TRANSFORMADOS EM SERPENTES - Narrativa Clássica Sobrenatural - Ovídio
TRANSFORMADOS EM SERPENTES
Ovídio
(43 a.C. – c. 17 d.C)
Cadmo não sabia que sua filha e seu terno neto haviam sido recebidos no número dos deuses marinhos. Perpassado pela dor causada pelos infortúnios de sua família, e pelos prodígios a que assistira, abandonou a cidade que construiu, como se ela, e não a sua sorte adversa, fosse a causa de tantas desgraças.
Depois de vagar por longo tempo, chegou, com sua mulher, que jamais saiu de seu lado, à Ilíria.
Certa feita, oprimidos ambos pelos infortúnios e pelo peso dos anos, quando conversavam sobre as calamidades da sua família e as dificuldades pelas quais passaram, Cadmo disse:
— Por ventura estaria consagrado a algum deus o dragão que, ao entrar na Grécia, eu matei com uma flecha, e cujos dentes, como sementes frescas, espalhei pela terra? Porque, se consagrado estivesse, e os deuses, em vingança, assim me puniram, eu lhes rogo que me convertam numa serpente.
Mal terminou esta súplica, o seu ventre se expandiu, e ele sentiu que duras escamas preto-esverdeadas cresceram em sua pele. Finalmente, ela caiu de peito na terra e, as suas pernas, unidas, formaram agora uma longa cauda.
Estendendo os braços — que ainda conservava — e chorando — com a voz ainda humana —, disse:
— Aproxima-te, como a mais desafortunada das esposas! Aaproxima-te e compadece-te de mim! E, enquanto existir algo da minha forma anterior, toca-me e recebe a mão que ainda está ilesa, antes que eu me convole totalmente num dragão!
Embora quisesse prosseguir, a sua língua fendeu-se e ele não mais conseguia, por mais que se esforçasse, articular novas palavas. Agora se exprimia, apenas, por meio de silvos, que era a única voz que lhe deixara a natureza.
— Querido Cadmo — exclamou Hermiona, ferindo o peito com as mãos —, abandona essa figura monstruosa! O que é isso, meu marido? O que houve com teus pés, teus ombros e teus braços? Que cor é essa em teu rosto? E em todo o teu corpo? Por que, ó Deuses Celestiais, não me transformais em serpente também?
Enquanto Hermiona assim falava, Cadmo lambia o rosto da esposa. E, reconhecendo ainda o seio amado, abraçou-a, e como antes, quis alcançar-lhe o pescoço.
Os companheiros, que estavam presentes, ficaram surpresos ao verem os dois subitamente transformados em serpentes: estas, depois de lisonjeá-los, rastejaram pelo chão, uma ao lado da outra, com os pescoços erguidos, até entrarem numa floresta próxima; mas não fogem dos homens nem os picam, lembrando-se com prazer do que foram um dia.
Versão em português de Paulo Soriano a partir da tradução espanhola de Francisco Crivel (1809).
Imagem: José Asensio (séc. XIX).
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