A DAMA E A GUILHOTINA - Conto Clássico de Terror - Autor anônimo do séc. XIX
A DAMA E A GUILHOTINA1
Autor anônimo do séc. XIX
O fato que vamos contar se deu com Hoffmann, o notável escritor alemão.
Estava ele em Paris, no terrível período da Revolução. Muitas cabeças vira tombar da guilhotina, e, entre elas, a de formosíssimos fidalgos. Como observador que era, Hoffmann perdia esses terríveis e sinistros espetáculos.
Uma noite, foi ele ao teatro da ópera. Representava-se o Juízo de Paris, bailado mímico de um tal Gardel, filho do de mestre de dança de Maria Antonieta.
Estava muito a seu gosto sentado em uma cadeira, quando viu a seu lado um homenzinho pálido, que mais parecia um desenterrado.
O homenzinho pôs-se a conversar com Hoffmann, que daí a pouco sabia que ele era médico.
Já muito aborrecido, ia Hoffmann retirar-se, quando viu entrar em cena uma dançarina de uma beleza extraordinária.
—Como é formosa! — exclamou ele, deixando-se prender por aquela sedutora criatura.
—É a amante de Danton — disse-lhe o médico, que ouvira a sua exclamação. — E olhe que o patriota tem por ela um ciúme de tigre!
—Esquisito colar traz essa bela mulher ao pescoço! — disse Hoffmann.
— Aquele colar — afirmou o médico —representa uma guilhotina.
—Uma guilhotina!
—Sim, é a moda agora. Aquele que Arsênia traz — pois que se chama Arsênia — foi-lhe dado por Danton.
Hoffmann saiu do teatro apaixonadíssimo pela dançarina, e fez todos os esforços para ser-lhe apresentado.
Dias depois, louco de amor, não podendo esquecer-se daquela mulher que o fantasiara, que o escravizara, correu à casa do Arsênia, disposto a confessar-lhe o seu amor; ou a morrer a seus pés.
Vendo a porta do corredor aberta, Hoffmann entrou resolutamente.
— Aonde vais, cidadão? — perguntou-lhe o porteiro.
— À casa de Arsênia— respondeu Hoffmann, atirando ao porteiro três ou quatro luíses.
— A cidadã Arsênia já aqui não mora — disse o porteiro. — O cidadão Robespierre mandou prender o cidadão Danon. Por esse motivo fugiu a pobre mulher, porque, como amante de Danton, estava muito arriscada a ir fazer-lhe companhia na guilhotina.
Hoffmann saiu desesperado, e percorreu como um louco as ruas da cidade, procurando em vão a formosa Arsênia. Às 11 horas da noite, passou ele, naquele vertiginoso passeio, pela praça da Revolução, e viu que estava em frente da terrível guilhotina.
Hoffmann cruzou os braços e pôs-se a contemplar a sinistra máquina. De repente ouviu um gemido... depois outro... depois outro...
—Parece voz de mulher! — murmurou ele — E dir-se-ia que soa por baixo da guilhotina.
Abaixando-se, então, para ver, deu com o pé de encontro a um vulto vestido de preto, que estava acocorado sobre os primeiros degraus da escada.
—Quem está aí? Quem assim dorme junto à guilhotina? —perguntou ele.
E, dizendo isto, ajoelhou-se para ver o rosto da pessoa a quem se dirigia. Era uma mulher. Apesar do frio da noite, tinha ela os ombros inteiramente nus, e Hoffmann viu um círculo preto que lhe rodeava inteiramente a alva garganta. O círculo era um colar de veludo.
—Arsênia! — bradou ele.
—Arsênia, sim! —murmurou com singular metal de voz a mulher acocorada, erguendo a cabeça e olhando para Hoffmann.
—Que fazes aqui a esta hora? — perguntou ele.
—Danton foi preso — respondeu Arsênia. —Fugi vestida como estava, o vim para aqui.
Estas palavras eram ditas sem inflexões. Saíam de uma boca lívida, que se abria e fechava como se fosse movida por uma mola. Parecia um autômato a falar.
—Mas não podes ficar aqui — exclamou Hoffmann.
—Para onde hei de ir? — murmurou ela.
—Dá-me o braço e vem comigo.
