O TERRÍVEL COFRE - Conto Clássico de Mistério - Arthur Conan Doyle


 

O TERRÍVEL COFRE

Arthur Conan Doyle

(1859 – 1930)

 

Meu imediato estava a meu lado, imóvel, com os pés bem afastados um do outro, porque a tempestade, embora se houvesse afastado, deixara o mar muito agitado. Erguendo a luneta, ele observou longamente o navio naufragado, que vogava ao acaso, sacudido pelas ondas, como se hesitasse ainda em ir a pique. Era de não se compreender como podia ainda manter-se à flor da agua, porque nunca vi um navio tão maltratado e avariado por um temporal.

Verdade seja que eu nunca vira uma tempestade tão furiosa como a daqueles últimos três dias e nós mesmos, durante esse tempo, tínhamos acreditado, mais de uma vez, que nunca mais tornaríamos a ver terra firme. Tínhamos salvado a pele porque nosso navio, o Mary Sinclair, era o mais bem construído de quantos jamais saíram do Clyde.

Allardyce, o imediato, desviou afinal os olhos do navio, que fora menos feliz do que nós, e murmurou:

 — Creio que ele está abandonado e não pode durar muito tempo. E olhe... olhe...

Afinal, consegui ver sua bandeira.  Era a do Brasil.

Essa circunstância impressionou-me. Como aparecia agora essa bandeira, que nenhum de nós havia visto até então? Teria sido içada agora? Haveria então alguém a bordo?

— Vamos lá — decidi. 

 

 



Manobrando para me aproximar mais do navio, passei por sua popa e pude ler-lhe o nome: Nossa Senhora da Vitória. Pusemos um bote no mar e, a despeito do risco de ver o navio soçobrar sob nossos pês, de um momento para outro penetramos nele. O tombadilho estava coberto de destroços e todos os botes tinham desaparecido. Entrei na cabine do capitão e comecei a juntar os livros e papéis que ali encontrei para levá-los comigo, enquanto Allardyce descia, a fim de ver se seria possível salvar alguma coisa do carregamento. Examinando rapidamente os papéis que recolhia, verifiquei que o capitão se chamava Teixeira e o navio partira da Bahia, um mês antes, com destino a Londres, levando cocos, madeiras e frutas em conserva. Mas encontrei também uma carta em que li o seguinte trecho:

 

"Pede-se todo cuidado com as velhas curiosidades espanholas, provenientes da coleção de Santarém e consignadas a Proutford e Newman, de Oxford Street. Trata-se de peças únicas, de valor inestimável. Recomendamos especialmente o cofres do tesouro de D. Ramiro de Lyra, que deve ser colocado ao abrigo de qualquer indiscrição".

 

O cofre do tesouro... Peças únicas de valor inestimável...

Corri imediatamente em busca de Allardyce, porém este já vinha a meu encontro com ar preocupado e disse-me:

— Não estou gostando disto, capitão. Parece-me que há um mistério neste navio. Um mistério e um crime. Encontrei um homem com o crânio aberto por um golpe de machado. Venha ver.

Levou-me a um compartimento que dava para o tombadilho, como a cabine do capitão. Era um quarto quadrado, com menos de três metros de lado, uma espécie de deposito de bandeiras, que aí estavam atiradas em desordem. Pendurados em toda a volta da parede, havia vários embrulhos, cuidadosamente amarrados e, a um canto, um cofre com quatro palmos sobre três de largura e três de altura. Diante desse cofre estava caído um homem moreno, com barba muito crespa, coberto de sangue. Entretanto, seu rosto estava calmo e, no primeiro momento, não lhe vi ferimento algum. Tive que me curvar para ver que sua cabeça estava aberta de meio a meio por um ferimento enorme, que, evidentemente, lhe fora vibrado pelas costas, a traição.

Não havia dúvida possível. Tratava-se de um assassinato. Uma faca, caída junto da mão direita do morto, denunciava que ele sabia estar em perigo e havia empunhado uma arma para se defender. Mas fora atacado pelas costas.

Quanto aos embrulhos, pendurados nas paredes, pareciam conter estatuetas, ídolos talvez e armas exóticas.

— Devem ser estes os tais objetos de valor — observei. — Mande transportá-los para o bote.

Curvei-me então para o cofre e li em um escudo de metal pregado a sua tampa as seguintes palavras:

 

“Cofre contendo o tesouro de D. Ramiro de Lyra, cavaleiro da Ordem de São Tiago, governador e capitão-geral de Terra Firme, na província de Veraguas, 1606. É expressamente proibido abrir este cofre.”

 

A fechadura era de aço e parecia muito sólida. Transportados os embrulhos, eu próprio ajudei a carregar o cofre para nosso bote, deixando o morto no lugar em que o havíamos encontrado.

Allardyce emitiu uma hipótese. Naturalmente, aquele marinheiro, vendo o navio perdido, tentara saquear o cofre e o capitão, para fazer valer sua autoridade, tivera que matá-lo.

Içamos o cofre para bordo do Mary Sinclair e puxemo-lo na sala de jantar entre a mesa e o armário, e, após a refeição, ficamos a conversar sobre o estranho encontro do Nossa Senhora da Vitória.

Armstrong, o piloto, era o mais interessado e perdia-se em cálculos sobre o valor das “antiguidades”. Bom marinheiro e bom companheiro, Armstrong tinha o defeito de uma cupidez incoercível.

 — E o cofre... Que demônio poderá conter para estar tão pesado! — dizia ele com os olhos ardentes de ganância. — A fechadura parece sólida, mas com um pé de cabra ou mesmo com uma boa faca...

