VALSA FANTÁSTICA - Conto Clássico de Horror - Afonso Celso


 

VALSA FANTÁSTICA

Afonso Celso

(1860 – 1938)

 

No arraial do Salto Grande, Bahia e Minas se extremam.

Pequena e triste a povoação. Três ruas acanhadas — casas baixas, caiadas de tabatinga, telhas à mostra, nuas de forro e de assoalho, raquíticas —, lembrando, vistas de longe, pontos de giz em lousa escura.

Raros transeuntes vagueiam. A trechos, pastam bois fulvos — grandes e impassíveis —, abanando a cauda com tédio, circunspectamente.

Amarradas aos portais, mulas seladas esperam os cavaleiros.

Zumbem-lhes moscas amareladas (mutucas), em torno do pescoço, das orelhas, das ancas, às tontas, num sussurro morno, pulverizando o ar de pequeninas manchas movediças.

Surde um vaqueiro: — monta a cavalgadura de um salto.

Veste de couro, pistola à cinta, nos pés largas esporas tintilantes.

Soa o estalo do rebenque. E o animal se afasta, pausado, grave, ritmicamente.

Ecos de palestras lânguidas vibram com moleza. Bandos de pintainhos felpudos, guiados por galinhas obesas, faíscam no lixo, soltando pios frouxos.

Paira um silêncio sonolento e tépido...

Mas, dominando tudo, soturnamente vaga, rola pelo ambiente a voz distante de uma espécie de rugido, lúgubre e rouco.

Toada surda, cortada de uivos, que se propaga, esmorece, avoluma, murmura, morre, consoante o rumo do vento.

É do Tombo Grande do Jequitinhonha, a uns dois quilômetros do arraial.

Os habitantes têm-lhe medo. Alguns, vivendo de há muito no povoado, nunca se atreveram a ir vê-lo.

Contam-se dele histórias terríveis.

Fantasmas, à meia-noite, passeiam-lhe as ribanceiras.

Engole por ano dez a doze pessoas, número avultado para a população.

Três dias antes, um bom canoeiro, o José, fora arrastado pela correnteza e desaparecera. Coitado! Filho único, 23 anos, rixoso, alegre, esforçado rapagão!

 A mãe chorava, rezando. O povo repisava o fato em conversas baixas, lamentando, com conselhos prudentes e comentários trágicos, grifados de gestos de terror.

II

Chovia e ventava quando fui, com três camaradas, visitar o Tombo.

Chuvisco esguio, em cordões diamantinos, gradeando a atmosfera opaca...

No fio elástico que me prendia o chapéu ao paletó, assoviava o vento, finíssimo.

Fôramos obrigados a fechar os guarda-sóis. O orvalho nos pontilhava o fato de miúda escama cintilante. No caminho pedregoso, um limo pardo fazia escorregar. Andávamos de gatinhas, às vezes.

Rochas à direita, rochas à esquerda, rochas no fundo, rochas em cima, rochas em baixo e na frente de nós, rochas sem fim.

Um cárcere de granito, um labirinto de pedras. O próprio firmamento parecia enorme rocha cor de cinza.

E eram rochas de um bizarro escuro carregado: — pedaços de noite tempestuosa petrificados.

Caminhávamos havia meia hora. O rugido se aproximava e crescia.

Já mal nos podíamos ouvir. Tiritávamos.

A espaço, perdíamos o pé em côncavos cheios d’água, semelhante a bílis.

Dentro, animais viscosos mexiam-se lentos.

Pássaros agoureiros se erguiam a nossos passos, num voo preguiçoso, sumindo-se de pronto entre as arestas. Asas plúmbeas: — despendiam, batendo-as, rumor triste.

Galgamos, a custo, íngreme ladeira. Resvalavam-nos os pés. Dávamo-nos a mão uns aos outros, cautelosamente.

O estrondo se tornara poderoso, pleno, retumbante, com repercussões profundas. À neblina da altura casara-se outra, vinda de abismo invisível. Dir-se-iam batalhões de diamantes pequeninos, cruzando-se, emaranhando-se, à desfilada, em refrega intensa.

Nevoeiro úmido subia também, enovelando. Pingos grossos se nos vinham esborrachar na face. Seguíamos silenciosos, indecisos, entre ansiedade e medo.

De repente, a uns trinta passos, avistamos a catadupa.

