A CRIANÇA - Conto Clássico de Horror - Guy de Maupassant


 

A CRIANÇA

Guy de Maupassant

(1850 – 1893)

Tradução de Paulo Soriano

 

Depois do jantar, conversava-se sobre um aborto que acabara de ocorrer na cidade. A baronesa indignou-se: seria possível tal coisa? A jovem, seduzida por um açougueiro, jogou o filho numa cova! Que horrível! Provou-se, até, que a pobre criaturinha não morreu instantaneamente.

O médico, que naquela noite jantava no castelo, forneceu, calmamente, detalhes horríveis daquele incidente; e parecia espantado com a coragem da miserável mãe, que houvera caminhado dois quilómetros, depois de dar à luz, sozinha, para assassinar o filho. Ele repetiu:

 — É de ferro, essa mulher! E de que selvagem energia ela precisou para atravessar a floresta, à noite, com seu filho choramingando nos braços! Continuo perturbado diante de tamanho sofrimento moral. Pense, então, no terror daquela alma, no dilaceramento daquele coração! Como é odiosa e miserável a vida! Preconceitos infames — sim, senhora, preconceitos infames —, uma falsa honra, mais abominável que o crime, todo acúmulo de sentimentos artificiais, de honrabilidade odiosa, de honestidade revoltante, impelem ao homicídio, ao infanticídio de pobres criancinhas que obedeceram, sem resistência, à imperativa lei da vida. Que vergonha para a humanidade estabelecer moralidade de tal espécie e converter em crime o abraço livre de dois seres!

A baronesa empalideceu de indignação.

—Então, doutor — respondeu —, pões o vício acima da virtude, a prostituta à frente da mulher honesta! Aquela que se abandona aos seus instintos vergonhosos parece-te igual à esposa irrepreensível, que cumpre o seu dever com a integridade da sua consciência!

O médico, um velho que já havia tratado de muitas feridas, levantou-se e, em voz alta, disse:

— A falas de coisas que ignoras, por nunca teres conhecido paixões invencíveis. Deixa-me contar-te sobre uma aventura de que fui testemunha recentemente.

 

*

 

“—Oh, senhora, sejas sempre indulgente, gentil e misericordiosa! Nada sabes destes assuntos.

“Pobre de quem a natureza pérfida conferiu sensações insaciáveis! Pessoas calmas, nascidas sem instintos violentos, vivem honestamente, por necessidade. O dever é fácil para aqueles que nunca são torturados por furiosos desejos.

“Vejo pequenas mulheres burguesas de sangue frio, com uma moral rígida, uma mente mediana e um coração moderado a soltar gritos de indignação quando tomam conhecimento das faltas cometidas por decaídas.

“Ah! Dormes pacificamente numa cama tranquila, já que não és assombrada por sonhos selvagens. Aqueles ao teu redor assemelham-se a ti e agem como a tua pessoa, preservados pela sabedoria instintiva de seus próprios sentidos. Tu quase não lutas contra as aparências das coisas. Sozinha, a tua mente, às vezes, segue pensamentos preconceituosos, sem que todo o teu corpo se levante ao simples toque da ideia tentadora.

“Mas entre aqueles que o acaso levou à paixão, senhora, os sentimentos são invencíveis. Para o vento é possível deter o mar tempestuoso? É possível impedir as forças da natureza? Não. Os sentimentos também são forças da natureza, invencíveis como o vento e o mar. Levantam e arrastam o homem e lançam-no na voluptuosidade, sem que ele consiga resistir à veemência do seu desejo. Mulheres impecáveis ​​são mulheres sem temperamento. Elas são muitas. Não lhes sou grato pela sua virtude, porque elas não precisam lutar. Jamais, como se sabe, uma Messalina, uma Catarina será sábia. Elas não podem sê-lo. Foram criadas para carícias furiosas! Os órgãos dessas mulheres não se assemelham aos teus; a carne delas é diferente, mais vibrante, mais apavorada ao menor contato com outra carne; e os nervos delas atuam, importunam-nas, domam-nas, enquanto os teus, senhora, nada sentem. Experimenta, pois, alimentar um falcão com pequeninos grãos redondos, que são dados aos papagaios! No entanto, são dois pássaros que têm grandes bicos em forma de gancho. Os seus instintos, todavia, são diferentes.

