MANUSCRITO ACHADO EM UMA CASA DE LOUCOS - Conto Clássico de Horror - Edward George Earle Bulwer-Lytton
MANUSCRITO
ACHADO EM UMA CASA DE LOUCOS
Edward George Earle
Bulwer-Lytton
(1803-1873)
Tradução de autor desconhecido do séc.
XIX
Sou
o primogênito duma numerosa família, distinta em sua posição e fortuna. Todos
os meus irmãos são belos, de elegante talhe; minhas irmãs são encantadoras.
Porque sou eu o único contrafeito, feio, lançado em meio desta brilhante
esfera, como uma discordância na harmonia da criação, uma maldição animada, um
objeto do horror e desgosto?
Não
há objeto que se ofereça ao ardor de meus desejos! Meu coração encerra a fonte
das mais vivas afeições e, em toda a natureza, não acha um ente em que empregue
a abundância de seus sentimentos. O amor! Maldito seja o mundo a quem causo
terror, e cujo rebotalho sou! A amizade foge à minha vista! Mesmo a compaixão,
depois de generoso esforço, se desvia de mim, estremecendo!
Nos
lugares por onde dirijo meus passos cerca-me duma atmosfera de ódio, e sou condenado
a errar em um labirinto horroroso, donde nada me pode tirar. Ambição, o prazer,
o desejo, de celebridade, todos os sentimentos comuns ao resto dos mortais são
outros tantos círculos mágicos, a que lhe não posso chegar sem horrível
tortura.
Possuo
conhecimentos tão profundos que, em comparação deles, a erudição dos mais
gabados sábios é ignorância; a energia que me anima é tão poderosa que reputo
suplício o descanso; minha benevolência universal se estende até o menor verme
que temo pisar. Deus misericordioso, que quereis que faça destes dons da
sabedoria e da natureza? Para empregá-los, é de mister que eu entre em contato
com os homens e, todavia, o instante que me aproximo deles é o sinal da mais
dolorosa agonia. Por toda parte encontro o riso do desespero ou o
estremecimento do terror; cada um de meus passos me conduz a um abismo, e para
mim a vida só tem venenos!
Quando
nasci, a ama que me estava destinada recusou-me o seio; minha mãe me viu e
perdeu momentaneamente a razão; meu pai me condenou como um monstro indigno de
viver. Os médicos me roubaram à morte. Malditos sejam eles por esta obra cruel!
Uma mulher, que era velha e vivia só, teve de mim compaixão, me recebeu em sua
casa e me educou. Creio e sinto violentamente a necessidade de amar. Amei tudo
que se me oferecia aos olhos; a terra, a erva fresca, o inseto que ela abriga,
e o animal selvagem! Tudo, desde o animal que se arrastava a meus pós até o
homem criado para contemplar o céu, e que se espanta à minha vista; desde o
ente mais nobre até o mais abjeto, a todos amei.
Ajoelhei-me
diante de minha mãe, conjurando-a que me amasse; ela estremeceu! Fui ter com
meu pai; ele me repeliu com horror! O mais vil escravo, altivo por possuir
forma humana, recusava ter relações com um ente marcado pela reprovação
celeste. Meu próprio cão, e eu havia escolhido o mais feio, tinha medo de mim e
fugia à minha vista. Repelido por todas as partes, vivi só e miserável, como
réptil no seio da pedra onde nasceu. A
meditação azedava minhas dores, e eu sofria os tormentos do exilio em um mundo onde
nunca devia inspirar afeição.
Banido
do comércio dos homens, entreguei-me à contemplação das belezas da natureza;
comuniquei-me mais intimamente com os mortos ilustres que nos legaram o fruto
de suas vigílias e trabalhos. A Terra me revelou todas as suas maravilhas; os escritos
dos sábios me abriram seus preciosos tesouros; li, examinei, refleti, penetrei
no asilo secreto onde se há refugiado a verdade, e minha alma conservou o cunho
de sua divina beleza.
