O ANEL DE NOIVADO - Conto de Terror - Sadi Pierozan

O ANEL DE NOIVADO

Sadi Pierozan


Convém de pronto deixar consignado o alerta de que não prossiga com a leitura deste depoimento todo aquele cuja suscetibilidade de espírito tiver um resquício a mais de propensão, por mínimo que seja, ao exacerbamento. Creio mesmo que me faltarão palavras — e não sei se as há — que alcancem expressar a exata dimensão do terror que a lembrança dos fatos que darei a conhecer nesta narrativa me traz. Ainda assim, aquelas que encontro no meu escasso vocabulário poderão causar desconforto, tanto mais quanto maior a sensibilidade que o leitor carrega à alma.

Durante muito tempo da minha vida, motivado por um medo ancestral por tudo o quanto diz respeito às coisas do além, guardei considerável distância dos cemitérios.

Tudo mudou no dia em que, premido pela necessidade de sobrevivência, não encontrando outra forma de ganhar a vida que coubesse na minha parca instrução, aceitei o emprego de zelador em um cemitério afastado da cidade.

Nada sucedeu de repente. Foi antes o somatório de fatores intercalados que tiveram no meu despejo o ponto culminante, a razão definitiva que me retirou qualquer possibilidade de rejeitar o posto.

Naquele dormitório funerário fixei residência, por imposição de um ofício cuja principal tarefa era a de assegurar aos seus moradores uma decomposição livre de surpresas. Outras havia, como recolher o entulho com que os vivos presenteiam os mortos, em especial, garrafas vazias e jornais.

Nos primeiros tempos, percorri os labirintos de túmulos levando nas mãos uma lanterna e na espinha um constante calafrio. A cada uma das tantas rondas destas longas e lúgubres madrugadas, todos os meus sentidos estavam a serviço de uma exacerbada imaginação, que pressentia na profusão de sons noturnos a iminência de um episódio macabro. O vento sibilante na copa de alguma árvore chegava-me aos ouvidos transformado em marcha fúnebre. O farfalhar de folhas parecia-me uma sinfonia de mortalhas. O piar de uma coruja tornava-se o grito por socorro de alguém arrastado para o silêncio eterno de alguma cova. Eu levava o cheiro de flores envelhecidas entranhado nas narinas. Evitava olhar diretamente para os rostos nas lápides por receio de dar aos meus terrores uma feição definitiva.

No entanto, à medida que a rotina se consolidava sem que algo anormal ocorresse, os espíritos que espreitavam nas sombras projetadas pela lua sobre os túmulos evaporavam sob o foco da minha lanterna.

Quanto menos opressivo se tornava o ambiente, mais eu expandia a coragem com que transitava pelos corredores daquela cidadela de mortos. Daí a fazer-me amigo da escuridão demorou pouco mais do tanto que dura um piscar de olhos. Decorrido algum tempo, eu saudava os moradores pelo nome à minha passagem, gritando-lhes meu boa noite para dentro das sepulturas. E cheguei mesmo a tal destemor que não me teria causado perplexidade se algum deles tivesse respondido ao meu cumprimento.

Toda imaginação assim prodigiosa, uma vez liberta, é certo que sairá a ocupar-se de outros assuntos. E a minha não encontrava freios!

No catálogo de misérias de que padeço, a miséria moral, devo confessar sem orgulho, é de longe a que trago mais irremediavelmente consolidada.

Eis aí a razão única de toda a desgraça sucedida.

Tudo isso que me provoca calafrios no só lembrar teve início com uma ideia que me chegou mais por obra da observação do que pelo engenho da mente e que encontrou fermento na solidão das madrugadas.

Tantos corpos diuturnamente carregados à sepultura levando consigo tantos pertences, submetidos à ação impiedosa do tempo na sem serventia das covas! Com que propósito?

A contrastar com aquele desperdício, eu arrastava de um lado a outro a minha escassez, sem perspectiva alguma de prosperar. Ao contrário, a tal ponto haviam recuado minhas finanças que há algum tempo vivia eu sob a luz de velas, devido ao corte da energia elétrica por falta de pagamento.

Por que não despojar os mortos daqueles objetos que a ferrugem e o tempo haveriam de consumir?

O verme da cobiça demorou poucos dias para roer minha pequena reserva moral.

Enfim, me decidi.

Ao longo do dia, com a cara ensaiada no luto, circulei despercebido entre as capelas funerárias, misturando-me à profusão de rostos tomados pela consternação da derradeira despedida.

Prospectava!

Ao final de um dia intenso de velórios, eu trazia definida a sepultura que haveria de visitar mais tarde.