Essa alusão a uma faca fez-me pensar no marinheiro morto, com uma faca caída junto de si. Era, então, para isso que ele se armara?

Armstrong tirara do bolso sua faca, de lâmina curta, mas robusta, e olhava-me de soslaio, esperando apenas minha permissão para se atirar à fechadura do cofre. Porém, eu dei de ombros e ele não se atreveu a formular mais claramente o pedido. Mas ficou em silêncio e mal-humorado durante o resto da noite.

*

As cabines dos oficiais davam todas para a sala de jantar; a minha era a última, junto à escada.

Nessa noite, eu não tinha que estar de sentinela; a de Armstrong terminava às 4 horas da madrugada e foi substituído a essa hora por Allardyce.

Embora a cabine deste ficasse ao lado da minha, nada ouvi nesse momento, porque que tenho o sono muito pesado. Entretanto, pouco depois fui despertado por um ruído tão singular que não pude qualificá-lo. Parecia um baque, mas um baque surdo, com um som abafado, inexplicável. Olhei para o relógio. Eram 4 horas e meia.

Intrigado por aquele ruido, que não lograva compreender, saltei do leito e fui até o salão, onde o Sol já entrava a jorros. No primeiro momento, nada vi de anormal, mas, dando alguns passos, tropecei; e, olhando para o soalho, vi um corpo estendido de bruços. Pela roupa, reconheci logo Armstrong e compreendi que ele estava morto, morto como o outro, porque estava caído diante do cofre.

  

 



Alucinado, presa de verdadeiro terror, gritei por Allardyce. Este passou o leme ao piloto e, acudindo a meu apelo, curvou-se para Armstrong.

— Veja — disse-me ele, mostrando a cabeça de nosso pobre companheiro. — Foi um golpe perfeitamente semelhante ao que matou o marinheiro do outro navio.

— Mas então... então... — murmurei, atônito.

 Allardyce, que estava muito pálido, segurou-me por um pulso e levou-me ao tombadilho. Chegando ali, murmurou a meu ouvido:

—Acho melhor falarmos aqui... Sabe Deus o que há naquele cofre!.

— Sim...  Sim... — murmurei.  — Nunca vi um cofre daquele tamanho... Além disso, os ornatos que o cobrem podem ocultar furos para a respiração.

—Ar!... O senhor também desconfia de que há alguém oculto no cofre? Sim! Só assim se explica o assassinato de quantos tentam abri-lo. Mas o homem que aí está... Como se alimenta?

—Ora! Podia ter algum amigo ou cúmplice a bordo do Nossa Senhora da Vitória.

—Mas, diante do desaparecimento da equipagem, devia compreender que...  

— Seja como for — atalhei bruscamente —, eu não posso ficar inerte diante deste mistério.

Dito isto, voltei à minha cabine, armei-me com um revólver e mandei chamar o mestre carpinteiro, que era o homem mais robusto e resoluto a bordo.

Expliquei-lhe do que se tratava e ele, ao ver o cadáver de Armstrong, apertou os pulsos com furor. Se o assassino do pobre rapaz estava mesmo dentro do cofre, ia passar um mau quarto de hora.

Porém, Alardyce, tão ansioso como eu, já se aproximava do cofre com uma pequena alavanca na mão.

— Atenção — disse ele em voz baixa. — Fiquem atentos. Eu vou forçar bruscamente a fechadura. Se houver alguém aí dentro, não hesitem. Fogo sobre ele.

Abaixou-se o mais possível; introduziu a alavanca sob a fechadura e fê-la saltar. A tampa ergueu-se, atirada brutalmente para trás. Olhamos rapidamente. O cofre estava vazio. Isso é... Não completamente vazio. No fundo, a um canto, havia um pequeno candelabro de ouro admiravelmente cinzelado e parecendo de grande valor.

— Vazio! — exclamou Allardyce. — Mas, então, por que pesa tanto o maldito?

Impressionado por essa observação, atentei no cofre e verifiquei que, de fato, ele tinha os lados e tampa excepcionalmente espessos e uma grande mola de metal atravessava essa tampa. E vendo que Allardyce estendia a mão num gesto maquinal para apanhar o candelabro, tive uma ideia súbita que me enregelou e, ao mesmo tempo, deu-me força e resolução súbitas.

Segurei Allardyce pelos ombros e obriguei-o a recuar, bradando:

— Espera... Eu creio que...

E, apanhando um croque, que estava a um canto, servi-me dele para puxar o candelabro. Aconteceu o que eu esperava. Aquele objeto ali estava como uma isca para tentar as vítimas. Apenas o movi, a tampa do cofre fechou-se como a boca de um animal monstruoso e, fechando-se, projetou por um instante, com a rapidez de um relâmpago, uma espécie de alfange, uma lamina curva e solida, oculta na parte interior do cofre, lamina que teria aberto a cabeça de Allardyce como fizera com Armstrong, se eu não o tivesse detido.

O imediato, compreendendo o perigo de que eu o livrara, sentou-se, lívido, trêmulo.

Era então aquele o segredo do cofre de D. Ramiro? Que requinte de crueldade teria levado esse fidalgo a preparar uma tão feroz armadilha contra os que pretendessem roubá-lo?

Fosse como fosse, eu não queria conservar a bordo um objeto que já sacrificara sabe Deus quantas vidas.

Auxiliado por Allardyce e o carpinteiro, levei o terrível cofre para o convés e só fiquei tranquilo quando o vi desaparecer no oceano.

 

Tradução condensada de autor desconhecido do séc. XX.

Fonte: “Almanach Eu Sei Tudo”, 1931.

Ilustrações: Georges Conrad (1874 – 1936).

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