SEDUZIDA PELO DIABO - Conto Clássico de Terror - Pauline de Grandpré
SEDUZIDA PELO
DIABO
Pauline de Grandpré
(1815 – 18...)
Desde
Eva, que foi seduzida e persuadida por Satanás, muitas mulheres têm sido
possuídas pelo demônio. Muitas morderam a maçã fatal mesmo depois de terem contemplado,
durante muito tempo, a árvore do conhecimento do bem e do mal. Para arruinar as
mulheres, basta fazê-las ver o mal revestido de exteriores deslumbrantes. O mal
assume a forma da beleza e da bondade, e as mulheres, muitas vezes, se deixam
seduzir apenas pelo que reluz.
Bertilde
era uma bela jovem, bondosa, caridosa e digna. Tinha, porém, mais do que lhe
seria razoável, um ímpeto sedutor: tinha por costume frequentar a catedral para
ser admirada, de molde que lhe restava apenas escapar ao Maligno por arte da
graça da Virgem Maria.
De
tanto ouvir dizê-lo, Bertilde sabia muito bem que era uma linda jovem e, neste
mundo, sonhava somente com isto: ser vista e admirada. Assim, vestia o seu
melhor traje para ir à igreja de Notre-Dame de Paris, e, mais adornada que a
própria Virgem, procurava os olhares de admiração da multidão. Muitos jovens
esqueciam-se de orar a Deus somente para contemplar a fascinante Eva. Tanto
assim que o Senhor, em sua ira, resolveu puni-la, abandonando-a à do Diabo.
Certo dia, Satanás apareceu-lhe, nas cercanias do pórtico da igreja, na forma de um belo jovem. Sua cabeça estava coberta por um capuz, que escondia os chifres, e um elegante manto ocultava-lhe as asas sombrias. Em seus atrevidos olhos cintilavam um estranho fulgor e, sob um sorriso sedutor, ocultava-se o sorriso de amaldiçoada criatura.
O
Demo Abordou Bertilde, que logo estremeceu à presença do estranho. Mas ele
elogiou enfaticamente a sua beleza, louvando-lhe a graça e os encantos com
tanto calor e convicção que cessaram os temores da jovem.
—
Por que te ajoelhas estupidamente diante das estátuas de Notre-Dame? —
perguntou-lhe Satanás. — É diante de ti todos devem ajoelhar-se. És tão linda
que ninguém jamais poderá admirá-la tanto quanto realmente mereces.
—
Mas —respondeu-lhe Bertilde —, o aluno Jehan, o escriturário mais belo de toda
a Basoche, não olha para mim quando me encontra na Place du Parvis. Ele passa
por lá todos os dias, quando volta da universidade.
—
Tal é assim porque ele jamais te viu — insinuou Satanás. — Se seguires o meu
conselho, não apenas olhará para ti, como também te amará, e jamais terá no
coração outra mulher.
—
Diz-me, então, o que devo fazer para que assim aconteça? — perguntou a gentil
mocinha.
—
Deves deixar de ir a Notre-Dame e ajoelhar-se diante da Virgem.
—Ah!
Isto eu não quero! A Senhora Mãe de Deus me puniria se eu abandonasse o seu
altar.
—
Não tem a Virgem o poder de punição — respondeu o anjo rebelde. —Ela não é
Deus.
—
Não, não, estranho ímpio esacrílego! Não mais quero te ouvir. Eu temo as chamas
eternas.
Bertilde
tapou os olhos com a mão para não ver Satanás, que a obcecava com as suas
malignas sugestões. Nesse instante, passou o estudante Jehan: ia a caminho do
claustro encontrar-se com os professores que ensinavam nas casas dos cônegos.
—
Eis aqui Jehan, que vai tomar a sua lição, — disse Satanás, astuciosamente.
A
moça levantou rapidamente a cabeça e o belo estudante parou, surpreso ao ver
Bertilde na companhia de um astuto feiticeiro. Ele prontamente a cumprimentou e
saiu.
—
Não mais irás a Notre-Dame — disse o Demônio. — Faz um juramento e Jehan, que
te viu, só olhará para ti.
O
gentil estudante era um belo cavalheiro e Bertilde baixou a cabeça como se
dissesse: “Sim!”.
