RESSUSCITADA - Conto Clássico de Horror - Pierre Bouchardon
RESSUSCITADA
Pierre Bouchardon
(1870 – 1950)
Tradução de autor desconhecido do séc.
XX
No
ano de 1707, o Sr. de la Faille era presidente do Parlamento, em Paris e, tendo
enviuvado, concentrara todos os seus cuidados, toda a sua ternura, em sua filha
única, Clémence. Ela, Mlle. de la Faille, era bastante rica para casar-se sem
beleza e bastante bonita para casar-se sem fortuna. Devia suscitar inúmeros
caprichos. Aos dezesseis anos, provocou uma paixão.
Um
jovem capitão de artilharia, Georges de Garan, vira-a na igreja da Daurade e,
desde esse instante, ficou louco de amor pela adolescente. Fez-lhe,
primeiramente, uma corte respeitosa; pouco depois, declarava-lhe seu imenso
amor. Era um oficial de belo aspecto, fidalgo de boa linhagem, bravo como
poucos, adorava a carreira das armas. Sabendo que seu amor era correspondido,
ele mandou sua mãe, viúva de um general dos exércitos do rei, pedir a mão da
bela Clémence.
O
acolhimento foi favorável. O noivado ia receber sua consagração oficial, quando
um acontecimento imprevisto veio destruir seus sonhos de felicidade.
Georges
de Garan recebeu ordem de se juntar ao seu regimento — o regimento de La Fere —
que devia partir para as Índias com a esquadra comandada pelo conde de Forbin. A
ausência devia durar dois anos, pelo menos. Desesperado, o capitão correu a
anunciar essa desoladora notícia a Mlle. de la Faille. A pobre moça quase
enlouqueceu de desespero e o próprio presidente não dissimulou sua emoção. Mas
foi em vão que seu futuro genro lhe suplicou que apressasse o casamento,
prometendo deixar-lhe a filha até sua volta e contentar-se com levar, pelos
mares além, o título de esposo; porém, o grave magistrado mostrou-se
inflexível. Todavia, soube suavizar sua recusa com algum consolo:
—
Por que se desesperam assim? Não estão certos, um e outro, de sua fidelidade e
sua ternura? Dois anos passarão depressa. Vá, senhor, cumpra com seu dever de
soldado. A recompensa o esperará aqui!
Georges
resignou-se, mas, teve à noite, um encontro com Clémence, no jardim, onde trocaram
ternos juramentos e combinaram a hora em que, a cada noite, pensariam um no
outro.
Um
beijo selou esse doce pacto; e Mlle. de la Faille pronunciou essas estranhas
palavras:
— Oh! Georges... Parece-me que, se estivesse
morta, seria bastante que me beijasses para que eu voltasse à vida...
O
tempo correu e o termo de dois anos expirou, sem que o Sr. de Garan desse notícias
suas. Mas soube-se que o regimento de La Fere fora quase inteiramente
destruído, após combates terríveis. Correu mesmo o boato de que o belo e bravo
capitão, ferido e prisioneiro, não pudera sobreviver.
Clémence
de la Faille quase morreu de desespero; queria retirar-se para um convento e o seu
pai teve de empregar grande energia e persuasão para afastá-la desse propósito.
Depois... o tempo agiu. A inconsolável noiva era moça; deixou-se convencer. No
ano seguinte, desposou um personagem altamente colocado, Sr. de Boissieux,
presidente da Corte dos Ajudantes, e em breve lhe deu uma filha. Tudo parecia,
assim, terminado.
Ilusão!
No
dia 14 de outubro de 1711, um homem extenuado, fisionomia sombria, músculos
distendidos pelo sofrimento, batia à porta da residência de Mme. Garan, na rua
Saint Louis-em-L’Ille. Era o capitão, que resistira a seus múltiplos ferimentos,
e conseguira, afrontando mil perigos, fugir das garras inimigas.
