COMO TUDO ACONTECEU - Conto Clássico de Terror - Arthur Conan Doyle
COMO TUDO
ACONTECEU
Arthur Conan Doyle
(1859 – 1930)
Tradução de Paulo Soriano
“Daquela
noite, consigo recordar-me de algumas coisas muito claramente, ao passo que
outras são como sonhos vagos e interrompidos. É isto o que torna tão difícil
para mim contar uma história coesa. Já não faço a mínima ideia do motivo que me
levou a Londres, de onde regressei muito tarde. Aquela noite se confunde com
tantas outras em que lá estive. Mas, a partir do instante em que desci na
pequena estação ferroviária rural, tudo me fica extraordinariamente claro.
Consigo reviver tudo novamente, em cada um dos seus instantes.
Recordo-me
perfeitamente de ter percorrido a plataforma, olhando para o relógio iluminado
da estação, que marcava onze e meia. Recordo-me, igualmente, de ter perguntado
a mim mesmo se chegaria em casa antes da meia-noite. Lembro-me, então, do
grande automóvel, com seus faróis ofuscantes, esperando por mim lá fora. Era o
meu novo Robur, de 30 cavalos de força, que me fora entregue naquele mesmo dia.
Recordo-me ainda de ter perguntado a Perkins, meu motorista, como o meu novo
carro estava se saindo, e de tê-lo ouvido dizer que ele era uma máquina
excelente.
—
Verei por mim mesmo — disse, subindo para o assento do motorista.
—
O câmbio é diferente —disse-me ele. —Talvez, senhor, seja melhor que eu
dirija...
—
Não — respondi. — Eu gostaria de experimentar.
Então
começamos um percurso de cinco milhas à minha casa.
O
meu antigo automóvel tinha a alavanca de marchas, como era o usual, encaixada
na barra de direção. No novo, a alavanca deslocava-se em gradis para atingir as
marchas mais altas. Não foi difícil aprender lidar com ela, e logo eu acreditei
que dominara a novidade. Era uma temeridade, sem dúvida, tentar habituar-me a
um novo sistema de câmbio em plena escuridão noturna, mas muitas vezes fazemos
loucuras sem que tenhamos de pagar o justo preço por elas. Tudo corria muito
bem até chegarmos a Claytall Hill. Esta é uma das piores encostas da
Inglaterra, com uma milha e meia de comprimento, declives e três curvas
bastante acentuadas ao longo do percurso. Os portões de meu estacionamento
ficam bem no sopé da encosta, voltados à estrada principal para Londres.
Estávamos
justamente chegando ao cume da encosta, onde a subida era mais íngreme, quando
os problemas começaram. Eu seguia a toda velocidade e quis descer em fuga
livre, mas a embreagem não respondeu e eu tive de retornar à terceira marcha.
Naquele momento, o carro voava. Tentei acionar os dois freios, mas ambos
falharam sequencialmente. Eu não fiquei apreensivo quando senti a resposta
inútil dos pedais de freio. Mas quando puxei o freio de mão com toda força, e a
alavanca ascendeu ao máximo sem qualquer resultado, suei frio. Naquele momento,
ganhávamos um declive. Os faróis iluminavam perfeitamente. Consegui vencer sem
dificuldades a primeira curva. Na segunda, por um triz, evitei uma vala. Depois
desta curva-se, abria-se uma reta de uma milha até a última delas. Ultrapassada
a derradeira, chegaríamos à entrada do estacionamento. Se conseguisse
alcançá-la, tudo sairia bem, porque o aclive entre o portão e a minha casa
certamente faria o automóvel parar por si mesmo.
Perkins
comportou-se magnificamente bem e eu gostaria que este detalhe fosse conhecido.
Ele se mantinha impassível, malgrado alerta. Eu havia pensado de início em
invadir a ribanceira, mas ele percebeu a minha intenção.
—
Eu não faria isto, senhor — disse ele. — A esta velocidade, vamos capotar.
Ele
estava certo, evidentemente. Perkins desligou o interruptor elétrico e
continuamos à solta. Ainda corríamos a uma velocidade assustadora. Ele pôs as
mãos no volante.
— Vou mantê-lo estável — disse ele —, caso
queira saltar. Nunca conseguiremos contornar essa curva. É melhor saltar,
senhor.
—
Não — respondi. —Vou ficar. Se você quiser, Perkins, pode saltar
—
Ficarei com o senhor.