“Oh, os sentimentos! Se se soube quão poderosos eles são! Os sentimentos que as mantêm ofegantes durante noites inteiras, a pele quente, o coração acelerado, a mente atormentada por visões enlouquecedoras! Veja, senhora, pessoas com princípios inflexíveis são simplesmente pessoas frias, desesperadamente ciumentas uma das outras, sem que o saibam.

“Escuta-me.

“Aquela que chamarei de senhora Hélène era sensível, desde a mais tenra infância. Em seu caso, a sensibilidade despertou assim que primeiras as palavras foram pronunciadas. Dir-se-ia que estava muito doente. Mas por quê? Não fora ela sempre um tanto frágil? Consultaram-me quando ela tinha doze anos. Constatei que ela já era uma mulher, e que era assediada, sem descanso, por desejos amorosos. Era suficiente olhá-la para senti-lo. Tinha lábios carnudos — arrebitados, abertos como flores—, pescoço forte, pele quente, nariz largo, um pouco aberto e palpitante, e grandes e claros olhos que inflamavam os homens.

“Quem poderia ter acalmado o sangue daquela fera ardente? Passava as noites em prantos, sem motivo. Sofria mortalmente por não ter um companheiro.

“Aos quinze anos, enfim, se casou.

“Dois anos mais tarde, o seu marido morreu de ataque cardíaco. Ela o havia esgotado.

“Um outro, em dezoito meses, padeceu do mesmo destino. O terceiro resistiu durante quatro anos e depois a abandonou. Chegara ao seu limite. Deixada sozinha, queria continuar prudente. Tinha todos os seus preconceitos. Finalmente, um dia ela me chamou, pois padecia de preocupantes ataques nervosos. Prontamente, percebi que ela iria morrer de viuvez.

“Disse-lhe isto. Ela era uma mulher honesta, uma senhora; apesar da tortura que sofria, não quis seguir meu conselho de arranjar um amante.

“No campo, diziam que ela era louca. Saía à noite e exercitava-se desordenadamente para enfraquecer o seu corpo rebelde. Caía em síncopes seguidas de assustadores espasmos.

“Vivia sozinha em seu castelo, próximo ao de seus pais. De vez em quando, ia visitar a mãe, sem saber o que fazer contra a implacável volição da natureza ou contra a sua própria vontade.

“Então, certa noite, por volta das oito horas, ela entrou em minha casa quando eu terminava o jantar. Logo que ficamos sozinhos, ela me disse:

“— Estou perdida. Estou grávida!

“Mexi-me na cadeira.

“— O que estás a me dizer?

“— Estou grávida.

“—Tu?

“— Sim, eu.

“E, de repente, com a voz entrecortada, disse-me, olhando-me na cara:

“— Grávida do meu jardineiro, doutor. Enquanto caminhava no parque, desmaiei. Ao me ver cair, o homem, em meu socorro, correu e me pegou nos braços. O que eu fiz? Eu não sei o que eu fiz! Eu o abracei, o beijei? Talvez o tenha feito. Tu conheces minha miséria e minha vergonha. Finalmente, ele me possuiu! Sou culpada, porque voltei a me entregar a ele, da mesma maneira, no dia seguinte e em outras ocasiões. Estava tudo acabado. Eu não mais podia resistir!

“Um soluço subiu-lhe à garganta. Depois, prosseguiu com voz orgulhosa:

“—Eu paguei por isso. Preferi o jardineiro ao amante que me aconselhaste a ter. Ele me engravidou.

