O VELHO MEFISTOFÉLICO - Conto de Terror - Rogério Silvério de Farias


 

O VELHO MEFISTOFÉLICO

Rogério Silvério de Farias

 

Ali, bem no topo daquele morro, aquele casarão antigo e sinistro mais parecia um monumento tétrico em louvor a tudo de ruim e malévolo engendrado pela mente humana no decorrer das eras sem fim. Era um casarão de madeira negra, alto, com poucas janelas. O estilo da construção lembrava o gótico. Lembrava; arquitetura igual àquela nunca se tinha visto antes, tal era sua estranheza. Os contornos da casa, a sua silhueta escura no topo da colina, realçava-lhe o aspecto sinistro, amedrontador, mal-assombrado.

Quando o frio inclemente fustigava como um chicote invisível os dias e as noites, uma bruma esbranquiçada e fantasmagórica, vinda do mar, circundava a casa toda, envolvendo-a como um manto, rodopiando numa lenta e aziaga coreografia, parecendo querer assombrar ainda mais a sombria vivenda e o próprio local, trazendo horrendos eflúvios e vozes quase imperceptíveis que mais pareciam o grito de todos os demônios do medo incrustados na mente dos mortais condenados à sina da carne e do sangue, à dor no destino da cruz da vida humana no mundo da angústia e da morte.

Então tudo se enchia de sombras e medo, tudo parecia ficar mais carregado, mais sombrio, mais apavorante.

Naquele casarão medonho vivia o ancião. Era um velho solitário, esquisito, arredio. Meio misantropo e meio anacoreta. Era na verdade, esse velho, um tipo terrivelmente esfíngico, enigmático. Misterioso como um habitante não- humano do plano astral.

 Quem passasse ali por perto, poderia ver por uma das poucas janelas envidraçadas sua silhueta negra passando, lá dentro, em meio à penumbra, como um fantasma demente na quarta dimensão.

Que mistério guardava aquela criatura macróbia[1] pouca gente sabia. Ninguém sabia ao certo de onde viera, qual seu ofício, a que família pertencia, do que vivia. Para muitos, era um mistério irritante, mas ao mesmo tempo assustador. O velho parecia ter vindo do passado longínquo, de um tempo remoto, tamanha era sua longevidade. Seus olhos estranhos, apesar de quase sem brilho algum, denotavam uma sabedoria oculta há muito esquecida pela atual civilização humana.

O povo do lugar – uma pequena cidade chamada Coirela Grande – era do tipo bem supersticioso. Assim, como quase sempre a superstição é a mãe de todas as lendas, surgiram ao longo dos anos inúmeras histórias atemorizantes acerca do tal velhote sinistro. E logo o ancião tornara-se um verdadeiro patrimônio vivo do medo e do horror, uma verdadeira lenda viva da minúscula Coirela Grande.

Havia quem dissesse que o tal velho era apenas um ancião caduco, um vetusto excêntrico cuja mente envergara com o peso dos anos e os horrores da vida e do mundo, e que, agora, não sabia de mais nada, perdendo-se por completo nos labirintos inextrincáveis da insanidade e da solidão senil. Mas a grande maioria – particularmente a arraia-miúda de Coirela Grande - persistia em afirmar que o velhote sabia de coisas que não deveriam ser descobertas, nem levadas ao público profano. Ele sabia de coisas estranhas, com certeza coisas deste e do outro mundo! Na verdade, afirmava-se que ele era uma espécie de hierofante[2], ou seja, um cultor das ciências ocultas. Que ele tinha realmente o dom de confabular com os espíritos dos mortos e dos demônios inumanos que habitam os mundos invisíveis que certamente coexistem com o nosso num intercâmbio quase que totalmente secreto.

Para os menos incrédulos restava apenas o consolo do velho brocardo de que por trás de uma lenda há sempre uma raiz de verdade.

Pouca gente gostava de passar por perto da casa do velho misterioso, e, para os mais místicos, toda a sua casa parecia envolta por uma aura mefítica de horror e morte tenebrosa.

Nas noites mais escuras, quando as sombras sinistras sedimentam todos os medos desvairados arraigados como cânceres negros na alma humana, ouvia-se um som estranho e assustador como o lamento de um fantasma torturado no

fogo do Inferno: o estranho som de um teremim[3]! Sim, um magnífico e estranho teremim! Todos sabiam que era o velho excêntrico quem o tocava. Era uma das poucas coisas que o povo sabia a seu respeito: ele era um amante das artes; sua música, bem como as estranhas e grotescas estátuas na frente do casarão atestavam isso.