Os
mistérios do mundo animado me apareceram sem véu; a experiência dalguma sorte
me deu o conhecimento do futuro e adornei com os encantos da poesia os mais a
abstratos e áridos objetos.
Mas...
ai! Quanto mais meu espirito se elevava, quanto mais minhas faculdades
adquiriam extensão e forças, tanto mais agudos eram meus sofrimentos quando me
via neste mundo de amor e felicidade, único condenado a não ser amado.
Resolvi-me
viajar. Procurarei — disse a mim mesmo — outras partes do globo, outros homens,
não credos à orgulhosa semelhança dos deuses e dos anjos. Na imensa variedade
de criaturas humanas, por que não haverá quem se pareça comigo? E, então, por
que não serei feliz? Despedi-me do único ente que por mim se interessara, a
mulher que me havia acolhido: ela tinha cegado, e estava imbecil; não desdenhou
estender sua trêmula mão sobre minha disforme cabeça; abençoou-me; não pôde, porém,
deixar de acrescentar:
—
Prouvera a Deus que tu não tivesses saído do nada!
Um
riso sardônico me escapou, e me retirei para longe de sua morada.
Uma
noite, depois de haver andado todo dia, achei-me, ao sair de um bosque, junto
duma linda casa rústica. Diversos arbustos, rociados pelo orvalho da noite,
deram ao vento seus doces perfumes; eu os aspirava com avidez! Este prazer ao
menos não me era proibido. Ouvi falar no jardim; eram vozes de mulher! Parei
para escutar: elas falavam do amor e das qualidades que o fazem nascer. Uma
delas pronunciou estas palavras, cujo encanto veio docemente ressoar em meu
coração:
—
Não, não é a beleza que atrairá a minha escolha; para obter a minha atenção, é
necessário que seja um espírito superior, feito para comandar os outros, e um
coração capaz de sentir uma afeição viva para submeter este espírito tão ativo
a minhas menores vontades. Enfim, quero gênio e amor; o resto é nada a meus
olhos.
—
Entretanto — disse outra pessoa —, não amaríeis um monstro, ainda que fosse um
prodígio de amor e inteligência?
—
Amá-lo-ia — respondeu a voz doce. — Sim, conheço meu coração. Ele
apaixonadamente se ligaria a um homem dotado de qualidades eminentes, tenha ele
qualquer deformidade.
Uma
abertura na cerca me permitiu ver a pessoa cujas palavras me haviam feito
entrar o céu no coração. Sua fisionomia era pensativa e melancólica; seus belos
cabelos loiros, repartidos com graça em uma fronte jovem e pura, davam sombra a
olhos de inexprimível doçura em cada um de seus movimentos, e, por assim dizer,
através da delicada transparência de sua tez, eu distinguia a expressão duma
alma elevada e do mágico poder do sentimento.
A
outros olhos, talvez, não seria bela, mas, aos meus, sua figura era celeste! Que
brilhante visão pôde oferecer tantos encantos e seduções como aquela, que faz
entrever a um coração, cheio da mais sombria desesperação, o primeiro raio duma
esperança?
Este
instante decidiu minha sorte. Escondi-me no bosque que rodeava sua morada;
partilhei a caverna dos animais ferozes e aí passei meus dias nos sonhos duma
paixão delirante. Logo que protetora sombra me podia subtrair às vistas,
aproximava-me dela, vigiava seus passos, escondia-me nas folhas para ouvir
ainda sua doce voz; passava as noites inteiras deitado por baixo da janela de
seu quarto e muitas vezes uma música terna interrompia seu sono. Por toda parte,
em seus passeios, ela encontrava versos que respiravam, da mesma forma que meus
cantos, o agradável incenso da admiração, o entusiasmo do mais apaixonado amor.
Eles excitaram sua curiosidade, seduziram sua imaginação ainda virgem. Por que se
não mirrou minha mão, por que se não extinguiu minha voz antes de lhe revelar
este amor maldito, antes de lhe fazer partilhar este sentimento execrando e
reprovado?
