A SERPENTE INTERIOR - Narrativa Clássica de Horror - Nathaniel Hawthorne



 A SERPENTE INTERIOR

Nathaniel Hawthorne

(1804 – 1864)

Tradução de autor desconhecido do séc. XX.



Lá vem ele! — gritavam os meninos pela rua afora. — Lá vem o homem que tem uma serpente no peito!

Herkimer, que estava quase a transpor o portão de ferro da mansão Elliston, parou ao ouvir os gritos que pareciam saudá-lo. E não foi sem um estremecimento que se viu a ponto de encontrar-se com o velho amigo, que tinha conhecido em plena mocidade, e que, agora, após um intervalo de cinco anos, ia ver de novo, vítima de uma obsessão ou de horrível mal.

Uma serpente no peito! — repetia consigo mesmo o jovem escultor. — Deve ser ele… No mundo não há outro que possa trazer no peito semelhante amigo. E agora, minha pobre Rosina, que Deus me inspire para que me desempenhe corretamente da minha missão! Como deve ser forte, na verdade, a fé feminina, porque ainda não perdeste a esperança!

Assim meditando, Herkimer ficou de pé junto ao portão, esperando que aparecesse o personagem anunciado de modo tão singular. Um ou dois minutos depois, avistou um homem de ombros encurvados, de aspecto doentio, olhos brilhantes e compridos cabelos negros, que parecia imitar o rastejar de uma cobra, pois, em vez de andar diretamente para a frente, avançava em linha sinuosa. Seria excesso de imaginação dizer que, moral ou fisicamente, qualquer coisa em sua pessoa sugeria o milagre da transformação de uma serpente em homem, mas de maneira tão imperfeita que, embora escondida, denunciava a sua natureza de réptil sob a aparência humana. Herkimer reparou no palor esverdeado que se espalhava sobre sua pele alva e isso lhe trouxe à lembrança certa qualidade de mármore no qual, certa vez, esculpira a cabeça da Inveja, tendo serpentes como madeixas.

O infeliz aproximou-se do portão, mas, em vez de entrar, parou de repente e fixou as pupilas brilhantes na fisionomia compassiva, mas resoluta, do escultor.

Ela me esgana! Ela me esgana! — exclamou ele.

Em seguida, ouviu-se um silvo, mas é discutível se era mesmo o silvo de uma cobra ou se partiu dos próprios lábios do suposto louco. Seja como for, Herkimer estremeceu até o âmago do coração.

Você me conhece, George Herkimer? — perjuntou-lhe o obcecado.

Herkimer reconheceu-o, sim, mas, para reconhecer as feições de Roderick Elliston no rosto que tinha diante de si, muito o ajudaram a prática e a familiaridade com as feições humanas, adquiridas na modelagem em barro. Contudo, era ele mesmo. Pouco adiantava pensar na transformação surpreendente, tremenda e abominável que aquele rapaz, de inteligência outrora brilhante, tinha sofrido nos breves cinco anos que Herkimer vivera em Florença. Uma vez verificada a possibilidade de tal transformação, tanto fazia concebê-la efetuada num momento como em anos. Inexprimivelmente chocado e surpreso, Herkimer sofreu ainda mais quando se lembrou que o destino de sua prima Rosina — ideal de feminilidade e doçura — estava indissoluvelmente ligado ao daquele ser que a Providência parecia ter bestializado.

Elliston! Roderick! — exclamou ele. — Soube de seu caso, mas estava longe da realidade a ideia que eu fazia. Que houve? Por que o encontro assim?

Oh, uma coisa à-toa! Uma serpente! Uma serpente! A coisa mais natural do mundo. Uma serpente no coração! Eis aí — respondeu Roderick Elliston. —Mas, e o seu coração, como vai? —continuou ele, fitando o escultor com uma agudez e uma penetração com que este jamais fora olhado. — Sempre puro e bom? Nenhum réptil nele? Com toda fé e consciência, e pelo demônio que vive dentro de mim, juro que é um milagre! Um homem que não esconde uma serpente no peito!