Neste velho mundo de desgraçados e miseráveis, existe gente de toda laia, gente capaz de tudo para ver o seu maldito e mesquinho ego se dar bem na vida, gente que é capaz até mesmo de desafiar os arcanos do sobrenatural, execrá-los, zombar deles como se fossem umas pilhérias ridículas. Gente que não sabe que certas coisas precisam ser deixadas envoltas pelo véu do mistério, para que não tornem este mundo ainda mais ruim e para que não enlouqueçam ainda mais o pífio animal humano.

João Gadanho e Chico Saca-Boi eram exemplos desse tipo de pessoa. Além de ateus, eram à-toas. Típicos párias, safardanas gerados no ventre da miséria. A desesperança e o ódio eram as vitaminas perfeitas de seus cérebros degenerados. E, ainda por cima, os dois faziam da rapinagem o seu ganha-pão. Larápios, assaltantes. Safados no grau máximo, no grau absoluto, por assim dizer. Malandros, dois escrunchantes[4]    de primeira.  Enfim, dois  rebotalhos  da sociedade. Marginais cujo lema precípuo era: tudo por dinheiro custasse o que custasse, doesse a quem doesse.

Numa certa noite em que a lua cheia cintilava esplendidamente no céu como uma deusa nua de mortiço fulgor, espalhando sua voluptuosa luz perolada sobre o mundo escuro dos homens, eles dois resolveram assaltar o velho esquisito. Morando numa casa grande como aquela, o diabo velho provavelmente teria muita grana, talvez tesouros ocultos de incalculável valor!... Assim raciocinavam os dois ladrões, estúpidos como eram...

Seria moleza, os dois ratoneiros acreditavam. O velhote não tinha nem cães, o lugar era meio afastado do centro da cidade, tudo uma maravilha perfeita para ladrões como João Gadanho e Chico Saca-Boi.

Enquanto caminhavam furtivamente pelas sombras da noite, os dois sem-vergonhas confabulavam como dois demônios noturnos, arquitetando o plano diabólico:

— Acho que vai ser moleza, Gadanho. Mais moleza do que tirar pirulito de criança. O tal velho esquisitão vive sozinho como um bicho-do-mato. É coisa rara o traste sair de casa. É meio louco, dizem. Ouvi dizer que o velho tem parte com o Demo, que ele é ruim como o Zarapelho.

— É mesmo, Chico? — fez o escanifrado Chico Saca- Boi, que tinha os dentes da frente bem proeminentes, para fora, como se fosse um limpa-trilhos, o que, aliás, lhe valera o apelido: Saca-Boi. — Então o velho é ruim, é? Quando ele nos conhecer, vai saber o que é ruindade de verdade, parceiro!

E os dois cafunjes[5] gargalharam na noite aziaga como hienas prestes a avançar sobre um animal moribundo.

João Gadanho tossiu, cuspiu para o lado, e falou:

— Agora, vamos! E não esquece, Saca-Boi: se o velho empombar, a gente o despacha pro Inferno mais cedo do que ele esperava...

O portão de ferro enferrujado foi empurrado com vagar, mas mesmo assim a dobradiça guinchou alto como um demônio ferido.

Os dois ladrões caminharam pela pequena aléia macadamizada, em cujas margens pequenos ciprestes tornavam o lugar ainda mais estranho e lúgubre. Flores exóticas e multicores ornavam o pequeno jardim à frente dacasa, e seus perfumes eram tão exóticos e inebriantes que chegavam a ser quase narcóticos. Em alguns lugares, viam- se várias estátuas, estátuas estranhas aparentemente talhadas em alguma espécie de pedra negra representando homens, crianças e mulheres de todas as idades e de todas as épocas em poses grotescas, mórbidas e macabras. Eram esculturas bem grotescas, aquelas. No semblante das ditas estátuas via- se o medo e o desespero desenhados com maestria doentia. Aquelas obras de arte tinham um estilo realmente assustador, apavorante.

— Cada estátua esquisita...Olha só, Saca-Boi!.. São tão esquisitas, mas parecem terrivelmente reais! — disse João Gadanho, apontando com o queixo para uma delas, uma mulher com roupas muito antigas, em cujo rosto via-se uma verdadeira máscara de medo, agonia e dor.