Hoffmann levou-a para um hotel. Ao dar-lhe o braço, sentiu que a infeliz eslava fria, fria como o mármore.
— Pobre mulher! — exclamou Hoffmann. — Quanto deves ter sofrido!
—Sim —respondeu Arsênia. Sofri muito.
Hoffmann mandou acender em um quarto do hotel a lareira e as velas, e ordenou que preparassem uma ceia.
—Tenho tanto frio! — murmurava Arsênia de vez em quando.
Hoffmann arrancou uma cortina de uma janela e entregou-a a Arsênia, que a enrolou no débil corpinho.
Sentaram-se à mesa e beberam.
Hoffmann quis ela comesse; Arsênia, porém, recusou, dizendo:
—Não posso engolir.
À medida que ela bebia, animava-se gradualmente. Notou Hoffmann, porém, que, quando despejava o seu copo, algumas gotas do liquido cor de rosa sabiam pela parle inferior do colar de veludo e corriam-lhe pelo peito.
De repente, caiu uma brasa do fogão. Hoffmann seguiu com o olhar a direção que levava o tição inflamado, e viu-o cair sobre o pé descalço de Arsênia. A dançarina, sem dúvida com o intuito de se aquecer mais depressa, tinha descalçado as meias e os sapatos. O pezinho, branco de jaspe, da formosa mulher, descansava sobre o mármore da lareira, cuja alvura se confundia com a do pé.
Hoffmann deu um grito.
—Arsênia —disse ele — toma sentido!
—Em quê? — perguntou ela.
—Nessa brasa que está sobre o teu pé!
E a brasa cobria efetivamente quase metade do pé de Arsênia.
—Tira-a fora — disse ela com lodo o sossego.
Hoffmann abaixou-se, agarrou no tição e viu, com espanto, que não era a brasa que tinha queimado o pé da jovem, mas, pelo contrário, que era o pé que tinha apagado a brasa!
Apesar de tudo, a paixão dominava-o. Caiu aos pés de Arsênia, e depois em seus braços…
Quando Hoffmann acordou no dia seguinte, olhou em derredor, e sentiu que um corpo inerte pesava-lhe sobre o braço esquerdo.
Lembrou-se então de ludo quanto lhe havia acontecido, e, vendo que ela se conservava imóvel, pálida e com os olhos cerrados, compreendeu que estava morta.
Saltou do leito e correu à janela, gritando:
—Acudam-me! Socorro!
Nesse momento passava o homenzinho do teatro da Opera, o médico que havia travado relações com Hoffmann. Ouvindo os grilos deste, subiu o médico ao quarto.
Ao ver o cadáver de Arsênia, disse o homenzinho:
—É muito louvável o que fizeste, cidadão. Graças a ti, esse corpo não apodrecerá na valia comum!
—Esse corpo… na vala comum… — murmurou Hoffmann.
—Sim. Pois não sabes que Arsênia foi presa ontem às oito horas da manhã, julgada às duas da tarde, e guilhotinada às quatro?
—Arsênia guilhotinada! — exclamou Hoffmann, dando uma gargalhada.
—Pois duvidas? —perguntou o médico.
—Como não hei de duvidar — disse Hoffmann, se eu ceei com ela e passamos a noite juntos?!
—Singular acontecimento! — murmurou o médico. Como duvidas do que te digo, vou prová-lo que essa moça foi guilhotinada.
E, dizendo isto, o médico estendeu o braço e apertou a mola do fecho de diamantes que segurava o colar de veludo à alva garganta de Arsênia.
Hofmann soltou um grito estertoroso, medonho.
A cabeça da justiçada, não estando mais presa ao corpo pelo colar, resvalou do leito para o chão, e caiu sobre os pés do desvairado moço.
Compreendeu ele, então, que havia passado a noite com uma defunta!
Fonte: “A Pacotilha”/MA, edição de 13 de julho de 1889.
Ilustração: PS/Copilot.
Nota:
1 Conto baseado no romance “A Mulher da Gargantilha de Veludo”, de Alexandre Dumas (1802 – 1870), que, por sua vez, se inspira no conto “A Aventura do Estudante Alemão”, de Washington Irving (1783 – 1859), já publicado neste site.
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