O BREJO DAS ALMAS - Conto de Terror - Paulo Soriano


 

O BREJO DAS ALMAS

Paulo Soriano

 

O alfange rútilo da lua,

Por degolar a nuca nua

Que me alucina e que eu não domo!…

Evoé Momo!

Manuel Bandeira.

 

Era o anoitecer da Segunda-Feira de Carnaval. Eu estava, de passeio, no Brejo das Almas.

— Não há mesmo ninguém na vila? — perguntei.

O cego Gumercindo respondeu-me, extraindo um fiapo de fumaça de seu cachimbo de barro:

— Não, não há. Faz mais de setenta anos que não há vivalma no velho Brejo das Almas.  

— Mas a vila me parece bem conservada.

— É verdade. Todos os anos, em janeiro e junho, as Senhoras dos Lilases cuidam de lavar todas as casas e de varrer, cuidadosamente, os paralelepípedos das ruas. A cada cinco anos, em dezembro, tratam de pintar as fachadas, consertar os telhados e reforçar as vigas e caibros das casas. E levam belas flores e água perfumada à igrejinha e ao cemitério. São mesmo devotas, essas pobres senhoras negras.

Eu já ouvira rumores acerca de eventos sobrenaturais no Brejo das Almas, o mais próximo remanescente de quilombo da capital. Aquela me parecia uma propícia ocasião para saber algo mais sobre os rumores. Eu ia fazer uma pergunta, propositalmente circunstancial, ao velho Gumercindo Prates, mas ele se antecipou com um sorriso tranquilo nos lábios:

— Vejo que você está interessado na história da vila, não é mesmo? Pois bem… Todos os anos bissextos, à meia-noite da Terça-Feira de Carnaval, algo extremamente fantasmagórico acontecia — e, tenho certeza, ainda acontece — no Brejo das Almas. Algo assustador. Quando menino, bem pirralho, eu vi…

O calmo sorriso do velho cego endureceu subitamente. Ele meteu o cachimbo na boca, reprimindo o esgar.

É bem verdade que, coartando uma nódoa de vergonha, eu queria estimular o meu amigo a continuar aquela história. Mas não foi preciso. Recuperado, ele prosseguiu, com a mansa voz de sempre:

— A cada quatro anos, à meia-noite da Terça-Feira Gorda, não se via ninguém nas três ruas da vila. Todas as casas estavam fechadas. Dentro delas, as mulheres rezavam o terço; na igrejinha de São Maurício, os homens se reuniam em silenciosa oração.

“Então, ouvia-se o clangor das campanas, vindo da colina de Santo Expedito. Escutava-se, depois, o ribombar dos tambores soturnos e o tilintar monótono das correntes, arrastando-se nas pedras rotundas do estreito caminho que levava ao Campo Santo dos Lilases. Um som espectral, cavo e seco, semelhante ao de gaitas de foles roufenhas, elevava-se lugubremente e ganhava intensidade à medida que se aproximava da morada dos mortos.

“Eu era apenas uma criança, mas tremia de medo daquela áspera vibração sonora. Mas era um medo tisnado de inquebrantável curiosidade. Ouvir aqueles acordes sinistros, quase excruciantes, era um convite à perdição. Eu sabia que, se olhasse pela janela, me arrependeria pelo resto da minha vida. Mas, ainda assim, como um ébrio diante de uma generosa dose de conhaque, não pude resistir à tentação.

“Eu estava sozinho em casa. Meu pai era viúvo e as minhas irmãs haviam sucumbido à gripe espanhola. Bem que meu bom pai me advertira a não sair da cama. Eu deveria permanecer deitado, mas estava alerta. E muito bem atento àquilo que se passava lá fora.

“Levantei-me e espiei devagarinho.