Acalme-se, Elliston — murmurou George Herkimer, pondo a mão no ombro do obcecado. — Atravessei o oceano para vê-lo. Ouça! Quero lhe falar em particular. Trago uma mensagem de Rosina… de sua esposa!

Ela me esgana! Ela me esgana! — murmurou Rodrick.

Com essa exclamação, a mais frequente em sua boca, o infeliz levou as mãos ao peito e comprimiu-o como se um espinho, ou uma tortura intolerável, o impelisse a abri-lo para que o mal vivo saísse, ainda que ligado à sua própria vida. Livrou-se então das mãos de Herkimer com um movimento sutil e, esgueirando-se pelo portão, refugiou-se na velha residência de família. O escultor não o seguiu. Viu que nenhuma utilidade teriam seus esforços naquele momento e desejava, antes de mais nada, pesquisar intimamente a natureza da doença de Roderick e saber sob que circunstâncias tinha ficado reduzido a tão lamentável situação. Conseguiu obter a informação por intermédio de um médico de nome.

Pouco depois de Elliston se ter separado da esposa — há quase quatro anos —, seus íntimos começaram a notar-lhe uma tristeza esquisita, que ia tomando conta de sua vida diária, como aquelas frias neblinas cinzas roubam os raios de Sol a certas manhãs de verão. Os sintomas levaram-nos a um número sem fim de suposições. Não sabiam se a saúde má estava influindo no humor de Roderick ou se um câncer mental corroía, gradualmente, como é comum em tais casos, a força física, agindo por intermédio do espírito, pois aquela é simplesmente a sombra deste. Procuraram a razão da doença nos seus planos desfeitos de felicidade doméstica — voluntariamente desfeitos pelo próprio Elliston — mas, por asse lado, nada puderam descobrir. Alguns pensavam que o amigo, antes tão inteligente, achava-se num estado de loucura incipiente, cujos primeiros sinais tinham sido, talvez, seus impulsos apaixonados; outros prognosticavam o definhamento progressivo. Dos lábios de Roderick, nada puderam saber. É verdade que, mais de uma vez, ouviram-no dizer, apertando convulsivamente as mãos no peito: — Ela me esgana! Ela me esgana! — mas, segundo a opinião dos que ouviam esse lamento de mau agouro, muito diferiam as explicações. O que poderia estar corroendo o coração de Roderick Elliston? Seria a tristeza? Seria, apenas, resultado de uma doença? Ou, em sua vida despreocupada, na qual, muitas vezes, se entregara a excessos e até mergulhara na devassidão, teria praticado algum ato que fizesse seu peito presa das garras mortais do remorso? Havia motivos plausíveis para cada uma dessas conjecturas; mas não se deve esconder que mais de um cavalheiro idoso, vítima dos bons banquetes e dos hábitos de preguiça, disse, com autoridade, que o segredo do mal era a dispepsia!

Parece que Roderick soube até que ponto se tinha tornado objeto das suposições dos amigos porque, sentindo uma repugnância mórbida pela curiosidade de que era alvo, passou a evitar toda e qualquer companhia. Começou a sentir pavor do olhar dos outros; e, não só evitava a luz dum rosto amigo, como até a do abençoado raio de Sol que, como uma bênção universal, simboliza o esplendor de Deus e exprime Seu amor por todos os seres que criou. As sombras do crepúsculo eram agora muito claras para Roderick Elliston; meia-noite, a hora mais escura, era a preferida para esgueirar-se para fora de casa; e, se alguma vez o viram, foi apenas quando a lanterna do guarda iluminou sua figura, deslizando pela rua, as mãos crispadas no peito, sempre murmurando: — Ela me esgana! Ela me esgana! — O que podia torturá-lo assim?