— É... Quem será que esculpiu essas coisas horrorosas? O velho?

— Claro!...O velho louco, na certa? — arriscou Chico Saca-Boi, meio irônico.

— Pode ser mesmo. Ele deve ser um artista. Todo artista é meio louco. São uns esquisitos, esses sujeitos, os artistas!...O mundo não os entende, tampouco eles entendem o mundo...Tive um tio artista — pintor! — na minha família; morreu louco num hospício, o coitado...

Caminharam um pouco mais, até a soleira da porta.

— Agora passe o pé-de-cabra, Saca-Boi — pediu João Gadanho, murmurando.

— Toma aqui! — Chico Saca-Boi entregou a ferramenta que trazia oculta debaixo do velho e sujo sobretudo que ele roubara da casa de um leguleio[6] que o livrara da cadeia, certa vez.

João Gadanho ficou surpreso ao constatar que a porta não precisaria ser arrombada. Simplesmente a porta não estava trancada...

— Ué?... Aberta? A droga da porta aberta, Saca-Boi...

— O velho já deve estar bem caduco mesmo...

— Bem, vamos entrar e apavorar, então. A droga do pé- de-cabra terá uma outra utilidade, se o velho reagir — e João Gadanho soltou uma risadinha malvada.

A casa estava às escuras. Provavelmente o ancião já estaria entregue ao sono, a dupla acreditava.

— Mas que porcaria! Isto aqui está escuro como um túmulo! Não consigo ver quase nada. Acende logo a maldita lanterna, Saca-Boi — disse João Gadanho, murmurando.

Chico Saca-Boi retirou do bolso do sobretudo uma pequena e velha lanterna, acendendo-a de imediato.

O foco de luz passeou pelos cantos da casa como um fantasma vadio. Tudo era examinado detalhadamente. Todas as coisas de real valor seriam levadas pelos dois gatunos.

— O cheiro de mofo desta casa é pior do que a fedentina de um cadáver podre, cara — comentou João Gadanho. — Será que o velho não abre as janelas nem de dia? Vive enfurnado aqui o tempo todo, neste fedor miserável? Além de louco é porcalhão?...

Eles começaram a vasculhar tudo. Constataram que no andar inferior não havia muita coisa a levar. Havia uma grande quantidade de quadros na parede, representando épocas passadas, mas isso decididamente não interessava aos dois. Somente levariam dinheiro vivo, pratarias e jóias. A arte não representava nada para o par de pífios gatunos: aproveitaram para riscar e quebrar algumas telas como verdadeiros vândalos.

Foram até a biblioteca da casa. Era grande, espaçosa, repleta de obras raríssimas. Nada encontraram que lhes chamasse atenção. Livros também decididamente não interessavam a tipos como Chico Saca-Boi e João Gadanho. No entanto, um grande volume sobre um atril de ébano despertou a curiosidade de João Gadanho.

— Dá uma olhada nesta droga aqui, Saca-Boi...

Era um livro enorme, de capa negra e dura, o título sobressaindo-se em letras góticas e douradas: LIVRO NEGRO DAS ARTES MÍSTICAS, AUTOR ANÔNIMO.

— Além de esculpir, o velho é chegado em magia negra e satanismo... — disse João Gadanho, apontando o livro com o queixo para Chico Saca-Boi.

João Gadanho folheou o livro, iluminando as páginas com a luz da lanterna. Estranhos símbolos ornavam capítulos inteiros dedicados às artes místicas. Foram tais gravuras que despertaram interesse naqueles dois, não os textos em si, já que não entendiam quase nada.

Eles pararam de olhar o livro quando ouviram passos.

Passos lentos, trôpegos. Vinham do andar de cima.

Então o foco da lanterna foi dirigido ao cenho daquele ancião. Ele era um velho medonho, apoiado em uma bengala cujo castão lembrava um crânio humano. Os olhos do velho eram horrendos, sem brilho, pareciam os de um abutre morto ou de alguém com catarata em seus estágios mais avançados. Seu rosto horrivelmente encarquilhado, sua pele seca e lívida, tudo lhe dava a aparência de um verdadeiro morto-vivo. As escassas cãs rareavam, revoltas, cabeça acima, denotando sua idade avançada. Trajava uma espécie de roupão púrpura antigo.

       Vieram apreciar a minha arte, por acaso?... — falou o velho, rindo de um modo estranho.

