A VÊNUS DE MILO - Conto de Horror - Paulo Soriano
A VÊNUS DE MILO
Paulo Soriano
Se habla de
sucesos raros, de la lógica invisible de los hechos absurdos...
Alfonso
Hernández-Catá
Eram
os estertores do regime monárquico em Portugal.
Afonso
Fernandes, único filho de Dom Idelfonso, o derradeiro Visconde de Almodôvar,
retornara ao solar paterno, no Porto, após formar-se, com louvor e distinção,
na escola de Medicina da Bahia. Mas não se demorou. Embarcou prontamente para a
França e se matriculou na Academia de Belas Artes de Paris.
A
escultura — cria ele — era a sua real vocação. E amava, com todas as fibras de
seu impetuoso coração, a Vênus de Milo. Quando criança, numa visita ao Louvre,
vira, com um estremecimento profundo, quase desumano, a Vênus maravilhosa — a
mais bela estátua feminina que as mãos humanas haviam extraído, como mágica, da
frialdade da matéria bruta. Desde então, jamais a olvidou.
De
volta a Portugal, Dom Afonso abriu — como se fosse um mero plebeu bem-sucedido
— um respeitável consultório em Beja. E, para não esmorecer em sua arte, compôs
um pequeno ateliê na mansarda de sua clínica.
Embora
o médico fosse indiscutivelmente talentoso, mais o era o escultor. Herdara não
apenas as nuanças e as feições, senão, sobremodo, a imensa habilidade artística
da mãe Emelinda. A viscondessa se suicidara, completamente ensandecida, no
hospício de Rilhafoles, aos 23 anos de idade. Mas isto era apenas um segredo de
família. Nada mais que isto.
***
Sim,
é verdade: ao jovem Dom Afonso não era nada fácil acomodar a vida do escultor à
do médico. Mesmo assim, não são poucas as belas esculturas fúnebres, de sua
lavra, que povoam o cemitério de Santa Clara de Beja. Ainda hoje, são elas objeto
de terror, e de profunda e circunspecta admiração.
***
Certa
feita, à tarde, Dom Afonso recebeu em seu consultório uma linda camponesa.
Chamava-se Leopoldina e era a última filha de uma pobre viúva das cercanias de
Mombeja.
—
Não é nada demais — disse-lhe o médico. — Cá tenho o medicamento de que
precisas. E não hás que me pagar a consulta. É preciso, todavia, que retornes
na quinta-feira. Verei se estarás de todo curada.
Quando,
após uma suave e encantadora mesura, a jovem partiu, o médico fechou as portas
opressoras do consultório e subiu ao reconfortante ateliê. Estirou-se no sofá.
Tremia da cabeça aos pés, o bom médico. Seria aquilo uma miragem? Seria a jovem
um súcubo cruel? Fora a Vênus de Milo encarnada o que acabara de ver? Fora
mesmo a Vênus de Milo? Fora mesmo?
Ainda
trêmulo, saiu do consultório e comprou, às pressas, três metros de linho branco
e um grande espelho emoldurado.
*
Ansiosamente,
o médico esperou pelo advento da quinta-feira.
Às
quatro da tarde, Leopoldina, muito cansada da longa viagem a pé, chegou,
finalmente, ao consultório.
Após
o exame, que à jovem camponesa pareceu deveras rigoroso e aprofundado,
disse-lhe o médico, franzindo gravemente o senho:
—
Vejo que os furúnculos não secaram em teus pés. Será preciso fazer-te uma
pequena cirurgia.
—
Vai doer? — perguntou a jovem, assustada.
—
Se não tomares anestesia, decerto que sim — redarguiu o doutor.
—
Quero, então, o éter — concluiu a jovem, resignada.
Aplicado
o bálsamo, pôs-se o artista — que prontamente substituíra o médico — a realizar
a sua obra-prima.
Passou-se
um tempo.
A
moça ainda dormia quando o artista fê-la sentar-se numa poltrona sedosa. Tinha
ela os seios desnudos. O baixo vente, o púbis e as pernas estavam esmeradamente
cobertos por um pesado — e belíssimo — manto de linho cuidadosamente plissado.
Quando
Leopoldina abriu os olhos, diante de um espelho imenso, soltou um grito de
horror.
Então,
disse-lhe o doutor, com uma ternura atroz:
—
Por que te assustas? Não te admiras com a tua perfeita e nova conformação? Ora,
ter os braços amputados não foi um castigo; foi, para ti, em verdade, uma
imensa dádiva. Tu és, agora, uma obra-prima. A minha obra-prima. A maior das
obras-primas. És a Vênus de Milo em
carne e osso!
***
O
talentoso herdeiro de Dom Idelfonso, último visconde de Almodôvar, foi
recolhido ao hospício de Rilhafoles. Quiçá, um dia, em plena República,
recupere a razão.
muito bom, com final surpreendente !
ResponderExcluirObrigado, Roger! Há um quê de Apollinaire neste conto.
ExcluirSurpreendente, gostei!
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