“À frente da sinistra procissão, carregando uma imensa cruz, estava um cadáver semiputrefeito. Atrás dele, seguia uma multidão de defuntos encapuzados, cujas grossas correntes de ferro, amarradas à cintura, tombavam ao chão e lhes reprimia a desenvoltura dos passos. Alguns não tinham olhos. Outros tinham os lábios devorados. Outros, sob as negras mortalhas, eram apenas mefíticos esqueletos.

“Algo etéreo iluminava aqueles mortos infelizes: era uma luz obscura, violácea, de misterioso e expressivo fulgor.


 


 

“E havia algo ainda mais aterrador: todos os cadáveres bailavam. Bailavam tropegamente, embriagados pela própria putrescência, ao som da melodia monótona, que escapava de suas entranhas vazias, e do clangor espargido por suas correntes de ferro.

“Percebi que os tambores vibravam com maior ênfase nas cercanias do campo santo e que, lá, a tonalidade roxa escura, que irradiava daquelas rotas vestes fúnebres, tornava-se ainda mais brilhante, intensa e fantasmagórica.

“Quando o último dos espectros penetrou nas aziagas sombras do cemitério, deixando atrás de si uma nuvem de miasma, tudo se acalmou. Os tambores silenciaram. As correntes acalmaram-se. As gaitas de foles rouquenhas mergulharam no vazio os seus mórbidos acordes.

“De súbito, veio um vendaval extraordinário, que reverberou — quase a ponto de estilhaçá-las — nas vidraças do Brejo das Almas. E do céu desceu uma luz intensa, mais forte que os raios do Sol merídio, e tão fugidia quanto um relâmpago do estio.

“Depois, tombou sobre a terra uma calmaria monótona, surda e sufocante. Tão sufocante quanto a negrura palpável — sim, verdadeiramente táctil — que traspassou a calidez da noite e devassou os meus olhos como pontiagudos cacos de vidro.

“Foi naquela noite que fiquei cego. Os homens e mulheres da vila, vendo o meu lastimável estado, resolveram, após uma pacífica assembleia, e a bem da sanidade e paz de espírito de seus filhos, abandonar a aldeia ancestral.”

— Lamento muito — disse-lhe. — Muito mesmo!

— Não há por que se lamentar, meu caro jovem — disse ele, maneando os crespos cabelos brancos. — Uma vez, a cada quatro anos, por alguns minutos, eu volto a enxergar. Não importa o que vejo: é sempre bom enxergar novamente. É quando eu me recolho à antiga casa de meu pai, abro o postigo e, num lampejo, vejo as almas desfilarem a sua parada de morte à meia-noite da Terça-Feira Gorda. E, olhando com atenção a face semipútrida do porta-estandarte carregando a imensa cruz, vislumbro claramente quem irá morrer em breve. Mas, como sou cego todos os demais instantes da vida, não posso saber, sem sombra de dúvidas, quem é o infeliz…  Salvo se, como às vezes sucede, o penitente, em sua pesada trajetória, entoa, em agonia da morte próxima,  alguma ladainha, em latim ou algo assim… É bem mais fácil reconhecer  — cofesso amargamente — alguém pelo timbre de sua voz…

— Por via das dúvidas — disse ao velho Gumercindo —, não me custa nada fazer um testamento. Este é um ano bissexto…

Gumercindo deixou escapar um reconfortante sorriso.

Despedimo-nos.

No seguinte dia, voltei a encontrar o cego Gumercindo, agora em Itapuã, onde eu assistria à passagem de um inocente bloco de mascarados.

Abalado, eu pude ver um laivo de amargura, de profunda tristeza, nos lábios do velho cego, quando ele se virou bruscamente em minha direção, ao escutar, num choque convulsivo, que evocava fúnebres lembranças recentes, o perceptícvlel timbre de minha voz…

 

Ilustração da entrada: Francisco Loureiro de Araújo.

Conto publicado originalmente em 9 de fevereiro de 2024.


Comentários

  1. Amigo Barão, vou ler, agora, só volto a trabalhar quarta feira de cinzas...O carnaval dá inspiração para contos, heim...

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  2. Lendo e lamento que acabou. Que história.

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