João Gadanho, com o pé-de-cabra em riste e os dentes rilhados numa expressão de raiva, falou ameaçadoramente, a medida em que subia a escada, seguido por Chico Saca-Boi, que segurava a lanterna, focando a luz no rosto sinistro do ancião:

— Velho, ouça bem: queremos toda a grana e tudo o mais que você tiver de valor. E não tente reagir, senão vamos ter que acabar com você!...

— O que eu tenho de real valor, vocês jamais conseguirão tirar-me, seus velhacos! — disse o velho, fazendo um esgar de escárnio, amparando-se na balaustrada. Com sua voz gutural e fraca, ele tornava-se ainda mais assustador.

— E o que você tem de real valor que a gente não possa tirar, velho? — quis saber Saca-Boi, curioso.

— A potência eletromagnética de meu espírito, meu caro!...

— Vá pro Inferno, velho caduco! — urrou João Gadanho, perdendo a paciência e desferindo um golpe na testa do velho com o pé-de-cabra. O ancião caiu no escuro, rolando escada abaixo como um porco velho abatido.

Iluminando com a lanterna, Chico Saca-Boi falou:

— Olha só, o bicho velho se contorce de dor lá embaixo, no chão...

— Esse não enche mais o saco.

E eles seguiram em frente, resolutos.

O velho, caído ao chão e soerguendo com dificuldade a cabeça, olhou-os de soslaio e riu debochado, enquanto o sangue escorria denso por seu rosto. Por um instante pareceu murmurar numa língua estranha. Não pareciam simples frases, mas talvez algum tipo de conjuração estranha ou algo parecido...

João Gadanho e Chico Saca-Boi seguiram por um corredor às escuras. E foram dar no ateliê onde o ancião fazia sua arte estatuária.

Ali, uma imensa claraboia deixava ver a grande lua cheia no céu estrelado da meia-noite; o luar iluminava estranhamente o sótão que servia de estúdio.

Os dois meliantes não entendiam muito de arte, mas estranharam o fato de não haver ferramentas usadas por escultores, como martelo e cinzel, por exemplo.

Havia uma enorme quantidade daquelas grotescas e bizarras estátuas espalhadas por aqui e ali, algumas cobertas por grandes lençóis brancos empoeirados.

Havia também o estranho teremim, colocado sobre um pequeno pedestal que mais parecia um pequeno altar.

No centro do recinto, sete globos de cristal vermelho brilhavam sobre um pedestal de aço reluzente, no qual se enroscavam sete serpentes esculpidas em bronze. João Gadanho especulou se era obra do velhote também.

Nisso, um rastejar sinistro se fez ouvir.

Os dois ladrões esbugalharam os olhos. Viraram-se e puderam ver, no umbral da porta, o terrível ancião. Ele se arrastara até ali, e agora os fitava com o seu horrível olhar de sarcasmo, loucura e maldade. O rosto ensanguentado do velho o tornava ainda mais assustador e diabólico.

— Você de novo, seu traste velho do Inferno! — rosnou João Gadanho, os dentes cariados rilhados numa expressão clara de raiva. — Pensei que tivesse dado cabo em você!

Com extrema dificuldade, e com um filete de sangue escorrendo pelo rosto, o velho ergueu-se, amparando-se em sua bengala e encostando o ombro no umbral da porta. Fuzilou os meliantes com seu olhar macabro e místico, depois falou:

Vasos ruins não quebram, diz o ditado popular. É espantoso a capacidade do povo de proferir axiomas. Bem... Seria preciso muito mais que uma simples agressão física para me matar, seus inúteis. Além do mais, fiquem certo de que não temo a morte como a maioria dos boçais da humanidade. A morte é a chave que abre o portal místico que precisa ser atravessado para um novo ciclo nas eternas rondas evolucionantes da consciência eterna!... A carne é apenas o recipiendário[7] efêmero do espírito imortal. Procurem entender, mesmo diante da precariedade de seus intelectos, seus malditos imbecis...

— Cala a boca, velho desgraçado! Você fala demais! — berrou Chico Saca-Boi, em fúria; na verdade, ele estava espumando de raiva: um filete tênue de baba descia pela comissura da boca, a veia do pescoço latejando de cólera.

— É isso aí! Fica caladinho, senão eu pego esse pé-de- cabra e acabo com a tua raça de uma vez por todas! Ouviu, seu velho desgraçado? OUVIU?...

