MISSAS MACABRAS - Narrativas Clássicas de Terror - Amélie Bosquet


 

MISSAS MACABRAS

Amélie Bosquet (1815 – 1904)

Tradução de Paulo Soriano



1

As almas dos sacerdotes também fazem aparições. Se um sacerdote, durante a sua vida, deixou de rezar uma missa, pela qual recebeu o pagamento, deverá voltar para celebrá-la após a sua morte, ou mesmo dizer as palavras essenciais, se, por acaso, tiver esquecido alguma. Não é raro encontrar sacristães que alegam ter prestado tais serviços noturnos.

2

Podemos relatar, segundo uma tradição oral, como ocorreu a celebração de uma missa oficiada por um fantasma, após uma tragédia, ocorrida na pequena aldeia de Monterollier, distrito de Neufchâtel-en-Bray, na época da Revolução.

Tal como os outros eclesiásticos oficiantes a época, o pároco de Monterollier foi encaminhado à sede do seu cantão para prestar juramento na Convenção Nacional.

Na mente do pobre sacerdote, o juramento, que lhe era exigido, o tornaria culpado de apostasia e sacrilégio. Por outro lado, ele sabia muito bem que a recusa no cumprimento daquela formalidade significaria padecer de uma morte ignominiosa. O horror deste impasse causou tal violenta impressão naquele espírito infeliz, que o padre, perdendo a razão, deliberou pôr fim às suas incertezas por via do suicídio: atirou em si mesmo, à queima-roupa, com uma pistola.

A sua trágica morte foi motivo de emoções diversas para os habitantes da sua freguesia e aldeias vizinhas. No entanto, talvez o padre tivesse sido facilmente esquecido, em meio aos ruídos dos acontecimentos nacionais, se o acontecimento sobrenatural, que o acompanhou de perto, não tivesse instigado, por longo período, a memória popular.

Certa feita, quando o moleiro local fazia uma das suas rondas habituais, na exclusiva companhia de seu burro, que transportava os sacos de farinha, teve de atravessar um bosque, situado a alguma distância de Monterollier, numa área próxima de outra aldeia chamada Saint-Martin-le-Blanc.

O moleiro seguia alegremente, assobiando uma canção, quando viu, no meio do caminho, a sombra do padre suicida. Aquela figura era tão familiar ao nosso aldeão que, inicialmente, ele não ficou surpreso e nem mesmo fez qualquer reflexão sobre a singularidade daquele encontro. Sequer tentou desviar-se de seu caminho.

Estando o moleiro diante do fantasma, este o chamou pelo nome e perguntou-lhe se sabia auxiliar a missa. O moleiro respondeu afirmativamente:

Poderás mesmo auxiliar a missa que será rezada? — perguntou-lhe o espectro.

Sem dificuldade — respondeu ingenuamente o aldeão.

Mal deu o seu consentimento, viu diante de si um altar montado, velas acesas e tudo preparado para o sacrifício divino.

O padre começou imediatamente a missa, pronunciando cada palavra com solene gravidade. O moleiro disse os responsos com profunda contemplação e sem aparentar qualquer perturbação.

O ofício continuou naturalmente até a fórmula ite missa est. Então as velas se apagaram, o altar sumiu e a sombra do sacerdote desapareceu.

O encontro com o fantasma e o ato religioso que se seguiu sucederam-se tão rapidamente que o moleiro não fora tocado pelo impulso do medo. Mas, quando se viu abandonado no meio da escura solidão do bosque; quando percebeu que o seu burro, que não fora amarrado, permanecera imóvel, como se suas patas estivessem fixas no chão; quando, finalmente, revisitou em seu espírito todas as circunstâncias do extraordinário evento que acabara de testemunhar, sentiu um medo tão marcante, que todos os seus esforços para combatê-lo restaram inúteis.

Assim, apressou-se em voltar a casa. Mas, ao chegar, caiu doente. Morreu ao fim de uns poucos dias, quer por medo, quer porque a fatalidade da aparição que encontrara o condenou a um fim iminente.