Imponente e horrível! A água toda do Jequitinhonha, depois de um percurso de centenas de léguas, engrossada de milhares de torrentes, espumejante do despenhamento de trezentas cachoeiras, após se haver precipitado pelos cinco enormes degraus de uma escada de gigantes, arremessava-se, enfim, do Grande Tombo, alucinada, atroadora, formidável, entre muralhas negras, quebrando-se, torcendo-se como acrobata titânico, crivado de rendas e de ouropéis argênteos, a deslocar-se em exercícios de ginástica assombrosa!

III

Chama-se Tombo da Fumaça. Estreito e alto. Rodeiam-no, como sentinelas revestidas de armadura, paredes elevadíssimas, carcomidas na base, de formas fantásticas.

Promontórios longos, como braços secos, adiantam-se a espaços, mergulhando no abismo. Em alguns pontos, arredondam-se buracos escuros, lembrando grande órbitas vazias. Quando molhados, ou através da bruma, semelham olhos vítreos de monstros, fixos e espantados.

Mais além, levantam-se para o ar grimpas agudas, num gesto de ameaça hirta.

Perpétuo véu de névoa envolve tudo, esgarçado aqui e ali por esguichos violentos.

Sente-se a emanação da profundeza. Há anfractuosidades, recôncavos, jatos de pedra, rochas retorcidas, numa convulsão imóvel, como se surpreendesse a paralisia em contorção espasmódica de dor.

Medo incerto nos penetra. A vista torvelinha. No ouvido já não ribomba o estrépito, mas ruído perfurante, que sacode o cérebro e desafina os nervos.

A montanha d’água desmorona pesada, rapidamente bruta, volumosa e ampla.

Tomba no vórtice com ímpeto pujantemente elástico. Engolfa-se em cachões, incha em estoiros. Comprimida pelas rochas, fechada em parênteses, ferve e pula, entrançada, arquejante, com espuma lívida e uns ofegos de cansaço irritado, que a levantam desesperadamente.

Depois, corre voraginosa. Surge novo obstáculo. Como que medrosas, as rochas se retraem, opondo-lhe barreira semicircular.

Arremete contra elas, furiosa; e, colhida de súbito, revoluteia, turbilhonando em rebolo. É o sorvedouro, o rodopio, o redemoinho.

Só de o fitar, vêm vertigens. A caudal reboca-se aí com rapidez incalculável, estuando, girando, rolando, rodando, em espirais — cuspindo espuma sobre as ancas das muralhas pretas. Nem um peixe pode ali viver.

 Exala fumaça úmida, como o hálito salivoso de enorme fera.

Não sei qual mais belamente horrível: se a catadupa, despenhando formidavelmente, se aquele movimento circular, contínuo e tonto, que atrapalha a visão, encadeia os olhos, atraente e irresistível, com magnetismo que anestesia e puxa para a morte.

IV

De repente, notei uma coisa a se debater no remoinho.

Apontei. Fitamos a vista e vimos distintamente um corpo humano que girava com a água.

Era o cadáver do canoeiro, do José, arrastado para ali pela correnteza. Rolara pelo Tombo e fora cair no sorvedouro de onde o movimento rotatório o impedia de sair.

Aos poucos, fomos-lhe observando os traços. Tinha os braços arqueados, o busto inclinado, ventre para baixo, na posição de quem cinge alguém.

Trajava calça de ganga. Nu da cintura para cima, ensanguentavam-lhe o tronco manchas rubras de feridas.

As oscilações bruscas da corrente davam-lhe estremecimentos de vida. Não se lhe distinguia o rosto. Entumescera. De onde estávamos, se nos afigurava enorme.

Ao estrépito do Tombo, desvairado por aquela música possante e estranha, dir-se-ia que valsava uma valsa macabra.

Era-lhe par a água flexível. Cingidos em estreito abraço, abraçavam unidos. O valsista ora descrevia círculos longos e frementes, enquanto a cauda de rendas brancas da dama — a espuma — se espalhava em franjas, roçando nas rochas — ora, num frenesi louco, partia mais rápido, em círculos mais curtos, a ofegar, em delírio, valsando sempre.

Às vezes, batia com a cabeça nas pedras. Recuava de pronto, ágil e leve, e recomeçava a valsar, sem perder o compasso fantástico.

Na música, a sons entorpecedores seguiam notas agudas, de estremecer.

Escorriam no ritmo morbidezas letais.

A onda apresentava meneios lascivos e lânguidos, ou tremores repentinos de comoções histéricas. Serpenteava-lhe a cauda longa e donairosa, acompanhando os volteios, lambendo a voragem.

Calafrios corriam. Percebiam-se arquejos e soluços na dança insensata.

Num passo arrojado, o valsista abalroou mais de rijo na pedra.