Aguardei a escuridão ir no adentro e saí na aragem da madrugada, corpo em arrepio, faces afogueadas por uma atípica torrente de sangue, levando às costas um saco com ferramentas.

A lua havia se recolhido acabrunhada, negando-se a testemunhar a inauguração daquele meu ofício. Minha reserva moral estava àquela altura tal como o bagaço que, por mais que se esprema, não entrega uma última gota que seja. A cada pá de terra revolvida mais se abria para mim um buraco sem volta. Mas nada conseguiria mudar o curso de um pensamento que se perdia a calcular o lucro com aquele butim fúnebre: um relógio de bolso e duas abotoaduras salpicadas de prata.




Rompida a fronteira da primeira vez, outras vêm em sequência com a naturalidade com que o verdureiro vai à horta colher verduras. De sapatos a paletós, de dentes de ouro às ferragens que guarneciam os caixões, nada escapava ao meu garimpo macabro.

À medida que o negócio prosperava sem que alma viva ou morta lhe colocasse freio, fui expandindo o número de visitas. Negligenciei em definitivo as rondas, cujo caráter era então meramente protocolar, e usava esse tempo para a rapinagem.

E, no entanto …

Perdoem-me a interrupção, necessária para que eu me reestabeleça.

Prossigo.

No entanto, dizia eu, com que suprema felicidade trocaria anos de minha vida pela possibilidade de apagar da lembrança tudo quanto diz respeito ao episódio daquela madrugada fatídica que deu início à minha ruína!

Naquele dia, ao adentrar em uma das capelas mortuárias onde estava em curso um velório, meu olhar de cobiça foi atraído para a mão direita do extinto, em que um facho de luz brilhava em ricochete. Aproximei-me, e minhas suspeitas se confirmaram: um anel de noivado, cujo brilho indicava não ser outro o material senão ouro maciço.

Salivei por horas no aguardo do momento de tomar posse daquele objeto que pertencia a alguém cuja história de vida e de morte a mim pouco importava. Menos ainda depois que angariou minha antipatia ao oferecer-me resistência. Deveria ter sido fácil retirar-lhe o anel do dedo, mas trazia-o tão justo que, apesar de todo meu esforço, não consegui arrancá-lo pela via normal. Mas aquele contratempo não me encontrou desprevenido. De posse de uma faca, decepei-lhe o dedo sem titubeios nem escrúpulos.

Não passei adiante de imediato o anel, na espera do melhor momento. Com aquela obra de arte em mãos, perdia-me na contemplação de seus detalhes, da sua textura, do seu fino acabamento, que não trazia aresta alguma, e rendia homenagens ao artista que a criou. Nele, duas letras incrustadas: “A L”. Tantas combinações de nomes cabiam nelas, mas eu não fui adiante da primeira que minha imaginação sugeriu: Ana Luiza.

Que estranha alquimia causou-me ao espírito a descoberta daquele nome de mulher. A consciência da solidão em que vivia até então! A extravagância de sonhar com a chegada do amor! E nos recônditos herméticos de minha alma desejei ardentemente ter uma noiva.

Naquele exato momento as velas de casa se apagaram, e minha superstição emperrou na ideia fixa de que estava ali um recado: um ser assim tão vil está condenado à solitude.

O que eu não poderia jamais supor em minhas divagações é que nos subterrâneos onde são urdidos os destinos das gentes, as engrenagens já se haviam movimentado em resposta aos meus anseios.

***

Foi uma madrugada chuvosa aquela! Jamais esquecerei! O céu desmanchava-se em aguaceiro. O vento estrilava nas frinchas das janelas. Relâmpagos entrecortavam o breu em intervalos irregulares, colocando em evidência aquele amontoado de sepulturas encimadas por cruzes de múltiplos formatos e tamanhos.

Eu contabilizava o prejuízo com a impossibilidade de passar em revista os enterros do dia, quando ouvi, no intervalo entre os trovões, o que pareciam batidas à porta. Apurei o ouvido, descrente na possibilidade de que alguém tivesse se aventurado em um cemitério com um tempo daqueles. Depois de uma breve pausa, novas pancadas. Tive um momento ainda de indecisão, quando a claridade de um relâmpago revelou, na moldura da janela, um vulto que espiava para dentro.

Àquela altura, tanto tempo eu transitava entre os mortos que me sentia autorizado a descrer na existência de fantasmas. Ainda assim, sob o impacto do imprevisto, dei um salto para trás e acabei estatelado ao chão.