Tempos depois, todos sabiam que Elliston costumava procurar os charlatães que infestavam a cidade e até aqueles que, tentados pelo dinheiro, vinham dos lugares mais distantes. Por um desses sujeitos, exultante com a suposta cura que operara, soube-se, por meio de boletins e panfletos espalhados por todos os pontos da cidade e impressos em papéis escuros, que um cavalheiro distinto, Roderick Elliston, Esq., havia expelido uma SERPENTE que tinha no estômago! Era esse, então, o segredo monstruoso que, de seu esconderijo, surgia em toda sua horrível deformidade. O mistério saíra à luz, mas o mesmo não se tinha dado com a serpente. Esta, mesmo que não passasse de fantasia de um cérebro perturbado, continuava enroscada em sua caverna viva. A cura empírica tinha sido uma impostura, efeito, supunha-se, de alguma droga entorpecente capaz de, mais depressa, causar a morte do paciente do que a do odioso réptil que o obcecava. Quando Roderick Elliston recuperou por completo a sensibilidade, foi para verificar que, na cidade, só se falava em sua desgraça — mesmo depois dos usuais nove dias de assombro e horror —, enquanto, lá dentro do peito, ele continuava a sentir o enervante coleio de qualquer coisa viva e a ação corrosiva dumas garras incansáveis que satisfaziam, a uma vez, o apetite físico e o ódio infernal.

Chamou o velho criado negro, nascido na casa do seu pai e que já era homem maduro quando Roderick era de berço.

Cipião! — começou ele; e parou, os braços cruzados no peito. — O que dizem de mim, Cipião?

Senhor! Meu pobre amo! Dizem que o senhor tem uma serpente no peito — respondeu o criado, hesitante.

E que mais? — tornou Roderick, olhando desvairado para o criado.

Nada mais, querido amo — replicou Cipião —; apenas que o doutor lhe deu um pó e que a serpente pulou fora, caindo no chão.

Não — murmurou Roderick para si mesmo, sacudindo a cabeça e crispando as mãos sobre o peito.—Sinto-a aqui ainda. Ela me esgana! Ela me esgana!

Daí por diante, o desgraçado deixou de evitar o mundo; procurava, sim, forçar sua presença aos conhecidos e estranhos. Isso, em parte, era o resultado do desespero de verificar que a caverna de seu próprio peito não tinha sido bastante profunda e escura para esconder o segredo, apesar de ser, como sabia por experiência própria, uma fortaleza segura para o detestado demônio que se movia lá dentro. Mais ainda, esse ardente desejo de notoriedade era um sintoma de profunda morbidez de sua alma. Todos os doentes crônicos são egoístas, seja mental ou física a doença; seja pecado, pesar ou, simplesmente, o mal mais tolerável de alguma dor forte que atinja as fibras da própria vida. Tais indivíduos têm uma aguda percepção do próprio eu e com isso se torturam. Por conseguinte, o ego fica sendo uma coisa tão importante para eles, que não resistem à tentação de mostrá-lo abertamente a todos os que encontram por acaso. Há um prazer — talvez o maior de que é susceptível o doente — em desnudar o membro afetado ou ulcerado, ou o câncer no peito; e quanto mais vil o crime, mais difícil para o culpado impedir que sua cabeça triangular se insinue para fora, apavorando o mundo; porque, a personalidade do enfermo, ou do criminoso, é exatamente seu câncer, ou seu crime. Roderick Elliston que, antes, tinha alimentado tanto desprezo pelo comum dos imortais, agora pagava pesado tributo à humilhante lei. A serpente em seu peito era o símbolo de um egotismo monstruoso, em torno do qual tudo girava e que se deleitava, noite e dia, com o sacrifício contínuo e exclusivo de adoração diabólica.

