AS ENDEMONINHADAS DO MÉXICO - Narrativa Clássica Varídica Sobrenatural - Henry Charles Lea

 


AS ENDEMONINHADAS DO MÉXICO

Henry Charles Lea

(1825 – 1909)

Tradução de Paulo Soriano



Na primavera de 1691, duas jovens de Querétaro deixaram-se seduzir. Uma delas, chamada Francisca Mexia, uma adolescente de quinze anos, perdeu o seu amante1 em agosto, devido a uma epidemia2 que se alastrava.

Como ele lhe tinha prometido casamento, a moça, desesperada, atirou-se ao rio. Foi resgatada inconsciente e, quando voltou a si, justificou aquele comportamento, afirmando que havia sido agarrada pelos cabelos, levantada no ar e mergulhada na água.

Era um caso claro de feitiçaria e demonismo. A preservação do seu segredo exigia que ela o guardasse, circunstância que, provavelmente, não seria difícil, dado o seu estado de exaltação nervosa.

Rapidamente, a jovem apresentou os sintomas comuns de possessão diabólica; os demônios, ao serem exorcizados, afirmaram que tinham sido enviados por feiticeiras, cujos nomes não foram revelados.

Mais ou menos na mesma ocasião, Juana de los Reyes — uma outra jovem —, descobriu que a sua gravidez não podia ser ocultada por muito mais tempo.

Provavelmente, o exemplo de Mexia sugeriu-lhe os mesmos meios para evitar suspeitas e ela, prontamente, encetou uma série de semelhantes atuações. Eram estas de uma modalidade bem conhecida dos demonologistas — rigidez cataléptica, contorções, gritos, diálogos selvagens e blasfemos. Em tudo, as alterações alternavam-se com períodos de descanso.

Aquelas possessas eram arranhadas e mordidas por unhas e dentes invisíveis; ejetavam frequentemente todo o tipo de substâncias pela boca e pelos ouvidos — pedras, lama, lã, alfinetes, papel, sapos, cobras e aranhas.

Uma testemunha declarou, solenemente, que, enquanto observava uma das possessas, viu os olhos da paciente atentamente fixos numa enorme aranha na parede oposta; a endemoninhada atravessou a sala para examiná-la e, à medida que assim a fitava, a aranha gradualmente diminuía de tamanho e desaparecia sem sair do lugar.

Embora os demônios guardassem silêncio quanto aos nomes das feiticeiras que os enviavam, as adolescentes tinham visões frequentemente habitadas por mulheres. Quem lhes aparecia, com constância, era uma mestiça chamada Josepha Ramos, vulgarmente chamada “Chuparatones” — ou seja, Chupa-Ratos —, que trabalhava numa botica.

As jovens não a acusaram de ser a causa de seus sofrimentos, mas o simples fato de a terem visto fora o suficiente. Foi, assim, presa pelo magistrado secular e reivindicada pela Inquisição, que a confinou à sua prisão secreta no México. Uma casual alusão mostrou que ela ainda jazia presa em 1694, e o seu processo permanecia inconcluso.

Não tenho os documentos do seu caso e não sei o seu desfecho, mas a Inquisição espanhola não tinha o hábito de queimar bruxas; a sua decisão, quanto à chamada possessão diabólica, justificou meramente a detenção de Josepha, e ela provavelmente escapou à Justiça, depois de uma prisão prolongada, devido à habitual morosidade do processo inquisitorial. Três outras mulheres foram igualmente presas por suspeita de feitiçaria, mas não parecem ter sido julgadas.

O primeiro tratamento a que submeteram as possessas consistiu em chamar umas sábias índias, que faziam unções com ervas, produzindo nas pacientes constantes delírios e estupor.