3

Ordinariamente, é no interior das igrejas que os padres falecidos aparecem e permanecem de pé durante a noite, à espera de que um homem corajoso e suficientemente dedicado apareça para lhes prestar o auxílio na missa. Vê-se, então, luzes sobrenaturais rebrilhando através dos vitrais do santuário, como se para despertar a atenção dos fiéis.

4

O cemitério que circunda a igreja de Saint-Martin-des-Champs, na estrada que liga Falaise a Condé-sur-Noireau, a meia légua desta última cidade, é conhecido por ser palco das mais assustadoras aparições. Lá se encontram todos os tipos de animais suspeitos; cavalos, soberbamente atrelados, oferecem-se aos viajantes, que são transportados a algum abismo infernal, do qual jamais regressam. Por fim, pode-se considerar este asilo de mortos um retiro para os condenados, sobretudo devido às bolas de fogo que saltam e rolam pelos seus túmulos.

Dois viajantes, quando passavam por este temido lugar, por volta da meia-noite, viram o interior da igreja todo iluminado.

Entraram e encontraram um sacerdote ajoelhado aos pés do altar, repetindo continuamente:

Dominus vobiscum.

Por uma prudência sabiamente calculada, os nossos dois viajantes não fizeram notar a sua presença. Então, voltaram e foram acordar o padre, contando-lhe a maravilha que haviam presenciado.

Ora, o pároco de Saint-Martin-des-Champs, tendo em seu sacristão um conselheiro habitual, julgou oportuno chamá-lo em seu auxílio naquela perigosa circunstância.

O corajoso Méroure, como se chamava o sacristão, indignado com o fato de alguém ter entrado na igreja e de dispor dos castiçais sem o seu consentimento, correu com toda pressa ao local do vilipêndio, seguido por parte da aldeia, que já estava em alvoroço.

No entanto, somente Méroure se atreveu a cruzar os umbrais da igreja.

Neste instante, o padre repetiu mais uma vez o interminável “Dominus vobiscum”.

Levado pela força do hábito, o sacristão respondeu imediatamente:

Et cum spiritu tuo.

O espectro, encontrando perto de si o homem de boa vontade que tanto esperava, iniciou a missa, que foi respondida religiosamente, até o final, por Méroure.

Depois do último Evangelho, o padre voltou-se para a assembleia e declarou que, tendo podido, graças à intervenção oficiosa do sacristão, rezar missa que, em vida, prometera fazê-lo, não mais remanescia qualquer impedimento à sua participação na bem-aventurança celestial.

5

Um acontecimento semelhante ocorreu em Saint-Étienne-Lallier, distrito de Pont-Audemer, há cerca de um século, e a memória do ocorrido sobrevive até hoje.

Lá, as pessoas notaram que, todas as noites, a igreja de Saint-Étienne-Lallier ficava iluminada. Tal circunstância deu origem a um bom número de conjecturas. Por fim, chegou-se à conclusão de que a igreja era assombrada. Para ter-se certeza disto, um sacristão e um dos cantores da paróquia consentiram em passar a noite no local. Prometendo oferecer um relato fiel do que tinham visto, e com o escopo de tudo examinar com tranquilidade, eles montaram uma cama num biombo colocado no fundo da nave.

À noite, após as orações, deitaram-se juntos e adormeceram subitamente. Porém, depois de algum tempo, o cantor acordou, pois tivera de um lúgubre sonho. A solidão e a escuridão da igreja provavelmente não o tranquilizaram; por isso, fez todos os esforços para reatar o sono. Assim, escondeu a cabeça sob o cobertor e fechou os olhos, decidido a continuar naquele estado. Dizia a si mesmo que, pelo menos, aquela discrição talvez o poupasse de algumas armadilhas.