Quando,
após as mais emocionantes efusões, começou a narração de sua horrenda aventura,
interrompeu-se bruscamente:
—
Peço-lhe perdão, minha mãe, agora que a encontrei e que a felicidade pode ainda
sorrir-me; quero lhe fazer uma pergunta sobre um fato que muito me
impressionou. Passando hoje, pela manhã, peta abadia de São Germano dos Prados,
vi a igreja toda coberta de negro como para algum enterro. Confesso, minha mãe,
que senti um presságio de desgraça...
—
O que que viu, meu filho, foram os preparativos dos funerais da bela Mme. de
Boissieux, a esposa de um presidente da Corte dos Ajudantes, que faleceu ontem,
após curta enfermidade.
—
A bela Mme. de Boissieux? Era assim tão bela?
—
Já o era, em Toulouse, quando a chamavam de Mlle. de la Faille!
—
Como! Minha noiva se casou?
—
Não a condenes, Georges; lastima-a e ora por ela. Desposou o Sr. de Boissieux
porque seu pai assim o quis e, também, porque tua morte era tão acreditada,
aqui, em França, que eu própria, como podes ver, usava luto por ti. E quem sabe
se não foi a dor de te haver perdido que a matou?
O
Sr. de Garan ficou como aniquilado. Não pronunciou uma só palavra, não verteu
uma lágrima. Absorveu-se em dolorosa meditação, da qual sua mãe em vão tentou arrancá-lo.
Ao
cair da noite, viram-no encher sua bolsa com moedas de ouro, cingir sua espada,
envolver-se em seu longo manto e, dirigir-se, a passos rápidos, para o cemitério,
contíguo à abadia de S. Germano dos Prados. Foi diretamente bater à porta da
cabana do coveiro, um tal René Glod.
—
Levanta-te — ordenou ele — e segue-me! Eu te farei rico, se o quiseres. Cavaste
um túmulo, hoje? Muito bem. Quero que retires o caixão, que o abras e deixes
ver a mulher que nele se encontra.
—
Céus! Isso seria um espantoso sacrilégio.
—
Aqui tens pelo sacrilégio.
E,
assim dizendo, Georges lançou-lhe um punhado de ouro.
O
coveiro contemplou essa pequena fortuna e continuou com voz cada vez mais
surda.
—
Esse ato pode me levar às galés, senhor oficial.
—
Aqui tens pelas galés.
E
um novo punhado caiu em torno ao coveiro.
Finalmente
convencido, René Glod apanhou sua pá e entregou ao Sr. de Garan uma lanterna
acessa. Depois, sem trocarem uma palavra, os dois homens se encaminharam para o
túmulo em que repousava, havia algumas horas, aquela que fora Mlle. de la
Faille.
Quando
a terra foi suficientemente afastada, o caixão pôde ser içado até o ar livre, à
beira do fosso.
Com
repetidos golpes de pá, o coveiro, em poucos instantes, arrancou as tábuas do
caixão e, com gesto medroso, ergueu a mortalha. Ali estava uma mulher, que
parecia dormir.
Georges
reconheceu sua noiva e longamente contemplou-a. Depois, ergueu o cadáver,
apertou-o com carinho e colocou-o sobre seus joelhos. Falou-lhe da felicidade
passada, de seu juramento, de sua última entrevista e deu-lhe um beijo. Nesse momento,
soltou um grito rouco, que ressoou até o fundo do cemitério, foi presa de um
riso demoníaco, ergueu-se de um salto e, mantendo Clémence enlaçada, fugiu como
um louco através dos túmulos.
Glod
não pensou em persegui-lo. Horrorizado com o que acabava de ver, apressou-se a enterrar
novamente o caixão e encher a cova. Quando terminou, benzeu-se e desapareceu
nas trevas da noite.
A
14 de outubro de 1716, cinco anos após a cerimônia fúnebre, o marido de Mlle.
de la Faile, fiel a um piedoso aniversário, viera meditar e orar sobre o túmulo
de sua esposa, quando um ruído de seda o fez voltar a cabeça. Uma mulher se adiantava
nas pontas dos pés, porém o seu véu não era tão espesso que o presidente não a
pudesse reconhecer.
—
Clémence! — exclamou ele, es tendendo-lhe os braços. — És tu? Ou é tua sombra?
