todo o entreato ficou desmaiada e teve ataques
nervosos na cena do segundo ato.
Um homem insignificante:
—Oh,
conta-me isso!
O homem trigueiro:
—Sim,
ataques nervosos. E não a puderam levar fora do teatro.
Eu:
—Em
nome do céu! Tenho fé que os ataques não serão perigosos. Veremos a senhora
novamente em breve?
O homem discreto, tomando uma
pitada:
—Será
difícil. A senhora morreu esta noite às duas horas em ponto.
Fonte: “O Cidadão”/PE,
edições de 12 a 19 de fevereiro de 1854.
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