YUKI ONNA, A MULHER DA NEVE - Conto Clássico de Terror - Koizumi Yakumo
YUKI ONNA, A
MULHER DA NEVE
Koizumi Yakumo
(Lafcadio Hearn)
(1850 – 1904)
Tradução de Paulo Soriano
Numa
aldeia da província de Musashi[1]
viviam dois lenhadores: Mosaku e Minokichi. Nessa época, Mosaku era um homem
velho; Minokichi, seu aprendiz, era um jovem de dezoito anos. Todos os dias,
eles iam juntos para uma floresta, situada a cerca de cinco milhas da aldeia. Há,
no caminho, um rio largo a atravessar; e há uma balsa. Por várias vezes
construíram-se pontes no trecho percorrido pela balsa; mas a pontes sempre foram
arrastadas pelas enchentes. Ponte alguma comum pode resistir à corrente quando
o rio transborda.
Mosaku
e Minokichi voltavam para casa, numa noite muito fria, quando uma grande
tempestade de neve os alcançou. Chegaram à balsa e descobriram que o barqueiro
havia partido, deixando o barco na margem oposta do rio. Nadar, naquele dia,
era impossível, e os lenhadores tiveram de abrigar-se na cabana do barqueiro,
julgando-se afortunados por encontrarem algum refúgio. Não havia braseiro na
cabana, nem lugar apropriado para fazer uma fogueira. Estavam numa simples cabana
de duas esteiras[2],
com uma única porta, mas sem janela. Mosaku e Minokichi fecharam a porta e
deitaram-se para descansar, cobertos com suas capas de chuva de palha. A
princípio, não sentiam muito frio e julgavam que a tempestade logo passaria.
O
velho adormeceu quase imediatamente; mas o jovem Minokichi permaneceu desperto
por muito tempo, ouvindo o vento terrível e o contínuo bater da neve na porta.
O rio rugia e a cabana balançava e rangia como um barco no mar. Era uma terrível
tempestade. O ar tornava-se cada vez mais frio e Minokichi estremecia sob a
capa de chuva. Contudo, apesar do frio, ele finalmente adormeceu. Mas foi
acordado pela neve que fustigava o seu rosto. A porta da cabana fora arrombada
e, sob a luz da neve (yuki-akari), ele viu uma mulher na sala — uma
mulher toda vestida de branco. Ela estava curvada sobre Mosaku e soprava-lhe a
face. Aquele sopro era como uma fumaça branca e brilhante. Quase no mesmo
instante, ela se virou e inclinou-se sobre Minokichi, que tentou gritar, mas
descobriu que não conseguia emitir som algum. A dama branca aproximou-se
gradativamente do rapaz, até que seu rosto quase o tocou. Então ele o quão bela
era a dama, embora seus olhos transbordassem de pavor. Por algum tempo, ela
continuou a olhá-lo. Depois sorriu e sussurrou:
— Eu pretendia conferir-lhe o mesmo tratamento que dispensei ao outro homem. Mas não posso deixar de sentir pena de ti, porque és muito jovem. És um belo garoto, Minokichi, e não vou ferir-te agora. Mas, se contares a alguém — até mesmo à sua própria mãe — sobre o que viste esta noite, eu o saberei; e, então, vou matar-te. Lembra-te do que eu digo!
Tendo
assim falado, ela se afastou e transpôs os umbrais. Só então ele viu que era
capaz de mover-se. Levantou-se e olhou para fora. A mulher, contudo, não estava
em lugar nenhum e a neve penetrava furiosamente na cabana. Minokichi fechou a
porta e prendeu-a, nela fixando diversos pedaços de madeira. Ele se perguntou
se o vento a teria aberto; pensou que poderia estar apenas sonhando e que teria
confundido o brilho da luz da neve, incidindo sobre a porta, com a figura de
uma mulher de branco. Mas não tinha certeza. Chamou Mosaku e atemorizou-se, porque
o velho não respondeu. Estendeu a mão no escuro, tocou o rosto de Mosaku e
descobriu que ele era gelo puro! Mosaku estava rígido e morto...
Ao
amanhecer, a tempestade passou, e quando o barqueiro voltou ao seu posto, pouco
depois do nascer do Sol, encontrou Minokichi caído, inconsciente, ao lado do
corpo congelado de Mosaku.
Minokichi
recebeu prontamente o socorro e logo voltou a si; mas permaneceu muito tempo
doente, por conta dos efeitos do frio daquela noite terrível. Também ficou
muito assustado com a morte do velho companheiro; nada disse, contudo, sobre a
visão da mulher de branco. Assim que melhorou, voltou à sua faina, indo sozinho
à floresta todas as manhãs, e voltando
ao anoitecer com seus feixes de lenha, que sua mãe o ajudava a vender.