Olhei para a janela em busca da certeza de não ter me enganado, e o vulto não apenas permanecia ali, como acenava para mim. Tratava-se de uma mulher, rosto encoberto por um véu que, eu soube depois, era aquele de seu noivado.

Abri a porta e permiti que entrasse. Trazia as roupas encharcadas. Alcancei-lhe uma toalha e reavivei as chamas no fogão a lenha. Nesse entrementes foi fazendo-me conhecer as razões de estar ali. Chamava-se Lívia. Havia sido vítima de um acidente que a arremessou para fora do veículo em que estava, conduzido pelo noivo. Desconhecia-lhe o paradeiro. Acreditava que tivesse sido levado para algum hospital. Não sabia quanto tempo permanecera desacordada em meio à vegetação. Ao recobrar os sentidos, saíra em busca de socorro e viera parar ali.

Prometi que encontraria seu noivo e o traria até ela. Com isso, consentiu em aguardar em minha residência o cumprimento da promessa, enquanto se restabelecia.

Nos dias que se seguiram, dediquei a ela toda a minha atenção. Procurei por notícias de seu noivo nas redondezas e não consegui informação alguma. Mas eu não lhe deixava morrer as esperanças. Eu a via tão frágil. Seu passado, sua origem e sua história eram para mim um acúmulo de reticências. Eu não me importava. Ao contrário, tanto mistério em torno de sua figura atiçou-me. Tudo o quanto nos é proibido mais nos aguça o desejo de profanação! No entanto, seria demasiado creditar meu interesse nela apenas à aura de mistério. Adivinhava-lhe a beleza sob o véu. Eu ainda não sabia, mas meu coração experimentava os primeiros rumores de um amor que me levaria à perdição. Os ardores de uma febre que viria a me consumir as forças. Que mais se agigantava quanto mais ela recusava minhas pequenas investidas, amparada no anel em sua mão direita, que eu adivinhava na saliência sob a luva. Desejei trocar minha posição com a do noivo, ser eu o destinatário daquele amor.

Trocar de lugar com o noivo! Que desatino!

Escapava-me até então uma obviedade que já algumas linhas atrás deve ter saltado aos olhos dos que acompanham este meu relato.

A história que lhes conto menciona dois noivos. Ele morto e enterrado. Ela, vítima de um acidente, procura pelo noivo desaparecido, também acidentado.

Hoje, à luz dos acontecimentos supervenientes, não alcanço compreender as razões de ter-me passado despercebida a evidente relação entre ambos. Talvez por conta das quase duas semanas transcorridas entre o sepultamento do noivo e a madrugada em que ela veio bater à minha porta. Creio mesmo que meu coração tenha se esquivado a admitir o óbvio, na tentativa de mantê-la distante deste lado obscuro do meu mundo, dominado pelas indignas falsetas do meu caráter. Se algo intuí à época, a informação ficou restrita aos meandros do meu inconsciente, tal como um rio subterrâneo cujas águas chegam ao mar sem nunca terem subido à superfície.

Em certo momento, tamanho desvario ela me despertava, cogitei tomá-la para mim como se fosse algum daqueles objetos que eu subtraía aos mortos. Noutros, me via assombrado com a falta de perspectiva para o depois. A certeza de que ela iria embora e não mais retornaria. E isso se tornara algo com o qual eu não poderia conviver. Ou talvez — a ideia me deixava terrificado — depois de consumar um ato tresloucado como aquele, eu cometesse outro ainda mais ignominioso: matá-la no calor do momento, para manter em segredo a desonra à que eu a teria submetido.

O amor, enfim, se impôs, e decidi que haveria de alcançar meus propósitos sem atalhos, usando os caminhos não retilíneos que conduziam ao seu coração. Meu coração enchia-se de esperança e, em febris devaneios, eu idealizava o momento de nossa conjugação.

Ela reacendeu em mim o pouco da reserva moral de antes, e eu, tomado pela vergonha de meus maus atos, senti que precisava me colocar à sua altura. Assim, abandonei em definitivo os saques às sepulturas e retomei as antigas rondas.

Em uma dessas madrugadas, ela quis me acompanhar. Seu pedido encheu minha alma de esperança. Seguimos lado a lado, no rastro de luz da lanterna que ia à frente abrindo os caminhos. Em dado momento, percebi a ausência dela a meu lado. Corri a lanterna pelo entorno e a avistei, cabeça debruçada sobre uma lápide, chorando copiosamente. Quis confortá-la, fazer cessar aquele sofrimento. Mas eu, que ansiava por um beijo furtivo, sequer em sua mão tinha a liberdade de tocar. Ofereci-lhe o ombro, que ela recusou.