Soaram, todavia, as onze horas, que era o momento fatal das aparições. O cantor sobressaltou-se, moveu-se e viu a igreja completamente iluminada. Mas… que maravilha! Não se viam lamparinas ou velas acesas. A luz parecia filtrar-se através das próprias paredes do edifício. Era, ademais, uma luz pálida, fria, inanimada, sem tremores ou irradiações. Nosso pobre cantor sentiu-se profundamente perturbado; então, um tanto tranquilizado pela presença do companheiro, que continuava adormecido, ponderou que chegara o momento de acordá-lo. Afinal, não estavam juntos para partilhar as mesmas preocupações e os mesmos perigos? Chamou o dorminhoco em voz baixa, cutucando-o levemente com o cotovelo; não obtendo nenhuma resposta, o cantor, exasperado pelo medo e pela impaciência, puxou o companheiro para todos os lados, deu-lhe beliscões e mordidas, enfiou-lhe um alfinete na carne. Mas de nada lhe valeu o esforço, porque aquele sono profundo persistia. Em meio a estas tentativas infrutíferas, de cabeça quente, viu que a sua razão esvanecia-se. O grito de angústia, que lhe escapou dos lábios, foi abafado pelo toque do sino da meia-noite. Então, o que ele viu? Viu uma forma corpórea, tênue e pálida como uma sombra, que permanecia no fundo do santuário, vestida com os paramentos de um padre oficiante. Aquele estranho ser se pôs em movimento. Deslizou pelo chão, quase sem tocá-lo. Iniciou uma ronda pela igreja e se aproximou do local onde deitara-se o cantor. Este sentiu um suor agônico a escorrer-lhe testa abaixo, mas o fantasma continuava sua lenta caminhada, retornando à beira do altar, onde se ajoelhava por instantes. Depois, reiniciava a cíclica jornada.

Sempre que o espectro se aproximava, a ansiedade do cantor intensificava-se. Parecia-lhe que fora poupado somente para ter o medo punido com redobrada crueldade. E assim pensou porque percebera que o semblante do falecido se tornava cada vez mais sisudo e ameaçador. Todavia, a mortal ansiedade chegou ao fim: a luz misteriosa desapareceu subitamente, o espectro do sacerdote dissipou-se como um leve vapor de incenso, perdendo-se nas sombras renascidas da noite.

A curiosidade dos habitantes da freguesia foi mais excitada do que satisfeita pela narrativa desta estranha aventura. Insistiram os dois companheiros a que fizessem a vigília na igreja por mais uma noite. À força de orações e felicitações por sua coragem, conseguiram persuadi-los. A cena misteriosa repetiu-se exatamente como acontecera na noite anterior. Mas, naquela noite, o sacristão teve de testemunhar a aparição, enquanto o cantor dormia despreocupadamente.

Na terceira noite, foi o próprio padre quem quis fazer a prova; em vez de ir para a cama, permaneceu orando no coro. Na presença deste novo espectador, a cena mudou de aspecto; às onze horas não apareceu a habitual iluminação, mas um globo de fogo surgiu na igreja, percorreu-a rapidamente e veio pousar na balaustrada que separa o coro da nave. Quis o padre colocar a mão na bola em chamas; ela, todavia, fugiu com um silvo assustador e depois, em plena fuga, se apagou. Depois de fervorosa oração, o padre julgou prudente voltar para casa.

Estes avisos misteriosos inspiraram a ideia de examinar os registos paroquiais. Nestes livros, descobriu-se que, certa feita, um padre local recebera dinheiro para rezar uma missa; a sua morte, contudo, obstou a celebração.

Bem informado sobre a causa das aparições, o vigário de Saint-Étienne-Lallier dedicou-se a socorrer aquela alma atribulada. Certa noite, foi ajoelhar-se nos degraus do altar. Nada de extraordinário surgiu na igreja, e o caridoso vigário pôde rezar, tranquilamente, até meia-noite. Só então as velas se acenderam. De repente, um padre apareceu diante do altar e, depois de uma reverência de agradecimento àquele que o socorrera, iniciou a missa. Quando pronunciou o Deo gratias do último Evangelho, as velas, então acesas, apagaram-se por si próprias, e o fantasma desapareceu para sempre. O vigário morreu naquele ano.

6

Os pescadores de Polletais cuja imaginação é tão ardente quanto sombria fizeram diversas variantes desta tradição, conferindo-lhe um carácter mais dramático do que o encontrado alhures.