Em breve, eram evidentes e inegáveis, segundo a maior parte das pessoas, os sinais de loucura. Por mais estranho que pareça, havia ocasiões em que se jactava e se orgulhava por se destacar do resto da humanidade e possuir uma natureza dupla e uma vida dentro da vida. Imaginava, talvez, que a serpente era uma divindade — não celestial, é verdade, mas tenebrosamente infernal — que lhe dava superioridade e santidade — espantosas, sim —, porém, mais desejáveis do que qualquer outro objetivo. Assim, envolvia-se em sua desgraça como se esta fosse um manto real e olhava de cima, triunfalmente, para aqueles que não alimentavam no seio nenhum monstro implacável. Entretanto, cada vez mais, a natureza de homem fazia valer seus direitos sobre ele: ansiava por companhia. Habituou-se, aos poucos, a andar o dia inteiro pelas ruas, sem destino certo — a menos que se possa chamar de destino certo a afinidade que tentava estabelecer entre ele e o mundo. Com habilidade diabólica, procurava seu próprio mal em todos os outros corações. Louco ou não, tinha uma percepção tão aguda da fragilidade, dos erros e dos vícios alheios, que muitas pessoas julgavam que estava possuído não apenas por uma serpente, mas por um autêntico demônio que lhe comunicava a perversa faculdade de ver no coração humano tudo o que ali se abrigava de condenável.

Por exemplo, encontrando-se com um indivíduo que, havia trinta anos, nutria ódio pelo próprio irmão, Roderick, no meio das pessoas que enchiam a rua, pôs a mão no peito do homem e fitou em cheio sua fisionomia desagradável.

Como vai a serpente hoje? — perguntou com fingida expressão de simpatia.

A serpente! — exclamou o homem que odiava o irmão. — O que quer dizer com isso?

A serpente! A serpente! Ela o está esganando? — teimava Roderick. — Pediu-lhe conselho hoje de manhã quando devia estar fazendo suas preces? Ela o pica quando pensa nos bens, na saúde ou na boa reputação de seu irmão? Dá saltos de alegria quando você se lembra de que o único filho dele vai por mau caminho? Por acaso sentiu, quando ela se alegrou ou aferrou-lhe as presas, como o veneno foi se espalhando pelo corpo e pela alma, amargando e enchendo tudo de fel? É assim que as serpentes agem. Conheço-as bem, e à minha custa!

Onde está a polícia?— berrou o objeto da perseguição de Roderick, ao mesmo tempo que, instintivamente, levou as mãos ao peito.— Por que deixam esse louco à solta?

Ah, ah! — gargalhou Roderick, largando o homem. — Então é verdade que a serpente o picou?

Comumente, o desgraçado rapaz achava prazer em vexar as pessoas com sátiras mais leves, embora caracterizadas pela virulência dos ofídios. Um dia, encontrou um estadista ambicioso e, gravemente, perguntou-lhe pela saúde de sua boa constrictor1; por que a do cavalheiro, afirmou Roderick, devia forçosamente ser dessa espécie, pois tinha apetite tão grande que era capaz de devorar o país inteiro e mais a sua Constituição.

De outra feita, fez parar um velhote avarento, muito rico, mas que vagueava pela cidade metido numas roupas esfarrapadas, capote azul remendado, chapéu marrom desbotado e sapatos cambaios, que, laboriosamente, juntava as menores moedas de cobre que lhe caíam nas mãos e andava sempre à cata de pregos enferrujados. Fingindo olhar atentamente para o estômago do respeitável personagem, Roderick assegurou-lhe que sua serpente tinha a cabeça de cobre e que fora gerada pela enorme quantidade desse vil metal com que, diariamente, sujava os dedos. De outra, investiu para um homem de rosto rubicundo e disse-lhe que poucas serpentes eram mais venenosas do que aquelas que se engendravam nos tonéis de uma destilaria.

O seguinte a ser honrado com a atenção de Roderick foi um distinto clérigo que, no momento, estava empenhado numa controvérsia teológica onde o ódio se sobrepunha à inspiração divina.

O senhor engoliu uma serpente ao beber o vinho sacramental — disse ele.

Miserável! Profano! — exclamou o sacerdote; mas, involuntariamente, levou a mão ao peito.

