MEDO DA CRIAÇÃO - Conto de Terror - Dino Gomes
MEDO DA CRIAÇÃO
Dino Gomes
Lá
estava eu, tentando criar a vida de novo. Se Deus foi e era humano, e criou
vida, por que nós, seres humanos, que o matamos, não poderíamos criar vida?
Então,
o meu galpão empoeirado, com frascos de cinzas humanas, naquele lugar sujo e
imundo, com aquele cheiro de inferno mórbido, com a luz que mal entrava no
local e cogumelos crescendo nas paredes, com plantas indesejadas invadindo o
local, me deixava mais fatídico ainda.
Peguei
o corpo dela, sem vida, com seu sangue escorrendo, deixando mais uma decoração
para o local. Coloco ela em cima da maca, com seus olhos sem vida, como um
olhar de uma boneca de pano.
Eu
olho de cima abaixo seu corpo ensanguentado, assim como minhas roupas. Dá para
ver que o quanto ela queria viver com suas unhas arrancadas após tentar me
arranhar, sem sucesso. Consigo ouvir cada pingo de sangue que se forma em meu
chão, que provavelmente ficará até o galpão se decompor. Pego o outro corpo, que
eu já havia deixado na geladeira. Um de seus pés infelizmente caiu, mas não
intervirá no processo. Eu coloco os dois lado a lado, enquanto tento juntar os
dois de qualquer jeito. Tentando criar a vida dos mortos. Tentado extrair a
vida da fonte da morte.
Junto
os cérebros, braços, pernas, costuras e mais costuras cobriam o corpo. Ficou
desproporcional ao que eu esperava. Porém, funcionou. Eu criei a vida!
Vi
seus olhos abrirem enquanto aquele cheiro de ratos do mais fundo do inferno
infestava a mim e a minhas roupas. Ele não conseguia se mover, nem falar. Apenas
olhar. Não sabia se aquilo tinha consciência ou não. Conforme cada membro era conectado
a ele, mais força ele ganhava. Começou movendo seus dedos. Aqueles dedos longos
e finos ao mesmo tempo se moviam de uma forma abstrata. Parecia que tinha
ossos, suas mãos se moviam como quisesse, livremente. Ele revirava seus olhos, acredito
eu que estava tentando gritar o mais alto possível. Quando seus braços foram
conectados, ele se mexia como um peão. Rodava e rodava sem parar.
Amarrei
uma corda em seus braços para que parasse. Abri sua garganta, e coloquei as
cordas vocais. Foi difícil, pois ele se debatia e debatia, como um peixe fora
da água. Com língua para fora, ele tentava pronunciar palavras; porém, apenas
saíam gemidos e gritos histéricos. Como se alguém tivesse abrindo sua barriga
com um estilete enquanto joga sal e álcool em cima das feridas. Como se tivesse
uma agulha em seus olhos ou um alicate em seus dentes.
Quando
suas pernas foram postas, ele conseguiu sair da maca e ficar em pé. Como o
criador pode ter medo da própria criação? Ele me olhava com aqueles olhos de
alguém que não deveria existir, muito menos respirar.
Tentava
recitar palavras, porém apenas saiam gemidos e gritos. Não conseguia andar, mas
havia coordenação motora o suficiente para ficar de pé. Vi ali algo que eu
criei. A vida da morte. Algo que já morreu tendo vida. Fiquei abismado, porque
sou um gênio. Quando eu tocava em minha criação, eu sentia como vermes
movimentando em sua pele morta e estranha. Ele fazia coisas fora da realidade
humana, como girar seu torso perfeitamente. Ter controle total de seus cabelos e
dentes. E não necessitava de comida.
Ele
finalmente conseguiu andar. Eu o vi dando seus primeiros passos, como um pai
vendo seu filho. Eu genuinamente fiquei orgulhoso disso, embora tivesse medo. Fiquei
noites em claro ouvindo essa criatura andando pela casa. Choros e gritos a
madrugada toda. Acho que eu entendi por que Deus não dá vida aos mortos.
Enquanto eu o consertava, ele disse uma palavra em latim: "dīvus".
Naquele momento, eu tinha percebido o que eu fiz. Eu não criei a vida, eu
apenas dei forma para a morte. Algo que andava e respirava, quando sequer
deveria existir. Eu o vi naquele momento me senti inseguro como criador.
Ele
tinha suas próprias vontades e sentimentos. Porém, tudo relacionado à morte.
Ele exalava um odor de um verdadeiro Satã. Como se houvesse defuntos em seus bolsos.
O seu choro era como o de uma mãe que havia perdido o filho. Foi quando eu
decidi acabar com sua "vida". Fui até ele com um clima de terror e
horror no local. E tentei desmontá-lo, mas ele chorava e chorava, dessa vez
pior. Seus gritos eram como os de alguém que havia tido um acidente terrível.
Cada peça que eu desmontava, era como se fosse um alívio. Peça por peça. Erro
por erro era desfeito. Olhando em seus olhos eu via um abismo cristalizado, em
um córrego torto e fissurado.
Algo
torto e estranho, como sua pupila. Em que não havia cor. Arranquei sua língua
para que não gritasse, mas o grito continuava. E quando eu finalmente desmontei
o meu erro, eu o via se remontando em dois. Não há o que eu faça. Minha criação
sempre se multiplicará e respirará. Como eu não havia previsto.
Achei muito bom
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