Afastou-se destramente até o centro, onde o abismo se afunda em funil. Os pés decaíram-lhe e ele pôs-se a prumo. Grave, sério, correto, fez-nos elegante mesura, sacudindo a cabeça. Depois, saudoso do par, que continuava a valsar sozinho, atirou-se apaixonadamente sobre ele e desatou de novo a valsar.

Vimos-lhe então perfeitamente o rosto. Olhos consideravelmente abertos e parados, escancarada a boca, na expressão desesperada de quem se apresta para morder. Esboçava, entretanto, um largo riso sarcástico. E à orquestra, infernal prosseguia, cada vez mais furiosa, a valsa sem fim.

O cumprimento pareceu-me um convite. Veio-me vontade de imitar o valsista, de apertar igualmente nos braços a sua dama untuosa e pérfida.

A música ensurdecera. Suavizara-se agora em cadências aveludadas que infiltravam suave letargia. Notas acetinadas produziam arrepios de etérea sensualidade. As pálpebras fechavam-se sob a pressão de sono macio. Tudo em torno valsava: as montanhas, as pedras, as nuvens, a chuva, a própria catadupa.

Como resistir? Tremia-me o corpo, os ouvidos zuniam-me, cambaleavam-me as pernas: — suava, apesar do frio.

Dei um passo para a frente, disposto a ceder. Meus companheiros olharam-me e compreenderam.

A atração do abismo atuava energicamente sobre mim.

Carregaram-me. Mais um minuto e estaria perdido.

V

Na volta ao povoado, o Pantaleão — homenzinho magro, franzino, de voz rachada —, ouvindo-me contar onde se achava o cadáver:

 — Vou tirá-lo para o enterrar — disse com simplicidade.

— Impossível — retorqui.

— Fui seu amigo. Não o posso deixar sem sepultura.

 — Mas arrisca-se a morrer também.

Levantou os ombros e despediu-se.

Pensei que não passasse aquilo de bravata imprudente e o Pantaleão renunciasse ao temerário projeto.

Horas depois, tocava o sino na capela do alto. A população se movia curiosa. O Pantaleão cumprira a palavra!

Descendo as muralhas quase a pique, amarrado a uma corda presa em cima, apoiando os pés nas concavidades, exposto mil vezes a tombar no vórtice, conseguira, após insano labor, laçar o corpo do amigo por uma perna. Depois, com longa vara, impeliu-o para fora do rodopio. Fê-lo cair na correnteza, e, segurando o comprido liame, foi pescálo abaixo, num pequeno remanso.

Chamou-o a si, colocou-o numa rede, e, solicitando então auxílio de companheiros, conduziu-o para a igreja.

Fui abraçar o Pantaleão. Encontrei-o impassível a cavar a cova para o José.

Ora — disse a sorrir ante os meus cumprimentos —, o senhor em meu lugar faria o mesmo...

Senti-me pequenino, diante daquele homem tão pequenino.

VI

E corri à igreja para ver de perto o valsista.

Estava cheia a modestíssima nave. Grupos consternados mexiam os lábios devagarinho, cochichando orações. Crianças pálidas e seminuas andavam soltas, balbuciando palavras de terror.

Exalava-se o sino em fúnebres arrancos, despedindo notas breves e pausadas, como reticências sonoras.

Nos intervalos, ouvia-se a enxada do Pantaleão, baqueando, ao lado, surdamente no solo.

Ninguém se aproximava do centro, onde, numa penumbra, o corpo imóvel destacava.

Horroroso! Já não tinha forma humana. O crânio se fendera, gotejando aguadilha verde. No sítio dos olhos, buracos escuros e sem fundo.

Da boca, enormemente dilatada, pendia um mulambo de carne gangrenada. Não seria mais asqueroso o cadáver de uma víbora hidrópica.

O ventre abaulado e redondo fazia proeminência como um bolo. Os tecidos dos braços se desprendiam rachados. Placas violáceas marchetavam o tronco.

Moscas tontas zuniam em roda.

Fétido insuportável saía daquela coisa infecta e informe que fora um homem. Miasmarase o ambiente.

Todos cuspiam enjoados, com a mão no nariz.

De repente, afastando os grupos, desesperada, uma mulher idosa se precipitou sobre aquilo. Caiu de joelhos, tomou uma das mãos do cadáver, e, chorando, soluçando, cobriu de beijos carinhosos a massa dos membros apodrecidos.

 Achegaram-se todos com respeito, chorando também.

 Era a mãe!

1882.

 

Fonte: “Vultos e Fatos”, 4ª. edição, Domingos de Magalhães editor, Livraria Moderna, Rio de Janeiro, 1893.

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