Encontrou-se com uma pessoa de sensibilidade doentia que, devido a alguma desilusão anterior, afastara-se do mundo e nada queria com seus semelhantes, alimentando, obstinada ou apaixonadamente, a mágoa do passado. Segundo Roderick, o coração desse homem havia se transformado numa cobra que acabaria por levá-lo, e a si mesma, à morte.

Observando um casal cujas rusgas domésticas eram sabidas por todos, deu os pêsames a ambos por abrigarem em seus corações uma víbora que lhes era comum. A um escritor invejoso, que depreciava sistematicamente os trabalhos superiores aos seus, disse-lhe que tinha o réptil mais asqueroso e sútil de todos, mas que, felizmente, não possuía presas.

Um homem de vida desregrada perguntou a Roderick se via alguma serpente em seu peito.

Sim, e da mesma espécie das que, outrora, tinham atormentado Don Rodrigo, o Godo2 — respondeu-lhe Elliston.

Um belo dia, pegou uma linda jovem pela mão e, olhando-a tristemente nos olhos, avisou-a da que estava alimentando no delicado peito a pior espécie de serpente. Poucos meses depois, a moça morreu de paixão e vergonha, ficando provada, desse modo, a exatidão do sombrio prognóstico do pretenso louco.

Duas senhoras, rivais em modas, que viviam se atormentando mutuamente com mil alfinetadas de despeito, souberam que tinham no peito um ninho de cobras que, apesar de pequenas, faziam tanto mal quanto uma grande.

Nada, porém, parecia satisfazer mais Roderick do que pegar uma pessoa ciumenta; dizia ele que o crime era um réptil verde, de corpo comprido e gelado, cujas presas agudas só eram superadas pelas de um outro ofídio.

E que serpente é essa? — perguntou-lhe um dos ouvintes. Esse homem tinha a fisionomia fechada e olhos evasivos; havia mais de doze anos não olhava ninguém de frente. Em toda sua pessoa, notava-se um ar ambíguo — que se refletia em sua reputação —, sem que ninguém pudesse explicar exatamente o que era, dando, entretanto, motivo para que, na cidade, por entre os comentários dos homens, e das mulheres, corressem os boatos mais ferinos. Até pouco antes, cruzara os mares: era aquele mesmo comandante de navio que Georgs Herkimer tinha encontrado, em circunstâncias tão singulares, no Arquipélago Grego.

Qual é, dentre as serpentes que o peito humano abriga, a de presas mais agudas? — insistiu o homem; mas relutou e empalideceu, como se sentisse necessidade de fazer a pergunta.

Precisa mesmo perguntar? — replicou Roderick, com um olhar de quem sabia. — Perscrute seu coração. Ouça! Minha serpente está agitada: reconhece ter deparado com outra mais venenosa!

E, então, ouviu-se um silvo, e os presentes afirmaram depois que parecia vir do peito de Roderick Elliston. Disseram, também, que outro silvo, em resposta, partiu das entranhas do comandante, como se realmente a víbora, ali escondida, acordasse ante o apelo da irmã. O silvo, se algum houve, de fato, poderia ter sido resultado do malicioso ventriloquismo de Roderick.

Assim, fazendo de sua serpente — se é que existia mesmo — o símbolo dos erros capitais do homem, ou dos pecados, ou das consciências culpadas, ou fincando suas presas, sem remorsos, nos lugares mais ulcerados, podemos facilmente imaginar por que Roderick tornou-se uma espécie de praga da cidade. Ninguém podia iludi-lo, ninguém podia suportá-lo. Agarrava-se às verdades mais tenebrosas que descobria, obrigando o adversário a fazer o mesmo. Estranho espetáculo da vida humana, onde é instintivo o esforço, individual ou coletivo, para esconder as realidades tristes, deixando-as tranquilas sob o monte de assuntos superficiais, que constitui a parte mais importante das relações entre os homens! Não podiam tolerar que Roderick Elliston violasse o ajuste tácito, mediante o qual o mundo faz o melhor que pode para assegurar sua tranquilidade, sem abandonar o mal. As vítimas dessas observações maldosas tinham muitos simpatizantes, pois, segundo a teoria de Roderick, todos os mortais agasalhavam no peito um ninho de serpentes pequenas, ou um monstro, em pleno desenvolvimento, que tinha devorado as menores. O caso é que a cidade não suportou o novo apóstolo. Seus conterrâneos pediram, principalmente as pessoas mais importantes, que Roderick não mais tivesse permissão de desrespeitar as aprovadas leis do decoro, expondo ao olhar de todos a serpente que tinha no peito e obrigando a vir à luz as de pessoas respeitáveis.