"’Oh, confesso-te sem reservas e sem hesitação. Tentei fazer um aborto. Tomei banhos quentes, montei cavalos indóceis, fiz trapézio, tomei drogas, absinto, açafrão e muito mais. Mas não tive sucesso.

“’Conheces meu pai, meus irmãos! Estou perdida. Minha irmã é casada com um homem honesto. Minha vergonha vai refletir-se igualmente neles. E pensa em todos os nossos amigos, em todos os nossos vizinhos, no nosso nome, na minha mãe...’".

“Ela começou a soluçar. Tomei suas mãos e fiz-lhe perguntas. Então aconselhei-a a fazer uma longa viagem e dar à luz longe dali.

“Ela respondeu: “Sim… sim… sim… é isso…”, sem parecer que me ouvia. Despois, partiu.

“Fui vê-la várias vezes. Ela estava ficando louca.

“A ideia daquela criança crescendo em seu ventre, daquela vergonha viva penetrou em sua alma como uma flecha afiada. Pensava naquilo o tempo inteiro, e não se atrevia a sair durante o dia ou a ver quem quer que fosse, por medo de que seu abominável segredo fosse descoberto. Todas as noites, despia-se diante de seu guarda-roupa espelhado e olhava para o seu ventre deformado. Então, atirava-se ao chão, com uma toalha na boca para abafar o choro. Vinte vezes por noite ela se levantava, acendia a vela e voltava para frente do grande espelho, que lhe refletia a imagem abaulada de seu corpo nu. Então, perturbada, ela esmurrou o ventre para matar aquele ser que a destruía. Uma terrível luta travou-se entre eles. Mas o ente não morria e, constantemente, agitava-se como se se defendesse. A mulher rolou no chão para esmagá-lo. Tentou dormir com um peso sobre o corpo para sufocá-lo. Ela o odiava como a um amargo inimigo que ameaçasse a sua própria vida.

“Depois dessas peleja inúteis, desses esforços impotentes para se livrar da criança, ela fugiu pelos campos, a correr, enlouquecida pelo infortúnio e pelo terror. Certa manhã, apanharam-na com os pés metidos num riacho; tinha os olhos perdidos. Julgou-se que ela delirava, mas nada aconteceu.

“Ela mantinha aquela obsessão: remover aquela maldita criança do corpo.

“Ora, sua mãe, uma noite, disse-lhe, rindo:

“— Como estás engordando, Hélène. Se estivesses casada, até que pensaria que estavas grávida.

“Tais palavras devem ter sido um golpe mortal para a mulher. Saiu quase imediatamente e voltou para casa.

“O que ela fez? Sem dúvida que ficou ainda a olhar, por muito tempo, o vente inchado. Sem dúvida, bateu na barriga, machucou-a, meteu com ela nos cantos dos móveis, como fazia todas as noites. Depois, descalça, desceu à cozinha, abriu o armário e pegou a faca grande, que era usada para cortar carne. Tornou a subir, acendeu quatro velas e sentou-se numa cadeira de vime em frente ao espelho. Então, exasperada de ódio contra aquele embrião desconhecido e aterrorizante, querendo arrancá-lo e finalmente matá-lo, querendo segurá-lo nas mãos, estrangulá-lo e jogá-lo fora, ela pressionou o local onde aquela larva se agitava e, com um único golpe da lâmina afiada, abriu o abdome. Oh, ela agiu muito depressa e com muita destreza, porque bem agarrou aquele ente, que até então não pudera atingir. Tomou-o por uma perna, arrancou-o de seu ventre e tentou atirá-lo às cinzas da lareira. Mas ele estava-lhe preso por laços que ela não conseguira quebrar; e, antes que compreendesse o que lhe demandava à separação definitiva, caiu sem vida sobre a criança, afogada numa torrente de sangue. Ela era realmente culpada, senhora?”.

 

*

 

O médico ficou em silêncio e esperou. A baronesa não respondeu.

 


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