Uma
noite, no inverno do ano seguinte, quando voltava para casa, Minokichi alcançou
uma garota que, por acaso, viajava pela mesma estrada. Ela era uma moça esguia
e muito bela, que respondera à sua saudação com um timbre tão agradável quanto
a de um pássaro canoro. Ele pôs-se a caminho ao lado da jovem e eles puseram-se
a conversar. A jovem disse chamar-se O-Yuki[3];
que havia perdido recentemente os pais; que seguia para Yedo[4],
onde tinha alguns parentes pobres que poderiam ajudá-la a obter um emprego.
Minokichi logo se sentiu encantado por aquela estranha; e quanto mais ele olhava para ela, mais linda ela lhe parecia ser. A ela perguntou se já era noiva, mas ela respondeu, rindo, que estava livre. De sua feita, a moça perguntou a Minokichi se ele era noivo ou casado, e ele respondeu que, embora tivesse apenas uma mãe viúva para sustentar, a questão pertinente a uma "nora honrada" ainda não havia sido considerada, pois ele era muito jovem...
Depois
dessas confidências, eles caminharam por um tempo em silêncio. Mas, mas, como diz
o provérbio, Ki ga areba, me mo kuchi hodo ni mono wo iu: "Quando o
desejo existe, os olhos podem dizer tanto quanto a boca".
Quando
chegaram à aldeia, já estavam muito satisfeitos um com o outro. Então, Minokichi
pediu a O-Yuki que descansasse um pouco em sua casa. Depois de alguma tímida
hesitação, ela o seguiu. A mãe deu-lhe as boas-vindas e preparou-lhe uma
refeição quente. O-Yuki se comportou tão graciosamente, que a mãe de Minokichi,
de plano, gostou dela e a convenceu a adiar sua viagem para Yedo. E,
naturalmente, a verdade é que Yuki nunca seguiu para lá. Ela permaneceu em
casa, como uma “nora honrada”.
O-Yuki
provou ser uma excelente nora. Quando a mãe de Minokichi faleceu — cerca de
cinco anos depois —, suas últimas palavras foram de carinho e elogios à mulher
de seu filho. E O-Yuki deu à luz a dez filhos — meninos e meninas –, todos eles
belíssimos e de pele muito clara.
Por
sua natureza tão distinta dos demais, os camponeses consideravam O-Yuki uma
pessoa maravilhosa. A maioria das camponesas envelhece cedo; mas O-Yuki, mesmo
depois de ter se tornado mãe de dez filhos, parecia tão jovem e revigorada como
no dia em que chegara àquela aldeia.
Certa
noite, depois de as crianças terem ido para cama, O-Yuki costurava à luz de uma
luminária de papel. Minokichi, observando-a, disse-lhe:
—
Ver-te assim costurando, com a luz a incidir sobre a tua face, me faz rememorar
algo estranho que me aconteceu quando eu tinha dezoito anos. Naquela época, vi uma
mulher tão linda e branca como estás agora. Na verdade, ela se parecia muito
contigo.
Sem tirar os olhos da
costura, O-Yuki respondeu:
— Conta-me sobre ela...
Onde a viste?
Então
Minokichi contou-lhe sobre a noite terrível na cabana do barqueiro. E sobre a mulher
nranca que se curvara sobre ele, sorrindo e sussurrando. E sobre a morte
silenciosa do velho Mosaku.
—
Dormindo ou acordado — disse ele —, foi a única vez que vi uma pessoa tão linda
quanto tu. Claro, ela não era realmente um ser humano; e eu tinha medo dela — muito
medo —, mas ela era tão branca! Na verdade, nunca tive certeza se foi um sonho,
ou se a mulher da neve...
O-Yuki
largou a costura, levantou-se e curvou-se para Minokichi, que estava sentado, e
gritou-lhe:
—
Era eu! Eu.. Eu... Eu! Era Yuki! E eu te
disse, naquela ocasião, que te mataria se dissesses uma palavra sobre isso! Não
fossem as crianças, que agora dormem, eu te mataria neste instante! Doravante,
é melhor que cuides muito bem delas; pois, se algum dia elas tiverem motivos
para reclamar de ti, eu te tratarei como bem mereces.
Enquanto
clamava, sua voz tornava-se aguda, como o grito do vento. Então esfumou-se em
uma névoa branca e brilhante, que subiu até as vigas do telhado, e se esvaiu
numa cortina de fumaça. Ninguém jamais a viu novamente.
Ilustrações: Herlambang, Keishu
Takeuchi (1861-1942), Greg Rukowsky.
Notas do autor:
[1] Antiga província cujos limites abrangiam a maior parte da atual Tóquio e partes das prefeituras de Saitama e Kanagawa.
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