Entrando em acordo, os parentes interferiram e internaram-no num manicômio particular. Quando a notícia se espalhou, observou-se que muitas foram as pessoas que andavam pelas ruas com fisionomias mais tranquilas, não mais se preocupando em cobrir o peito com as mãos.

Seu confinamento contribuiu, e não pouco, para a paz da cidade, mas foi desfavorável para Roderick. Na solidão, ficou mais melancólico, mais taciturno. Passava dias inteiros — sua única ocupação, na verdade — em íntima comunhão com a serpente. O misterioso monstro tomava parte na conversa, manifestando-se apenas por silvos ininteligíveis para os ouvintes. O singular foi que o doente se encheu de afeto pelo ser que o atormentava. Era uma afeição misturada de intenso asco e horror. Mas, embora discordantes, essas emoções não eram incompatíveis. Pelo contrário, cada qual dava forças e exacerbava a oponente. Amor terrível, terrível antipatia! Juntos, concentravam-se num ser que, ou tinha entrado sorrateiramente em seu coração, ou ali mesmo se engendrara. Alimentando-se de seu alimento, vivendo de sua vida, era-lhe tão familiar como o próprio coração, sem deixar de ser a coisa que mais odiava no mundo! Verdadeiro tipo de natureza mórbida a sua!

Algumas vezes, nos momentos de raiva e de amargo ódio contra a serpente e contra si mesmo, Roderick resolvia matá-la, ainda que à custa da própria vida. Certa vez, tentou morrer de fome; mas, quando o infeliz estava a ponto de alacançar seu objetivo, o monstro, alimentando-se de seu coração, prosperava e crescia, como se a dieta fosse a medida mais doce e acertada para ele. Então, secretamente, Roderick tomou uma dose de veneno forte: morreria ou mataria o demônio que o torturava, ou pereceriam ambos. Outro engano; pois se o coração venenoso de Roderick ainda não o tinha destruído, se a serpente, que o vinha corroendo, nada tinha conseguido, o que havia a temer do arsênico ou do sublimado corrosivo? Na verdade, a praga venenosa parecia operar como antídoto contra todos os outros venenos. Os médicos tentaram sufocar o demônio com fumo de tabaco, mas ele aspirou a fumaça como se fosse sua atmosfera natural. Em seguida, deram ópio ao paciente e encheram-no de licores intoxicantes, esperando que, reduzida ao estupor, a serpente talvez fosse expelida. Conseguiram insensibilizar Roderick; mas, quando lhe colocaram as mãos sobre o peito, sentiram, horrorizados, que o monstro se movia, se enroscava e andava de um lado para outro, dentro de sua estreita prisão; evidentemente, excitado pelo ópio e pelo álcool, entregava-se a desusadas façanhas. Daí por diante, abandonaram todas as experiências de cura ou de paliativo. O condenado submeteu-se ao destino; voltou à antiga afeição, cheia de asco pelo demônio que lhe habitava o peito, e passou dias inteiros, miseravelmente, diante de um espelho, com a boca aberta, observando, esperando ver, de relance que fosse, a cabeça triangular aparecer no fundo da garganta. Supõe-se que conseguiu seu intento, pois os enfermeiros, um belo dia, ouviram um grito de pavor e foram encontrar Roredick desmaiado no chão.

