MACABRO ANIVERSÁRIO - Conto Clássico de Horror - A. Dufau
MACABRO ANIVERSÁRIO
A. Dufau
(Início do séc. XX)
Tradução de autor desconhecido do séc. XX
Na noite do dia 27 de dezembro, no seu suntuoso palacete na avenida des Ternes, em Paris, M. Eugène Mirbeau (apesar de ainda estar na casa dos quarenta, já parecia um velho, com seus cabelos grisalhos e fisionomia abatida) sente pouco a pouco o medo tomar conta dele. O vento soprava com gemidos lúgubres.
Triste e desolada noite de inverno num bairro isolado! Mas o M. Mirbeau, não via nada que o rodeava. Seu pensamento estava bem longe dali e, tendo recomeçado sua marcha enervante de um lado para o outro da sala, estremeceu somente quando, rompendo o silêncio absoluto, pesado de angustias e de ameaças, o relógio colocado em cima do fogão bateu oito pancadas da hora.
Sentando-se, M. Mirbeau agarrou a cabeça com as duas mãos, pensando com pavor que, uma hora mais tarde, completaria, hora por hora, um ano que seu tio Guillois — aquele que lhe tinha deixado toda sua fortuna e tinha feito do pobretão o milionário que ele era — tinha morrido assassinado por ele. Meses e meses, representando com um sangue-frio e uma dissimulação extraordinária a comedia abominável do sobrinho afetuoso, tinha, aproveitando dos seus antigos estudos de farmácia, envenenado lentamente o velho com um tóxico sutil e lento, que não deixava vestígio, e fazia crer numa doença misteriosa e incurável contra a qual a ciência encontrava-se desarmada.
A cobiça do dinheiro, o desejo de gozar da vida empurravam-no, aniquilavam nele todo remorso, e não foi senão meses depois, tendo mergulhado até fartar-se nos prazeres grosseiros, que sentira, de repente, o imperioso ferrão da consciência e que o terror atroz, pavoroso, insensato, tinha-se apoderado dele e o fazia arquejar de angustia à noite, na sua cama.
O primeiro aniversário trágico exacerbava ainda mais, esta noite, o pavor que se tinha apoderado dele, e o atormentava sem descanso, implacavelmente.
— É estúpido ficar desta maneira; ninguém sabe nem poderá nunca sabê-lo!
Mirbeau ergueu-se e pôs-se a falar alto. Dirigindo-se para um aparador, foi buscar uma garrafa de cristal contendo rum, e sem procurar um cálice, bebeu na própria garrafa.
— É estúpido!
Repetiu a frase com mais energia, sentindo-se melhor, mais calmo, e, com um pouco mais de segurança, passou os olhos por tudo que estava em volta dele.
Todas aquelas riquezas, que ali estavam espalhadas, eram bem dele. Era preciso ter energia, ninguém o estava ameaçando, nem a lei, nem nenhum castigo invisível, nada. Sacudiu os ombros como para libertar-se do fardo secreto que pesava ainda há pouco sobre ele, riu mesmo com um riso que soava desagradavelmente. O silêncio! A segurança! Ah! Ah! Quem viria perturbar seu sossego de solitário naquele asilo dourado e quente, onde ele não tinha tido a imprudência de introduzir uma companheira?
De repente, o relógio bateu as nove horas — hora do terrível aniversario — e M. Mirbeau, gelado, trêmulo, sentiu voltar irresistível, formidável, o pavor atroz que o torturava há pouco. Estremeceu de todo seu ser. Não estavam andando no aposento ao lado? Não estavam falando?
Oh, se fosse! Quis gritar, mexer-se, mas não podia: uma força esquisita e misteriosa paralisava sua vontade, prendia seus membros. Seus olhos, arregalados pelo terror, fixavam o retângulo dourado da porta que dava para o vestíbulo, e esta porta — cuja maçaneta de repente se moveu, lentamente, muito lentamente — se abriu.
— Ah! Ah!…
M. Mirbeau queria gritar com todas as suas forças, mas o grito engasgou dentro da sua garganta. Um homem alto e magro, quase esquelético, vestido de preto, estava em pé no limiar, imóvel, como uma sinistra aparição.
Atrás dele, percebia-se o rosto espantado do criado que o tinha introduzido, mas Mirbeau não via senão o rosto esquelético e pálido, com longo pescoço descarnado de abutre, do homem fúnebre, vestido de preto, e tremia todo seu corpo. Quase que inconscientemente estendeu a mão para receber uma carta que, sem ter proferido uma só palavra, o homem lhe entregava.
A porta tinha-se fechado sobre a fantástica silhueta. M. Mirbeau abriu febrilmente o envelope, mas, apenas passou os olhos sobre o seu conteúdo, deu um horrível grito, verdadeiro urro de louco, atirando para longe carta e envelope, como se lhe estivessem queimando as mãos, e que foram cair dentro do braseiro do fogão. E a criadagem, que acudiu, veio encontrar um espetáculo horrível: um homem de joelho que ria, com um riso de louco, ininterrupto, que dava gargalhadas frenéticas, como só podem dar os dementes, e repetindo sempre:
— Não é verdade! Ah! Ah!… Não é verdade!…
Levaram-no, sem que cessasse aquele riso atroz. E continuou a rir, até a sua morte atroz, no hospício, na camisa de força. Não parou mais aquele acesso de hilaridade implacável que sacudia da cabeça aos pés sua miserável carcaça.
E ninguém descobriu o segredo do trágico enigma, ninguém soube que a carta, que tinha provocado no assassino o súbito acosso de demência, continha só essas palavras:
“27 de dezembro; aniversário da minha morte. Até breve, miserável!”
E ninguém soube que aquele macabro bilhete tinha sido escrito e assinado pelo morto, tendo o sobrinho, logo à primeira vista, reconhecido a letra!
Ninguém?
Alguém sabia, porque, nesta sombria aventura, não havia fenômeno algum sobrenatural que os adeptos do espiritismo pudessem aproveitar. Na realidade, esta história é muito simples, apesar de pouco banal. O tio envenenado, na véspera da sua morte morte, tinha sido avisado, por um velho criado dicado, do crime do sobrinho, que o tinha surpreendido pondo uma droga no remédio do velho. O moribundo tinha feito o velho criado jurar guardar o segredo terrível, não querendo que a desonra sujasse eternamente o nome respeitado — que era o seu — que usava o seu sobrinho, filho de seu falecido irmão.
Mas, como velho original, preferia a intervenção do além à justiça humana; tinha, então, imaginado a vingança póstuma —que já se conhece —, escrevendo a carta acusadora e antedatando de um ano, na manhã mesma do dia, que, com a presciência dos moribundos, sentia muito próximo seu fim. Ao mesmo tempo, para que o castigo atingisse o criminoso em plena segurança, não tinha mudado em nada as suas disposições testamentárias.
O fiel criado cumpriu à risca as disposições tomadas pelo seu velho amo e, na data exalta do aniversário do crime, dia e hora psicologicamente escolhidos, apresentou-se ele o mais tragicamente possível com a fúnebre mensagem.
E — a nervosidade, exacerbada até o último limite do criminoso trabalhado pelo remorso, ajudando — a vingança teve o mais completo êxito Ou, preferindo-se, a justiça foi feita.
Fonte: “Leitura para Todos”, agosto de 1928.
Imagem: PS/Copilot.
Ouça este conto na locução e interpretação de André Egydio de Carvalho:
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