Quando pôde, enfim, conter as lágrimas, disse-me que ali, naquele túmulo, cessava a procura por seu noivo. Aproximara-se atraída pela semelhança da fotografia na lápide e, ao ver-lhe o nome, toda a triste realidade se descortinou à sua frente.

Deslizei a lanterna sobre a sepultura que a amparava e segurei um grito que já ia me escapando, ao identificá-la como sendo aquela de onde eu havia surrupiado o anel de noivado. Finalmente, fez-se claro para mim o que sempre esteve tão evidente. A ela, Livia – em verdade Ana Lívia – e a ninguém mais se referiam as iniciais incrustadas no anel.

Acreditei que depois daquela descoberta ela iria embora, e que eu nunca mais a veria. Enganava-me. Não sei por quais motivos, talvez para estar próxima ao noivo enquanto processava o luto, ela foi se deixando ficar. Substituiu o véu de noiva por um escuro, de viúva, sob o qual eu lhe intuía as feições taciturnas.

Ela o visitava em seu jazigo todas as noites. Creio que foi ali, aos pés daquele túmulo, que uma incipiente metamorfose se operou no seu espírito. Tinha para mim que em frente àquela sepultura — e melhor conselheira não há — ela havia refletido sobre a fugacidade da vida. Pareceu-me mesmo que se tornava permeável às minhas investidas. E, de fato, um dia finalmente consentiu em ser minha prometida.

Com que suprema felicidade eu recebi aquela notícia. Soubesse eu a que desfecho chegaria! Convém, no entanto, que eu não omita os pormenores a pretexto de abreviar o relato. Fez-me ela uma única exigência em contrapartida ao seu consentimento: permitir-lhe o uso do véu escuro até o dia em que, voluntariamente, desistisse dele. Pareceu-me pouca extravagância para o tanto de amor que eu lhe devotava. À luz de velas, com o anel que ela trazia sob a luva e aquele que fora de seu noivo selamos o compromisso de união até o dia em que a morte viesse nos separar. E fiz-lhe ver o quanto o destino conspirava a nosso favor, pois meu anel já trazia o nome dela. Arrependi-me de imediato por esta observação ao ver o abatimento que lhe causou.

Nas rondas das madrugadas não pude deixar de notar que, sob a claridade da lua, nossos dois corpos produziam uma única sombra. Isso era para mim a expressão mais genuína da comunhão de nossos espíritos, avalizada pelo próprio Universo. As peculiaridades que lhe fui conhecendo à medida em que crescia nossa intimidade não me incomodavam, tanto amor eu lhe dedicava. Seu corpo trazia a frialdade das madrugadas de inverno. O pouco calor que sentia no seu corpo era aquele que o meu próprio irradiava. Não se desfazia do véu em momento algum e trazia as mãos constantemente escondidas sob as luvas. Acompanhei-lhe o crescimento de um gosto peculiar por flores, especialmente os cravos, que subtraía diariamente dos túmulos.

Houve um momento, não sei quando teve início, em que o ar de nossa residência começou a ficar um tanto quanto carregado. Creio mesmo que nos primeiros momentos o ranço tenha passado despercebido, sufocado pelo perfume das flores.

Com o tempo, tornou-se impossível ignorar a existência daquela fedentina, porque já se sobressaía ao aroma das flores, que aumentavam em quantidade quanto mais denso se tornava o mau odor. Passei a virar e a revirar a casa em busca da origem daquela carniça — sim, àquela altura eu não tinha dúvida de que a pestilência provinha de algum animal em decomposição. E mal terminava a inspeção da casa inteira sem êxito, iniciava nova busca na certeza de que algum ponto me havia escapado. Descobrir sua origem passou a ser minha obsessão, que crescia na mesma proporção da ardência de minhas narinas. Carreguei para fora os móveis e destruí aqueles que não consegui movimentar. Transformei o assoalho de casa em um amontoado de buracos. Desmanchei o telhado sem nada encontrar, o que não foi de todo inútil, pois a aragem da noite substituiu parte da fetidez. Toda aquela obsessão afetava o espírito de minha noiva que, não suportando presenciar tamanha loucura, aguardava do lado de fora pelo tempo em que eu ali dentro colocava tudo abaixo. Dominado pelo sentimento de impotência com o resultado inexitoso de minhas buscas, decidi atear fogo à casa, pois parecia-me não haver outra forma de livrar-nos daquela pestilência. Com essa ideia em mente, fui ao paiol em busca de algum combustível inflamável. Nada encontrei senão a pilha de jornais velhos acumulados em minhas rondas. Alguns, por estarem úmidos, não serviam a meus propósitos. Preparava-me para separar uma pilha com os secos, quando o título de uma reportagem na primeira página de um deles chamou minha atenção.