Disse-lhe em meus versos em minhas cartas que
havia ouvido sua conversação; cem vezes repeti que era mais feio do que o
demônio fantástico, criado pela imaginação em delírio dum selvagem do Norte; mas
disse-lhe também que a adorava, que para mim ela só era a natureza! E tinha uma
doçura e uma harmonia que pareciam desmentir a confissão de minha deformidade.
Ela
me respondeu e sua resposta criou em torno de mim um mundo novo encantado.
Repetia-me que, a seus olhos, nada era a beleza, que só a alma merecia o seu
amor, que o que sentia e escrevia como eu nunca podia ser-lhe odioso. Ainda
mais, prometia amar-me, ainda que eu fosse mais feio do que me havia pintado em
meus escritos.
Insensato,
acreditei em suas palavras! Envolto em um capote que me cobria inteiramente, confiando
no juramento que ela me fizera de não procurar ver-me antes do instante que eu
houvesse designado para esta revelação, atrevi-me a ir todas as noites ter com ela
em um bosque cerrado, onde apenas penetravam alguns fracos raios da Lua.
Desenvolvi-lhe,
em nossas longas conversações, todos os mistérios da naureza, todos os tesouros
da ciência; e, muitas vezes, de mistura com a lição do sábio, vinham pinturas
de um amor ardente.
Por
que tão curtos foram esses tempos felizes?
—Vai — me disse ela uma noite —, vai alcançar
dos homens essa apaixonada admiração que me inspiraste; justifica minha escolha
por brilhante nomeada; depois, vem reclamar minha palavra e sou tua.
— Jura-o? — exclamei, e ela fez o solene
juramento.
Neste
momento, a Lua penetrava através das folhas; vi brilhar seus olhos com o fogoso
entusiasmo; seu olhar era tranquilo e firme; parecia assenhorar-se de sua alma
uma profunda resolução; todo meu coração estremeceu! Apertei-lhe a mão
silencioso. Depois me retirei, e por muitos dias não ouviu falar de mim.
Escolhi
um retiro longínquo; sepultei-me mais que nunca nos abismos da ciência, e
percorri as etéreas regiões da poesia. Inumeráveis páginas se cobriam de
sublimes pensamentos que de há muito muito tinha em reserva. Dei-os ao mundo: ele
os recebeu com transporte. Os filósofos se inclinaram diante da profundidade de
minhas hipóteses, e os sábios seguiram ainda por muito tempo as novas sedas que
tracei. Não me limitei a graves e severas produções e, mais de uma vez, a
virgem tímida corou e suspirou, repetindo as ardentes expressões de meus
versos. Todas as idades, todos os sexos, todas as nações se uniram para admirar
o desconhecido gênio que, por um prodígio até então inaudito, ao mais alto
saber juntava todos os encantos da imaginação.
Voltei
para junto dela, tornei a vê-la com o mesmo mistério e sob as mesmas antigas
condições. Provei-lhe que era eu aquele cuja reputação tinha feito ressoar por
toda parte as vozes da fama. Seu coração o havia adivinhado. Reclamei minha
recompensa. A mais profunda obscuridade ocultou nossa união! O céu não tinha estrelas,
a terra não se movia, as folhas do bosque estavam imóveis! Ela se encostou
sobre meu seio, e nem um movimento de horror lhe perturbou o repouso.... Nossas
entrevistas se multiplicaram; eu era feliz! O fruto de nosso fatal amor ia
descobrir nosso segredo! Era mister fugir com ela, ou consagrar nossa união
pelas cerimônia dos homens, como o havia sido pela natureza! Toda demora se
tornava impossível; enganado por suas promessas, desvairado por lágrimas,
seduzido por meu próprio coração, decidi-me, e foi convencionado que, pela
primeira vez, veria seu amante, seu esposo, ao pé do altar que devia receber
nossos juramentos.