Se
eu estivesse dirigindo o carro antigo, teria reduzido a marcha lançando mão da
alavanca e veria o que iria acontecer. Certamente, ela teria saltado de suas
engrenagens ou se danificado de alguma forma, mas nos restaria alguma chance.
Com o novo carro, a redução era impraticável. As rodas rangiam com o vento
forte e a carroceria gemia ao seu impacto. Mas os faróis continuavam em ordem e
eu podia guiar com precisão. Recordo-me ter pensado no quão terrível, conquanto
majestosa não seria a visão de nosso carro para algum outro veículo que viesse
ao nosso encontro. A estrada era estreita e aquele que viesse em nossa direção
teria uma morte terrível.
Começamos
a fazer a curva com as rodas um metro acima da inclinação da ribanceira.
Imaginei que iríamos capotar, mas, depois de um instante de oscilação, o carro
aprumou-se e seguiu e frente. Havíamos vencido a terceira curva, a última.
Restava-nos, apenas, o portão do estacionamento, que estava à nossa frente.
Mas, por azar, não em linha reta. Encontrava-se a cerca de vinte jardas à
esquerda da estrada em que corríamos. Talvez eu pudesse conseguir, mas acho que
a caixa de direção fora avariada quando enfrentamos a ribanceira. O volante não
girava facilmente. Saímos da pista. À esquerda, vi o portão aberto. Girei o
volante com todas as forças dos meus punhos. Eu e Perkins fomos lançados para
frente e, no instante seguinte, a roda dianteira direita chocou-se contra o
piloti do lado esquerdo do portão, a cinquenta milhas por hora. Eu ouvi o
choque. Senti que voava em pleno ar, e então, e então...
*
Quando
me dei conta de minha própria existência, estava no mato, sob a sombra dos
carvalhos, ao lado da guarita. Um homem estava de pé ao meu lado. Imaginei que
seria Perkins. Mas, ao olhar para ele com atenção, vi que era Stanley, um
camarada que eu conhecera na faculdade, alguns anos antes, e por quem eu tinha
um afeto genuíno. Havia na personalidade de Stanley um quê de simpatia que me
cativava e eu me sentia orgulhoso em pensar que inspirava nele a mesma
impressão. Naquele instante, fiquei surpreso ao vê-lo ali. Mas eu me sentia
como alguém que sonha, tonto e abalado, mas preparado o suficiente a aceitar
sem questionamentos as coisas como elas eram.
—
Que acidente! — disse eu. — Meu Deus, que desastre terrível!
Eu
não era absolutamente capaz de me mover. Na verdade, não tinha qualquer vontade
de tentá-lo. Mas os meus sentidos estavam completamente alertas. Eu vi os
destroços do automóvel iluminados por lanternas que se moviam. Vi um pequeno
grupo de pessoas e ouvi vozes abafadas. Estavam ali o vigilante e sua mulher, e
mais uma ou duas outras pessoas. Eles não se ocupavam comigo, mas se agitavam
em torno do carro. Então, de repente, ouvi um grito de dor.
—
O peso está a comprimi-lo. Ergam com cuidado! — gritou uma voz.
—
É só a minha perna — respondeu uma outra voz, que reconheci como sendo a de
Perkins. — Onde está o meu patrão? —disse ele num gemido.
—
Estou aqui! —respondi. Mas ninguém parecia escutar-me. Todos pareciam
debruçados sobre que algo jazia na frente do carro.
Stanley
pousou uma das mãos no meu ombro e o seu toque era indescritivelmente suave.
Apesar de tudo, eu me sentia leve e feliz.
—
Não sente dor alguma, não é verdade? — perguntou-me ele.
—
Nenhuma.
—
Nunca sentimos dor.
Então,
de repente, uma onda de espanto perpassou o meu espírito. Stanley! Standey! Mas
Stanley... Stanley havia morrido de febre tifoide em Bloemfontein, na Guerra
dos Boers!
—
Stanley!
Eu
chorava, e as palavras pareciam sufocar na minha garganta.
— Stanley, você está morto!
Ele
olhou para mim com a mesma suavidade, aflorando um saudoso sorriso nos lábios.
—
Você também — respondeu.”
Foi
o que a médium escreveu numa página psicografada.
Ilustração: Cyrus Cuneo
(1879 – 1916).
Comentários
Postar um comentário