— Pobres ineptos!... Foi muita estupidez vocês terem penetrado em meus domínios e ainda por cima ameaçar-me assim... stultorum infinitus est numerus! — falou o velho, rangendo estranhamente os dentes. — Se vocês ao menos pudessem pressentir o destino negro que os aguardam, ficariam mais dóceis, clamariam por misericórdia, como vermes imprestáveis que são.

E então o velho olhou para o céu noturno. Bem acima deles, visto através do vidro empoeirado da claraboia, a lua cheia brilhava intensamente, agora aziaga, sinistra, mística, e, ao redor dela, estrelas cintilavam como olhos de aranhas na escuridão de uma tumba cósmica.

O velho estranho e ruim deu alguns passos trôpegos, adentrando seu lugar de criação. Depois ergueu os braços, sem baixar os olhos do firmamento. Com um tom de voz ainda mais solene e lúgubre, ele disse:

— Aproxima-se a hora, seus tolos! Tudo corre como o previsto. É sempre assim. Agora as estrelas além da loucurajá estão posicionadas adequadamente, e os astros funestos contribuem novamente para o ritual mágico-artístico! Exatamente ao badalar da meia-noite, quando a lua estiver no píncaro do céu negro, sob o sétimo signo místico que a governa, e os espíritos serviçais dos quatro elementos estiverem no auge de suas cóleras, as forças incógnitas imanentes às trevas alcançarão o seu auge outra vez!... Sim, para se invocar certas forças espirituais eletromagnéticas, deve-se conhecer os algarismos matemáticos, realizar cálculos mágicos, e foi isso que eu fiz...

— Ih, Gadanho! — riu Chico Saca-Boi, debochado. — O velho filho da mãe tá gagá, mesmo! Não fala coisa com coisa...

— Acho que depois que eu lhe dei uma cacetada com o pé-de-cabra ele pirou de vez... — disse João Gadanho, sardônico. — Talvez uma outra pancada o cure.

— Esperem, lapantanas[8]! — falou o velho, sem levantar a cabeça, sem tirar os olhos do céu escuro visto através da clarabóia. — Preparem seus espíritos, preparem suas carnes!

Aproxima-se o zênite místico! É chegada a hora do ritual de sacrifício para a realização de mais uma obra de arte daquilo que os tolos chamam de sobrenatural!... Caput mortum, imperet tibi dominus per vivum et devotum serpentem!... Cherub, imperet tibi dominus per Adam Jot-Chavah! Aquila errans, imperet tibi dominus per alas tauri!... Serpens, imperet tibi dominus Tetragrammaton, per angelum et leonem!...

Com dificuldade extrema, ele se aproximou do teremim e começou a tocá-lo.

— Ouçam, agora... o soberbo recital do Inferno! — berrava o velho, em júbilo sarcástico, tocando o teremim. — A estupenda música das esferas do morte!...

E o velho tocava freneticamente o teremim, movimentando suas mãos, ora aproximando-as, ora afastando-as do estranho e mágico instrumento musical eletromagnético. Parecia que o velho fazia um manossolfa para uma orquestra de espectros e demônios invisíveis. O som obtido era estranho e assustador. No silêncio sepulcral da noite maldita, soava quase como o gemido de uma alma torturada nas antecâmaras do Inferno.

— Para com essa droga aí, velho miserável! — urrou João Gadanho. — Esse som me deixando louco!

— Que porcaria de instrumento esquisito é esse? — também gritou Chico Saca-Boi, tapando os ouvidos com as mãos em concha. — Para com essa droga, velho!

O estranho som do teremim agora parecia perfurar os tímpanos daqueles dois safardanas como um invisível punhal ardente. Era um som insuportável. Suas cabeças pareciam querer explodir como balões frágeis tamanha era a dor lancinante que sentiam.

Além da dor insuportável que os fazia se curvarem, uma estranha e elétrica dormência tomava conta de seus corpos.

— Gadanho, não consigo mexer minhas pernas...Parece que elas estão sendo atravessadas por uma eletricidade do Inferno! — disse Chico Saca-Boi.

— As minhas também, Saca-Boi! Que diabo é isso?...

O velho, olhando-os com sarcasmo, e sem parar de tocar o teremim alucinante, falou-lhes:

 — Vocês estão virando mais duas obras para a minha coleção de arte macabra. Este teremim mágico está completando meu trabalho de encantamento. Breve, vocês conhecerão a eternidade sob a forma de estátuas vivas!