Deus teria realizado o milagre de te ressuscitar?
Sem
responder, a desconhecida afastou-se correndo. O Sr. de Boissieux lançou-se em
sua perseguição, mas, no momento em que pensava alcançá-la, viu-a saltar para
uma suntuosa carruagem, que desapareceu em poucos instantes, levada pelo galope
furioso dos cavalos.
Teria
sido vítima de uma alucinação? Quis ter certeza e indagou, primeiramente, do
paradeiro do coveiro. Disseram-lhe que esse homem se retirara para a Normandia,
havia cinco anos, depois de receber uma herança.
Do
cemitério, fez-se conduzir à residência do chefe de polícia, que, no dia
seguinte, procedeu à exumação de Clémence de la Faille!
Profanação!
O túmulo estava vazio e as tábuas do caixão tinham vestígios manifestos de
golpes de pá!
O
inquérito revelou que René Glod morrera em 1715, mas, pelas respostas de sua
mulher e de seus filhos, ficou provado que não recebera herança alguma. No
entanto, possuía dez mil libras quando fixou residência em Vire.
Quanto
ao Sr. de Garan, ficou provado que deixara precipitadamente Paris, sem rever
sua mãe, na manhã seguinte ao enterramento de Mme. Boissieux; que chegara a
Brest em companhia de uma mulher de véu e parecendo doente; que, finalmente,
embarcara em um navio mercante, quando, em sua qualidade de oficial, deveria
ter tomado passagem em um navio do Estado.
Eram
armas suficientes para sustentar um processo.
Essa
causa célebre atraiu multidão numerosa, ávida de emoções, seduzida pela
radiante beleza da heroína.
O
presidente de la Faille, ao ver Mme. de Garan, estendera os braços chamando-a “minha
filha”. Porém, ela, distante e glacial, declarara não o conhecer. Forneceu, de
resto, provas de onde resultava não poder se tratar de Mme. de Boissieux. Era a
esposa do capitão Georges de Garan, nascida em Pondichéry, filha de pais franceses,
o casal de Merval; casara-se na capela da sua cidade natal; oficiais e funcionários
tinham assistido à cerimônia; o ato de batismo e o ato de casamento ofereciam
todas as características de autenticidade.
E
a sentença parecia garantida a favor de Garan, quando o Sr. de Boissieux teve a
inspiração de mandar buscar sua filha, de seis anos. A acusada parecia
absorvida em melancólicos pensamentos. Não viu quando entraram. Bruscamente,
sentiu uma mãozinha, que segurava a sua. Uma criança estendia-lhe as faces
frescas e dizia-lhe baixinho:
—
Mamãe... Não quer beijar-me?
Primeiramente
pálida e trêmula, depois louca de alegria, Mme. Garan apertou a criança sobre
seu peito e cobriu-a de beijos.
Esposa
e filha não se haviam traído; a mãe não pudera representar seu papel até o fim.
À
vista disso, uma sentença formal anulou o segundo casamento contraído por Mlle.
de La Faille e condenou-a a voltar ao domicilio de seu legitimo esposo, Sr. de
Boissieux.
Clémence
suplicou ao regente que a deixasse retirar-se até o fim de seus dias para um
convento de Carmelitas. Tentativa inútil.
Foi
intimada a cumprir a sentença, sem mais tardar.
Ela
pareceu, então, resignar-se e anunciou sua volta para a manhã seguinte.
Na residência de Boissieux estava tudo
preparado para recebê-la. Cercado por seus parentes, seus colegas e seus
amigos, o presidente esperava-a no grande salão.
Quando
a porta se abriu e um lacaio anunciou “Sra. de Boissieux!”, a enterrada viva
surgiu coberta das joias mais preciosas.
—
Senhor — disse ela a seu marido, que se adiantava galantemente para beijar-lhe a
mão —, trago-lhe o que lhe foi roubado!
E
caiu morta.
Na
mesma noite, Georges de Garan, que se envenenara com ela, expirava nos braços
de sua mãe.
Fonte: “Almanach Eu Sei
Tudo”, 1930.
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