Depois de uma terrível tempestade, que manteve toda a vizinhança acordada durante uma parte da noite, o sacristão de Notre-Dame du Pollet começava a desfrutar das delícias do primeiro sono, quando foi subitamente acordado pelo toque do sino anunciando a missa.

Saltou da cama, supondo que dormira demais e que o padre havia a pedido a outrem que tocasse o sino.

Ao entrar na igreja, viu o padre, já no altar, e um grande número de pescadores que rezavam em piedosa contemplação. O sacristão, vislumbrando a face de alguns deles, nelas reconheceu, com indescritível terror, as de pessoas já falecidas, intuindo que naquela congregação só havia mortos. Um dos que lá estavam, por exemplo, saíra para pescar, há mais de um ano e meio, e nunca mais se soube dele; o cadáver de outro fora levado pelo mar o sacristão até se lembrava de ter comparecido ao seu funeral —, e assim por diante.

Tomado de horror, o infeliz não conseguia falar ou se mover. Contudo, a missa continuou. Na hora da comunhão, o sacerdote tentou erguer a hóstia até os lábios, mas ela escapou por entre os dedos. Então, soltou um grito de angústia assustador, repetido por todos os presentes. Depois, voltando-se para o sacristão, disse:

Meu pobre Pierre, meu pobre Pierre! Não me reconheces? Sou Regnaud, cujo barco, na semana da Páscoa, naufragou no rochedo de Ailly. Eu havia prometido uma missa em honra de Nossa Senhora, mas esqueci-me de meu voto. Tento agora — eu mesmo — rezar esta missa, em cumprimento de minha promessa. Mas, toda vez que tento comungar, a hóstia escapa-me dos lábios e sinto um inferno a arder em meu peito. Oh, mestre Pierre, sofro todas as torturas dos condenados: dize ao meu filho, rogo-te, que nunca se esqueça das missas que tiver prometido a Nossa Senhora.

7

Há vinte anos, em Barneville, departamento de Eure, um pedreiro, enquanto fazia os alicerces de uma fornalha de tijolos, encontrou, segundo dizem, um baú cheio de preciosidades, além de um caldeirão repleto de moedas de ouro.

Após esta descoberta, o pedreiro foi acometido de uma febre causada pelo medo, assente a ideia de que, ao apoderar-se do tesouro, tornara-se presa do diabo.

Em poucos dias, o pobre aldeão foi levado ao sepulcro, e os seus conterrâneos — como ele profundamente afeito aos preconceitos supersticiosos — não deixaram de dar uma explicação quimérica para a sua morte.

A tradição anunciava — dizia-se — a existência de um tesouro escondido no território da comuna de Barneville. Treze jovens daquela aldeia, reunidos, avaliavam um meio de obter, com a ajuda do diabo, aquele tesouro.

Os jovens, então, planejaram uma missa rezada ao contrário. Inacreditavelmente, um padre não teve receio de emprestar seu ministério àquele culto sacrílego. Mas, no momento solene da consagração, a ira do Céu manifestou-se num marcante sinal: uma nuvem de moscas desceu sobre o altar, envolvendo o sacerdote, que ficou, por alguns momentos, escondido do olhar dos presentes.

Aquele fora um aviso milagroso, provavelmente destinado a fazer com que os culpados tomassem consciência de tal vilipêndio. No entanto, eles não levaram o aviso em conta. A rigor, consideraram que tais ameaçadores prodígios eram uma garantia da aliança com Satanás e, consequentemente, do êxito daquela aventura.

Ao final da missa, enfiaram doze bolas vermelhas e uma preta numa urna, e se prepararam para o sorteio: aquele que tirasse a bola preta teria que se dedicar ao demônio para apoderar-se do tesouro, a ser compartilhado com os camaradas. Este pacto explica suficientemente como descobriam o tesouro e como o autor do achado morreu, pouco depois, devido às torturas que lhe foram infligidas pelo demônio, impaciente por apoderar-se da sua presa.


Excerto de La Normandie Romanesque et Merveilleuse, J. Techener Editor, Ruão, 1845.

Imagens: PS/Copilot.



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