Acidente com casal de noivos completa um mês. Corpo da noiva continua desaparecido”, dizia.

Ao lado, duas fotografias davam rostos às vítimas e uma outra demonstrava o estado em que ficara o veículo após o acidente.

Corri os olhos pela reportagem, afoito por conhecer os detalhes e descobri que a polícia dava como provável que o corpo da noiva tivesse sido levado para ser vandalizado em algum ritual satânico.

Pelo estado de completa destruição do veículo, associado ao desaparecimento da noiva, não me causou surpresa terem descartado a possibilidade de que estivesse viva.

Fui até minha noiva com a intenção de mostrar-lhe a reportagem. E pela primeira vez — hoje custo a crer que tenha demorado tanto —, dei-me conta de que aquele odor se tornava mais insuportável quanto mais eu me aproximava dela.

Cogitei se ela estaria escondendo algo sob o vestido, quiçá algum membro afetado pelo acidente em avançada gangrena. Eu a amava o suficiente para perdoar-lhe qualquer segredo que me houvesse escondido.

Não, todavia, aquele que se revelou por inteiro a estes olhos que a terra um dia haverá de comer.

Com a respiração presa, aproximei-me e perguntei-lhe de imediato quais segredos ocultava de mim. Ela pareceu petrificar-se!

Eu olhava fixamente em seus olhos, parcialmente encobertos pelo véu, preparado para identificar se haveria verdade naquilo que fosse me contar. Foi então que reparei a movimentação atípica de seu olho esquerdo. Não eram movimentos que iam de um lado a outro ou de cima para baixo, mas, sim, de dentro para fora.

E então, estarrecido, vi cair ao chão bruscamente seu globo ocular.

Tão logo me recuperei do impacto, arranquei-lhe o véu, colocando em evidência todos os funéreos segredos que ela me escondia. Tudo o quanto eu não percebia, entorpecido pelo amor.

Um grito tenebroso escapou-me em desenfreio da garganta. Nunca antes havia experimentado tamanho pavor. Meu sangue se enregela só de lembrar.

Sua face era hedionda. Vermes rastejavam na cavidade onde antes estivera seu olho. Tinha a boca parcialmente carcomida e o pouco que lhe restava dos lábios estava retorcido, em vias de desprender-se. A pele trazia uma viscosidade grudenta, sulfurosa. Parte dela havia aderido ao véu e soltara-se quando eu o arranquei.

Não encontrarei jamais palavras que possam transmitir o asco que me causou a visão daquelas faces deterioradas.

Regurgitei, na esperança de expelir da minha mente até o último resquício de lembrança das vezes em que eu havia unido meus lábios aos seus.

Eu a teria estrangulado com as mãos não fosse a profunda repugnância que me causava a perspectiva de tocar naquela pele em franca decomposição. Tivesse um machado em mãos, eu o teria cravado na parte mais funda daquele crânio. Creio que, em verdade, não teria conseguido fazer nada disso, porque me encontrava inteiramente paralisado pelo mais agudo terror.

De súbito, ela começou a chorar, um choro sem lágrimas, com o único olho que lhe restava. Disse-me — e seu hálito pestilento revolveu-me o estômago — que seria inútil matá-la, pois estava morta. Afirmou estar presa a mim desde a madrugada em que eu me apossara do anel e que nosso compromisso perduraria por todo o tempo em que aquele objeto permanecesse comigo.

Tentei desesperadamente arrancar o anel que selara nosso macabro consórcio para jogá-lo o mais longe possível. Não consegui! Eu, que não tivera dificuldade alguma em colocá-lo, agora trazia-o colado ao dedo. Após inúmeras tentativas frustradas desisti, convencido da impossibilidade de arrancá-lo pelas vias normais. Não havia ao meu alcance ferramenta alguma que pudesse dar pronta resposta ao terror que me dominava.

Então avistei sobre a mesa a mesma faca que eu havia usado para me apropriar do anel. Não titubeei.

Minha mão esquerda não era a dominante. Alguns dos meus golpes não se prestaram senão a mastigar o osso do meu dedo. Entre urros de dor e golpes de faca, consegui aos poucos amputar o anelar da minha mão direita.

E então desmaiei.

Não sei dizer o que se passou nesse ínterim nem o tempo em que permaneci desacordado. Quando recobrei os sentidos ela tinha se ido em definitivo, levando consigo o anel.

Deixou sobre a mesa meu dedo amputado, àquela altura tomado pelas formigas.


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