— Ficou louco, velho? Que diabo de conversa é essa? — gritou João Gadanho.

Diminuindo um pouco a intensidade do som do teremim, ele falou:

— Há muito tempo, através de um ritual que eu aprendi num velho livro de magia negra, eu evoquei Mefistófeles, e com ele fiz um pacto para que ele me livrasse de um mal incurável. E ele me livrou. De certo modo, passamos a viver numa espécie de simbiose. Agora o meu eu parece fazer parte do dele, ou algo assim. Em troca, porém, Mefistófeles exigiu-me um diabólico estipêndio: que eu aprisionasse o maior número possível de almas ruins que consomem este mundo insano, através de um encantamento que ele mesmo veio a me ensinar. Assim, de sete em sete anos, gente perversa como vocês entram em minha casa guiada por uma sina incompreensível demais até mesmo para o meu intelcto. Minha casa funciona então como uma ratoeira infernal. Com a magia do teremim encantado e as forças mágicas do luar, junto com determinado posicionamento das estrelas malditas e energias eletromagnéticas dos mundos invisíveis, o ritual de aprisionamento das almas sórdidas é completado, e então...

— Então o que, velho desgraçado? — urrou Chico Saca- Boi.

— Então as vítimas ficam num estado que eu chamo de morte em vida! Sim, pois mesmo transformadas em estátuas, a consciência de cada vítima ainda permanece neste mundo, sob a forma pétrea de uma estátua até o final dos tempos! A vítima passa a viver numa terrível imobilidade, como se fosse uma pedra viva! Esta, meu caro, é a grande Magia Mefistofélica!...

Ao som do teremim sinistro, um raio mais forte de luar atravessou a claraboia e incidiu em cheio nos sete globos de cristal vermelho sobre o pedestal com as serpentes de bronze. Ao mesmo tempo, batia a meia-noite. Uma luz vermelha manchou os semblantes apavorados dos dois ladrões. Não houve tempo dos dois malandros gritarem de terror, antes de se tornarem frias estátuas de pedra para sempre. Os olhos deles foram a última parte a sofrer a terrível transformação produzida pelo sortilégio, de modo que puderam ver, com terrível assombro e pavor, o deboche e o sarcasmo daquele estranho ancião.

Aquele velho sinistro então soltou uma gargalhada satânica que retumbou assustadoramente na noite, juntamente com o som infernal do teremim mágico que ele tocava endiabradamente. Ele estava exultante, afinal, a macabra coleção de estátuas aumentara consideravelmente.

Se algum dia o leitor passar por Coirela Grande, não deixe de reparar no casarão no alto daquele morro, com algumas das estranhas e amedrontadoras estátuas bem na frente. Talvez até o leitor reconheça os infelizes João Gadanho e Chico Saca-Boi. Mas apenas passe e olhe rapidamente. E passe e olhe bem de longe. Talvez, se tiver um pouco de sorte, verá na janela o vulto daquele velho mefistofélico e ouvirá aquela estranha e insuportável música tocada por ele...

 

Imagem: R. S. de Farias/Copilot

 



[1] Que ou quem tem idade muito avançada (N do A.).

[2] Aquele que se presume único conhecedor dos mistérios, das ciências ou das artes. Cultor das ciências ocultas, adivinho (N. do A).

[3] Instrumento eletromagnético, baseado no princípio do radar, cujos sons são obtidos por movimentos da mão aproximando-se ou afastando-se dele. O teremim é único por não precisar de nenhum contato físico para produzir música e foi, de fato, o primeiro instrumento musical projetado para ser tocado sem precisar de contato, pois é executado movimentando-se as mãos no ar (N. do A).

[4]  Escrunchante: arrombador, assaltante (N. do A).

[5] Moleque arteiro e vadio. 2 Gatuno, ladrão (N. do A).

[6] Advogado chicaneiro; rábula N. do A).

[7] Aquele que é recebido em uma academia, em uma corporação de letrados, de sábios, com certo cerimonial.

[8] Pessoa simplória, idiota.

 

Comentários

  1. após um dia difícil, nada como ler o Arquiduque das Sombras do Sul...muito bom, Barão...Este teu site é um oásis de maravilhas sombrias!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE - Conto de Terror - Edgar Allan Poe

O RETRATO OVAL - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

A MULHER-FANTASMA - Conto Clássico Fantástico - Brian Hayes

LADRÕES DE CADÁVERES - Narrativas Verídicas de Horror - Henry Frichet