Ficou por mais algum tempo no sanatório. Depois de minucioso exame, os médicos e diretores resolveram que a doença mental de Roderick não era, propriamente, loucura; não se responsabilizariam pelos resultados de um internamento mais prolongado, pois a influência do ambiente provara ser desfavorável e capaz de produzir o mal que se pretendia remediar. Sem dúvida, suas excentricidades eram grandes, tinha violado muitos dos costumes e preconceitos da sociedade; mas, sem bases mais seguras, o mundo não devia tratá-lo como louco. Ante tal decisão de autoridades tão competentes, Roderick foi solto e voltou, exatamente na véspera do seu encontro com George Herkimer, à sua cidade natal.

De posse de, tais detalhes, o escultor, acompanhado por uma pessoa triste e trêmula, foi à casa de Elliston. O edifício grande e sombrio, com pilastras e varandas, separado de uma das principais ruas da cidade por três elevações, oferecia três lances de degraus de pedra. Enormes e velhos olmos quase escondiam a frente da casa. Essa espaçosa e outrora magnífica residência fora construída por um gentil-homem no começo do século anterior, época em que, sendo as terras de valor comparativamente pequeno, o jardim e terrenos adjacentes formavam um verdadeiro domínio. Mesmo depois de terem vendido grande parte da herança ancestral, sobrara ainda, por trás da mansão, um recinto umbroso onde um estudante, um sonhador, ou um homem de coração magoado podia ficar o dia inteiro, deitado na relva, cercado pela ramaria farfalhante, esquecido de que uma cidade se tinha erguido a seu redor.

O escultor e a outra pessoa ali penetraram, guiados por Cipião, o velho criado, cujo rosto enrugado ficou radiante de alegria e satisfação ao dar suas humildes boas-vindas a um dos visitantes.

Está no caramanchão — disse em voz baixa o escultor para a figura que se apoiava em seu braço. — Saberá como e quando deve aparecer.

Deus me ensinará — foi a resposta. — Que Ele me ampare também!

Roderick estava reclinado ao lado de uma fonte que corria pelo solo salpicado de sol, com o mesmo brilho alegre e a mesma música suave dos tempos em que aquelas mesmas árvores que a sombreavam agora, quase encostavam os ramos em seu seio. Como é estranha a vida de uma fonte! — brotando, renovando-se a toda hora, tem, no entanto, a mesma idade das rochas e ultrapassa, de muito, a de uma venerável floresta.

Você veio! Eu o esperava — disse Elliston, quando notou a presença do escultor.

Mostrava-se bem diferente do dia anterior — calmo, cortês e, como pensou Herkimer, um tanto desconfiado. Esse constrangimento era, talvez, o único traço que traía qualquer coisa de anormal. Tinha acabado de jogar um livro sobre a relva onde, meio aberto, mostrava as ilustrações que pareciam vivas: era um tratado sobre as várias espécies de serpentes. Perto dele, o massudo volume do Ductor Dubitantium, de Jeremy Taylor3, oferecia uma porção de casos de consciência, entre os quais os homens que têm consciência podem encontrar qualquer coisa aplicável a seus objetivos.

Como vê — observou Elliston, apontando pára o livro das serpentes, enquanto um sorriso lhe iluminava os lábios —, estou me esforçando para conhecer melhor o amigo que trago no peito; mas não encontrei nada que me satisfizesse nesse volume. Se não me engano, ele deve ser sui generis: não tem nenhuma relação com os outros répteis do mundo.

Qual a origem dessa desgraça? — perguntou o escultor.

Meu amigo Cipião tem uma história — respondeu Roderick — acerca de uma serpente que se escondia nesta fonte — por mais pura e inocente que pareça —, segundo contavam os primeiros que para cá vieram. Esse ser insinuante entrou, sorrateiramente, no coração de um de meus tetravós, onde ficou durante muitos anos, atormentando o pobre velho até que ele não mais o pôde suportar e morreu. Resumindo, é urna espécie de herança. Mas, para ser franco, não acredito nessa história da serpente ir passando de geração em geração. A serpente é minha só, e de mais ninguém.

