MALES QUE VÊM PARA O BEM - Conto Cruel - Mário Terrabatava


MALES QUE VÊM PARA O BEM

Mário Terrabatava

 

O Sr. Jean-Paul de la Pailleterie, jovem capitão do exército de Napoleão Bonaparte, empregava em sua casa um casal de idosos, antigos criados do marquês, seu avô, mais por amor ao próximo que por necessidade de seus serviços.

Conquanto afável e atencioso para com as necessidades do velho François Villot e sua esposa Marie, era o capitão extremamente exigente quanto às fardas e paramentos militares, que deviam estar sempre à mão e sempre impecáveis. Amava sobretudo as suas magníficas botas de cromo alemão, produzidas pelos mais habilidosos sapateiros teutões, e dos quais possuía quatro pares.

Cabia ao velho Villot manter sempre escovadas e engraxadas aquelas preciosidades e, por mais que se esforçasse em apresentá-las limpas e reluzentes ao patrão, tinha de recomeçar o serviço várias vezes, porque o olhar aquilino do jovem militar nunca deixava de constatar um cisco invisível ou uma mossa imperceptível a olhos vulgares.

— Cá tens um par de óculos — disse, certa feita o capitão. — Doravante, espero que as minhas botas rebrilhem como diamantes.

Conquanto aquelas exigências exasperassem o velho serviçal, ele não reclamava e nem se mostrava amuado. Voltava a trabalhar com afinco, sem enfado ou ressentimentos, naqueles pares de botas de gala, até que se ajustassem às exigências absurdas do patrão. Mas, no íntimo, mandaria aquelas botinas ao inferno, se pudesse.

Em 1807, chegou a notícia de que Jean-Paul de la Pailleterie ferira-se gravemente em Auerstedt e que, em breve, retornaria para casa, a fim de convalescer em sossego.

Foi com surpresa que o casal Villot viu chegar o jovem patrão. Faltava-lhe uma perna, amputada acima do joelho esquerdo.

— Viste, François, a triste sina de nosso patrãozinho? — perguntou Marie ao marido.

— Como não poderia tê-la visto, mulher? Mas eu te digo que há males que vêm para o bem.

— Como, François, dizes uma coisa dessas? Não tens amor e nem sentes compaixão de nosso amo? Não o vimos nascer? Não o criamos, alimentamos e vestimos a vida inteira?

— Decerto que o amo e dele sinto dó — respondeu François, após um momento de sincera reflexão. — Mas isto não retira o que eu digo e digo novamente: há males que vêm para o bem.

— Mas... por quê?

— Quantas meias de nosso capitão tu lavas por semana, Marie?

— Creio que duas.

— E dantes?

— Quatro.

        — Pois bem. Doravante, passarás a lavar apenas duas meias de  um único pé. Quanto a mim, sem que me diminuam a remuneração, só terei ao meu encargo dois exemplares — e não quatro — daquelas botas infernais... 

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