Caíra
na armadilha que a maldita entidade lhe preparara.
Satã,
zombeteiro, deixou o Parvis, mas não a jovem. Não a deixou mais nem de dia nem
de noite. Não houve tormento que não lha tivesse infligido.
A
paz havia desaparecido para sempre de seu coração: à noite, ela tremia,
temerosa de cair nas chamas eternas. Durante o dia, pensava em rezar para
dissipar os terrores do sono. Mas uma força desconhecida a impedia de cruzar o
limiar abençoado onde a Mãe de Deus ajudava aqueles que imploram por ela. A
moça bem que suspeitava que o estranho que a abordara era um enviado do inferno
e lamentava amargamente as palavras que ele lhe dissera.
O
que fazer para ter a Virgem de volta? Pôs-se a chorar penitentemente e
amaldiçoou a própria beleza, que a havia arruinado. Deixou de lado as roupas
elegantes e evitou encontrar-se com Jehan. Sofria tanto com o medo de morrer em
pecado mortal e ser condenada, que não mais procurou os olhares de admiração da
multidão.
Impossibilitada
de entrar em Notre-Dame, lembrou-se de que havia estátuas da Mãe de Deus no
cimo da igreja. Tomou a escadaria que conduzia a uma das torres e, depois de
galgar os trezentos e noventa e sete degraus de cantaria, parou pensativa,
olhando os transeuntes que entravam e saíam da Place du Parvis. De repente,
sentiu um arrepio de terror: o estranho, que a havia parado perto do pórtico,
continuava a tentar outros fiéis, para impedi-los de rezar na igreja. Só então
seus chifres ficaram visíveis e, também, suas asas de anjo rebelde.
Bertilde
caiu de joelhos, estremecendo e exclamando:
—
Foi Satanás! Estou condenada! E entreguei minha alma ao demônio.
Bateu
no peito em desespero, invocando, entre lágrimas, a Mãe de Deus. Ao longe, viu
a estátua da Virgem, no alto da porta do Claustro e, juntando as mãos em
súplica, disse:
—
Santa Virgem, tu és mais poderosa que Belzebu. Mesmo que tenha sido o príncipe
das trevas que me tentou, salva-me! Tu podes salvar-me!
A
fé de Bertilde abrira o tesouro das misericórdias celestiais. Lúcifer, que
estava próximo ao pórtico, sentiu o seu poder em perigo; apercebeu-se de que
uma alma lhe escapava. Abriu suas asas sombrias e rumou à Torre Norte, onde a
jovem permanecia ajoelhada. Em vez de suas antigas palavras melosas, agora
falava raivosamente a uma perturbada Bertilde:
—
Tu me pertences! Nada te salvará da condenação!
Bertilde
fez o sinal da cruz e respondeu somente com oração.
—
Mãe de Deus, salva-me! Ocultarei a minha beleza sob um véu de freira. Quero ser
esposa de Jesus Cristo e dedicar a minha vida ao cuidado dos pobres doentes do
hospital.
Ela
havia vencido. A Virgem Maria atendeu ao seu pedido. Uma chama flamejante
envolveu Lúcifer, que desapareceu. A jovem, sentindo que o vínculo misterioso
que a prendia ao demônio havia se quebrado, levantou-se cheia de alegria.
Desceu rapidamente os degraus de pedra e entrou, sem qualquer obstáculo, na
igreja de Notre-Dame para agradecer à Virgem por tê-la salvo.
Pouco
depois de ter renunciado a todas as vaidades terrenas, depois de ter se
despedido dos amores deste mundo fugaz, para cumprir o seu voto, consagrou-se a
Deus na igreja de Saint-Julien le Pauvre, bem como a servir aos doentes do
Hôtel-Dieu, que ficava na Place du Parvis, próxima à igreja de Notre-Dame. Ela
havia encontrado a paz e imensa era a sua felicidade. Ela agora conhecia e
amava Jesus, o filho de Maria. E nunca mais pensou em Jehan, o estudante.
Fonte: “Légendes de
Notre-Dame de Paris”, 1893 – Emile Colin Éditeur.
Ilustrações do miolo:
L. Matrejean (séc. XIX) e Jacques Victor Orsel (1795 – 1850).
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