Em seguida, recorreu-se à Igreja e frei Pablo Sarmiento, guardião do convento franciscano, veio com os seus frades e realizou uma intensa seção de exorcismo. Os padres apostólicos também participaram. Despertada a atenção pública, empregaram-se meios eficazes para aproveitar ao máximo a oportunidade de edificação do povo. Os serviços missionários eram realizados, à noite, nas igrejas, que se enchiam gente curiosa e excitada, ansiosa por testemunhar as atuações das endemoninhadas e as impressionantes solenidades de exorcismo. E, à medida que aquela atração aumentava, a missão na igreja de Santa Cruz era mantida durante todo o dia. Organizou-se uma grande procissão religiosa, em que as mulheres andavam descalças e os homens se flagelavam. Todos os esforços foram feitos para estimular a exaltação religiosa, com os seus naturais resultados: as pacientes pioravam constantemente e as artes do exorcista revelavam-se infrutíferas.

Certa feita, frei Pablo, por um momento, supôs que lograra êxito em expulsar duzentos demônios enviados por feiticeiras, mas estes foram imediatamente substituídos por duzentos novos demônios enviados por Deus. O que no início era apenas uma impostura, tornou-se, sem dúvida, pelo menos até certo ponto, patológico, à medida que os nervos das moças eram afetados pela prolongada excitação. O mais deplorável era que o carácter contagioso da afecção fora estimulado ao máximo, nas condições mais favoráveis. Em quase todas as cerimônias de exorcismo noturno, alguém, na multidão, sucumbia a gritos e convulsões, e era imediatamente submetido a uma seção de exorcismo, convertendo-se num induvidoso endemoninhado. O número de possessos cresceu, chegando a catorze — nem todos do sexo frágil, pois se sabe de um rapaz e de um homem idoso que foram submetidos, pelos frades, a um tratamento tão ativo de fumigações de enxofre que faleceram. Cada uma das vítimas declarou que não estava possuída, mas os frades simplesmente tomaram aquilo como um astuto ardil dos demônios para criar a descrença entre os fiéis.

Sem dúvida, a epidemia teria sido bem mais grave acaso todos os eclesiásticos a tivessem encorajado, mas, felizmente, não houve unanimidade. Os franciscanos e os apostólicos conseguiram monopolizar o caso e, no tradicional ciúme entre as diversas ordens religiosas, as que foram excluídas se tornaram necessariamente antagônicas.

Os dominicanos e os jesuítas esqueceram, até por um momento, a sua mortal inimizade e a eles juntaram-se os carmelitas — apesar da ferrenha batalha que, nessa altura, se travava entre eles e os jesuítas sobre a Ata Sanctorum e do padre Papenbroek3. Estes formaram causa comum ao denunciar todo o caso como fraudulento, e levaram consigo uma parte do clero secular e paroquial. Despertaram-se, de ambos os lados, as paixões; os púlpitos ressoaram com o clangor da disputa; o povo tomou partido por uma ou outra parte e, no calor da controvérsia, parecia inevitável a ocorrência de graves tumultos. Em novembro e dezembro, ambos os lados apelaram à Inquisição do México, pedindo a sua interposição a seu favor. A Inquisição, com a sua habitual morosidade, adiou a sua ação até que adviesse um acontecimento inesperado.

Frei Pablo Sarmiento testemunhou que, no dia 2 de janeiro de 1692, às 20 horas, visitou Juana de las Reyes e exorcizou-a; na ocasião, ela expeliu da boca alfinetes, lã e papel, e ele a deixou desfalecida.

Ao chegar ao seu convento, disseram-lhe que tinham mandado chamar um frade, porque Juana estava morrendo. Tal frade não se ausentou muito tempo e, ao regressar, informou secretamente a frei Pablo que Juana tinha acabado de dar à luz um menino.

A princípio, Frei Pablo ficou estupefato, mas muito consolou-se ao lembrar-se de que o Malleus Maleficarum prevê casos assim — que não eram raros — e esclarece como o demônio consegue produzir tais resultados em uma endemoninhada perfeitamente inocente.

Apressou-se em correr à cabeceira de Juana e, na presença do comissário da Inquisição e dos notários que convocou, interrogou o seu demônio, Masanbique, e recebeu as mais satisfatórias garantias — mais curiosas do que decentes —, confirmando a sua teoria.

