O TRIPLO ROUBO DE BELLAMORE - Conto Clássico Cruel - Horacio Quiroga
O TRIPLO ROUBO
DE BELLAMORE
Horacio Quiroga
(1878 – 1937)
Tradução de Paulo Soriano
Há
alguns dias, a Justiça condenou Juan Carlos Bellamore a cinco anos de prisão
por roubos cometidos a diversos bancos. Tenho alguma relação com Bellamore: é
um rapaz magro e circunspecto, cuidadosamente vestido de preto. Considero-o tão
incapaz de tais façanhas como de qualquer outra que exija nervos inflexíveis.
Sabia que ele era um eterno empregado de banco; vária vezes o ouvir dizer — e
repetia —, melancolicamente, que não tinha futuro: jamais seria outra coisa. Sei,
além disso, que, se alguma vez um funcionário fora pontual e discreto, este era
certamente Bellamore. Malgrado eu não tenha sido seu amigo, eu o estimava, e
sentia muito por sua desgraça. Ontem à noite, comentei o caso num grupo.
—
Sim —disseram-me—, ele foi condenado a cinco anos. Conhecia-o um pouco, era
muito reservado. Como é que não me ocorreu que deveria ser ele? A denúncia
chegou a tempo.
— Como? —perguntei,
surpreso.
—A denúncia; denunciaram-no.
—Nos
últimos tempos — acrescentou outro —, tinha perdido muito peso.
E
concluiu, sentenciosamente:
—Já
não confio mais em ninguém.
Mudei
rapidamente de conversa. Perguntei se conheciam o denunciante.
— Soube-se dele ontem.
É Zaninski.
Eu
estava muito ansioso por ouvir a história da boca do Zaninski; primeiro, a
anormalidade da denúncia, desprovida de qualquer interesse pessoal; segundo, o
meio de que se valeu para a descoberta. Como soubera que fora Bellamore?
Zaninski
é russo, embora tenha estado fora de sua pátria desde criança. Fala lenta e
perfeitamente o espanhol — tão bem que chega a ser dolorosa tal perfeição —,
com o seu ligeiro sotaque do Norte. Tem uns olhos azuis afetuosos, que costumam
fixar-se com um sorriso doce e mortificante. É uma pena que, nestes tempos de
simples estupidez, não saibamos mais em que acreditar quando nos dizem que um
homem é estranho.
Nessa
noite, encontrei-o à mesa de um café, numa reunião. Sentei-me um pouco
afastado, pronto a ouvir a conversa, cautelosamente, à distância.
Conversavam
sem ânimo algum. Eu esperava pela história, que fluiria inevitavelmente. De
fato, examinando o mau estado de um papel de pagamento, alguém fizera
recriminações bancárias, e Bellamore, crucificado, veio à memória de todos.
Zaninski estava lá, é preciso que se diga. Por fim, decidiu-se; aproximei um
pouco mais a cadeira.
—
Quando o roubo foi cometido no Banco Francês — disse Zaninski — eu estava
voltando de Montevidéu. Como todos, interessava-me a audácia do procedimento:
uma clandestinidade de tal envergadura sempre foi um negócio arriscado. Todas
as investigações foram infrutíferas. Bellamore, como empregado do caixa, foi
especialmente interrogado, mas nada se descobriu contra ele ou terceiros. O
tempo passou e tudo foi esquecido. Todavia, em abril do ano passado, houve,
incidentalmente, a lembrança de um roubo efetuado em 1900 no Banco de Londres,
em Montevidéu. Foram mencionados alguns nomes de funcionários comprometidos, dentre
eles Bellamore. O nome chocou-me; perguntei e soube que se tratava de Juan
Carlos Bellamore. Naquela altura, eu não suspeitava absolutamente dele; mas essa
primeira coincidência abriu-me o caminho e descobri o seguinte:
“Em
1898, houve um roubo no Banco Alemão de San Pablo, em circunstâncias tais que
só um empregado próximo ao caixa poderia tê-lo feito. Bellamore fazia parte do
quadro de funcionários do caixa.
“A partir desse
momento, não duvidei nem por um instante da culpa de Bellamore.
“Examinei
escrupulosamente o que se sabia sobre o assalto triplo e fixei toda a minha
atenção nestes três dados:
“1º)
Na tarde anterior ao roubo de San Pablo, coincidindo com uma forte entrada na
caixa, Bellamore desentendera-se com o caixa, fato altamente notável, dada a
amizade que os unia e, sobretudo, o carácter plácido de Bellamore.
“2º)
Também na tarde anterior ao roubo de Montevidéu, Bellamore dissera que somente
roubando poderia fazer fortuna, e acresceu, rindo, que sua vítima predileta
seria o banco no qual trabalhava;
“3º)
Na noite anterior ao roubo do Banco Francês de Buenos Aires, Bellamore,
contrariando os próprios costumes, passou a noite em diferentes cafés, cheio de
alegria.
“No
entanto, estes três dados eram, para mim, três provas contrárias a ele,
desenvolvidas da seguinte forma:
“No
primeiro caso, só uma pessoa que tivesse passado a noite com o caixa poderia
ter-lhe tirado a chave. Bellamore estava, casualmente, aborrecido com o
caixeiro naquela tarde.
“No
segundo, que pessoa preparada para um roubo conta, no dia anterior, o que irá
fazer? Seria uma estupidez pura e simples.
“No
terceiro, Bellamore fez todo o possível por dar nas vistas; expondo-se, em
suma, para ficasse bem lembrado que ele, Bellamore, era o que menos poderia
agir nos subterrâneos naquela noite fatídica.
“Estes
três aspectos eram para mim absolutos — talvez arriscados de sutileza para um
reles ladrão, mas perfeitamente lógicos para o fino Bellamore. Além disso, há
alguns detalhes privados, que tendem mais à normalidade que os anteriores.
“Assim,
pois, a tríplice coincidência fatal, a sutil tríade de conduta de um culto
rapaz que irá roubar, e as circunstâncias consabidas deram-me a convicção
completa de que Juan Carlos Bellamore, argentino, de vinte e oito anos, fora o
autor do triplo assalto praticado no Banco Alemão de San Pablo, no Banco
Londres e Rio da Prata de Montevidéu e no Banco Francês de Buenos Aires. No dia
seguinte, enviei a denúncia”.
Zaninski
Concluiu. Depois de muitos comentários, o grupo se dispersou; Zaninski e eu seguimos
juntos pela mesma rua. Não nos falamos. Ao despedir-me, disse-lhe de repente,
desabafando:
—Mas
acreditas que Bellamore foi condenado com base nas provas da sua denúncia?
Zaninski
olhou-me com os seus olhos afetuosos.
—Não
sei; é possível.
—
Mas isto não prova nada! É uma loucura! — Acrescentei. —Não é suficiente para condenar
um homem!
Assoviando,
ele não me respondeu. Passados uns instantes, murmurou:
—
Assim deve ser... Cinco anos é o
bastante....
E
deixou escapar de repente:
—A
ti eu posso dizer tudo: estou absolutamente convencido da inocência de
Bellamore.
Voltei-me
de repente para ele, olhando-o nos olhos.
—
Seria coincidência demais — concluiu ele, com um gesto cansado.
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