Chegou
o dia aprazado. Ela foi ao templo acompanhada somente por duas testemunhas e
por seu pai, que consentia em nosso casamento singular, porque a desonra era
para ele o maior infortúnio. Ela os havia disposto a ver um ente disforme,
hediondo; mas certo não os havia preparado para me verem!
Entrei.
Todos os olhos, exceto os seus, se voltaram pura mim; um grito de terror retumbou
pela abóbada do templo; o padre fechou o livro sagrado e involuntariamente murmurou
a formula do exorcismo. O pai caiu sem vida. As testemunhas saíram rapidamente
para fora da igreja. Era noite; as tochas espalhavam uma claridade falsa e
duvidosa; aproximei-me de minha noiva que, trêmula e banhada em lágrimas, não
se atrevia levantar os olhos para mim.
—
Olha — disse eu. — Olha, aqui está o teu esposo!
Tirei-lhe
o véu. Ela me viu, estremeceu e perdeu o sentimento de sua desgraça. Não a
levantei, não fiz o menor movimento, não pronunciei uma palavra. Meu destino se
revelava, a maldição era completa! Meu coração ficou frio e gelado. Levaram a
noiva. Pouco a pouco se foi enchendo a igreja, a multidão fixava suas vistas de
desprezo e terror sobre o monstro. Recobrei meus sentido e, dando um grito
agudo que pôs em fugida tudo que me rodeava, saí do templo e perdi-me no
bosque.
À
hora ordinária de nossas entrevistas, fui furtivamente à sua casa. A janela do
seu quarto estava aberta; entrei; não havia ninguém; entretanto, uma luz viva
alumiava o quarto; tochas ardejavam a cama de minha noiva: ela estava morta!
Nem
um gemido soltou meu peito. Não. Senti não sei que de alegria cruel, vendo o único
ente, que amava na Terra, frio, lívido, devendo em pouco ser pasto de vermes. Voltei-me:
um véu preto cobria uma mesa. Vi ainda um cadáver; era o dum menino! Reconheci minha
perfeita semelhança, a boca horrível, as feições hediondas, a pele lívida, os
membros fracos e peludos; era, em verdade, digno de seu pai!
Peguei
em minha mulher e meu filho, levei-os para a floresta, escondi-os em uma
profunda caverna e, deitado junto deles,
brincava com os vermes que os devoravam! Sim! Foi feliz o tempo que passei na caverna! Em breve só restavam ossos; enterrei-os com
cuidado, e depois voltei ao meu país natal. Meu pai tinha morrido, meus irmãos
pensavam que o mesmo me havia acontecido. Expeli-os todos de casa e tomei posse
dos títulos e dos bens. Quis ver a mulher que me havia criado! Mostraram.me o lugar de sua sepultura! Chorei
amargamente; por ela derramei lágrimas que não achei nem para minha mulher, nem
para meu filho! Vivi feliz por algum tempo. Descobriu- se, porém, que era eu o filósofo
desconhecido, o divino poeta cuja reputação encheu o mundo... Não houve mais descanso
para mim. A multidão concorreu à minha casa, uma multidão imensa cercou-a,
todos os olhos se fixavam em mim; eles me olhavam, e gargalhadas retumbavam por
toda parte, até o ar se povoou de espíritos infernais, cuja zombaria eu
ouvia... E desde esse dia nunca mais me deixaram, não tive mais uma hora de
solidão!
Fonte: “Gabinete de
Leitura”/RJ, edição de 1º de outubro de 1837.
Fizeram-se brevíssimas adaptações textuais.
Nossa! Estava procurando o conto que você me sugeriu, e antes vi este título que me chamou a atenção. Realmente o título é muito bom, vou ler. E o outro também.
ResponderExcluirreli o conto, pois gostei muito. Realmente Sir Bulwer Lytton é um dos gigantes da literatura sombria. E a tradução, muito bem feita.
ResponderExcluirSim, Roger. Temos um bom exemplo do romantismo inglês.
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