O demônio, além disso, informou-o de que duas outras endemoninhadas — uma delas Francisca Mexia —, se encontravam na mesma situação e que dariam à luz em cerca de dois meses.

Mal o Frei Pablo regressara ao convento, deram-lhe a notícia de que Mexia estava prestes a ser confinada. Naturalmente instado por esta estranha coincidência, inicialmente recusou-se a visitá-la, mas, prevalecente a caridade, ele foi. O demônio da jovem, Fongo Bonito, confirmou o fato, descreveu as distintas manobras que empregara naquele caso e disse que o parto só ocorreria dentro de dois meses. Fora um alarme falso, motivado por intumescências abdominais histéricas, pois a Mexia escapou à exposição e nunca teve um filho.


*


Uma das primeiras pessoas a simpatizar com o movimento demoníaco foi uma jovem chamada Francisca de la Serna, de cerca de dezoito anos. No seu zelo simples, ela orou para que a vontade de Deus fosse-lhe feita, e que sofresse o que fosse de Seu agrado. Então, o próprio Lúcifer, com uma hoste de mil demônios, penetrou nela. Esta moça foi uma das pessoas contra as quais foram movidos processos; a Inquisição vigiava-a, e eu pude acompanhar o seu caso.

Em outubro de 1692, foi ordenado um relatório a seu respeito, pelo qual se sabe que estava ela na maior miséria corporal e mental — absolutamente sem um centavo, incapaz de se sustentar, e dependente da caridade de um ou dois vizinhos. Descrevem-na na permanência do mesmo estado em que se encontrava antes da interrupção dos exorcismos. Às vezes, ficava quieta e muda como um cadáver; outras vezes, ficava furiosa e blasfemava contra a Virgem e os santos, e falava loucamente; finalmente, voltava a si, chorando e implorando a misericórdia de Deus, e proferindo orações de terna devoção. Era evidentemente a vítima de ataques histéricos, por vezes epileptiformes, por vezes maníacos.

Passou-se um ano; em outubro de 1693, a Inquisição ordenou que ele fosse posta sob a direção espiritual do reitor do colégio dos Jesuítas, com poderes para fazer exorcismos e para informar se ela fingia, se estava mesmo possuída ou se sofria de uma doença natural.

Depois de um exame cuidadoso, o Padre Bernardo Rolandegui — perspicaz jesuíta — informou que, consoante a sua própria convicção, ela não estava nem nunca tinha estado possuída. A moça, às vezes, ficava subitamente muda, malgrado conservasse todos os sentidos. Isto, todavia, se devia ao fato de lhe terem dito que seria assim mesmo, por arte de alguns humores que causariam tal estado; ou por efeito de enganos e feitiçarias.

Concluiu o padre Bernado que não havia necessidade de exorcismo. A última referência de que se tem dela data de 1699, quando o comissário de Querétaro solicitou à Inquisição autorização para exorcizá-la.

O comissário a descreveu como completamente submetida ao poder do demônio. O seu mais recente ataque durara dez dias: estava muda, aleijada e sofria muito. A doença, evidentemente, progredia rapidamente, mas a Inquisição manteve-se firme e limitou-se a ordenar que ela fosse colocada sob a direção do reitor jesuíta Phelipe de la Mora, que tinha sucedido a Bernardo Rolandegui. Depois, durante dez anos, não mais se ouviu falar de Francisca. A última cena da tragédia consta de uma petição do reitor jesuíta, Juan Antonio Perez de Espinosa, em 1709, implorando que fosse ela liberada da acusação.


Fonte: "Chapters from the religious history of Spain connected with the Inquisition", Lea Brothers & Co., Filadélfia/Pensilvânia, EUA, 1890.


Notas:

1Salvador de Medina, de Guadalajara.

2Na verdade, epidemia de sarampo.

3Daniel van Papenbroeck (1628 – 1714), padre jesuíta flamengo, colaborou com Jean Bolland e Henschenius Godfrey na publicação da Acta Santorum, que empreendeu uma avaliação dos testemunhos concernentes à vida dos santos católicos, com o escopo de separar os fatos históricos das lendas.

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