Mas, qual sua origem? — insistiu Herkimer.

Oh! No coração dos homens existe veneno bastante para engendrar serpentes — disse Elliston, rindo cavamente. — Devia ter ouvido minhas homílias ao bom povo da cidade. Positivamente, eu me considero feliz por ter engendrado apenas uma. Mas, como você não tem nenhuma, não pode, por conseguinte, ter pena do resto dos mortais. Ela me esgana! Ela me engana!

Com essa exclamação, Roderick perdeu o autocontrole e lançou-se na relva, testemunhando sua agonia com singulares contorções de corpo, nas quais Herkimer julgou perceber certa semelhança com os coleios de uma víbora. Depois, ouviu-se o pavoroso silvo, que comumente interrompia a conversa do doente, intrometendo-se pelas palavras e sílabas sem interrompê-las, no entanto.

É terrível! — exclamou o escultor. — Imaginário ou não, é um terrível castigo. Diga-me, Roderick Elliston, há algum remédio para seu maldito réptil?

Sim, há. Mas um remédio quase impossível — murmurou Roderick, revolvendo-se com o rosto ainda colado na relva. — Se eu pudesse, por um instante sequer, esquecer-me de mim mesmo, a serpente talvez não vivesse mais dentro da mim. É esta minha doentia autocontemplação que a engendra e alimenta.

Esqueça-se, então, de si mesmo, meu marido — disse uma delicada voz por cima dele. — Esqueça-se de si mesmo, lembrando-se de outrem!

Rosina havia surgido do arvoredo e estava inclinada sobre ele, refletindo no rosto a agonia do esposo, mas, ainda assim, de tal modo inspirada pela esperança e pelo amor sem egoismo, que toda sua angústia parecia irreal. Ela tocou Roderick com a mão. Um tremor percorreu-lhe o corpo. Naquele momento, se é digno de crédito o que me disseram, o escultor viu qualquer coisa que, sinuosamente, se arrastava pela relva e ouviu o ruído de algo que estava mergulhando na fonte. Seja como for, o certo é que Roderick Elliston sentou-se; parecia outro homem, o espírito claro, livre, enfim, do demônio que tão miseravelmente o dominara na luta, cujo campo fora seu próprio coração.

Rosina! —exclamou ele, em tom despedaçado e apaixonado, mas sem nada dos brados selvagens que tanto tempo tinham dominado sua voz. — Perdão! Perdão!

Lágrimas de felicidade umedeceram-lhe o rosto.

O castigo foi severo — observou o escultor. — Até a implacável Justiça o perdoaria agora. Que não esperar, pois, do coração terno de uma mulher! Roderick Elliston! Símbolo inspirado pela sua natureza mórbida, ou serpente real, nem por isso é menos sólida a moral que tiramos de seu caso. Um egoísmo tremendo, manifestando-se na forma de ciúmes, é o demônio mais tenebroso que pode entrar num coração humano. Estará purificado o coração que abrigou o ciúme durante tanto tempo?

Oh, sim! — disse Rosina com um sorriso celestial. — A serpente era apenas uma pavorosa fantasia e o que simbolizava era tão terrível quanto ela. O pavor do passado não deverá lançar nenhuma sombra no nosso futuro. Sempre, e por toda a Eternidade, a serpente será como uma lenda!


Fonte: “A Cigarra”/RJ, edição de fevereiro de 1953.


Notas:


1Jiboia.

2Rei visigodo da Península Ibérica entre 710 e 711. Ascendeu violentamente ao poder.

3Jeremy Taylor (1613–1667), teólogo e escritor, foi um clérigo da Igreja da Inglaterra.


Comentários

  1. Amigo, este autor é muito bom ! E a tradução, ótima! Pena que não se sabe o nome do autor da tradução...mas tudo bem escrito!

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    1. Sim! Uma órima tradução. E como eram bons os escritores da Nova Inglaterra... Irving, Pöe, Hawthorne.. Todos eles excelentes!

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