O MEDO - Conto Clássico de Terror - Louis Hémon

O MEDO

Louis Hémon

(1880 – 1913)


Vou, segundo a frase de um personagem de Kipling, o naturalista Hans Breimann, contar-vos uma história em que não acreditareis.

Diz respeito a um homem que viveu muito tranquilamente das suas rendas, foi considerado a vida inteira como um ente perfeitamente normal e bem equilibrado, gozou, até o fim, da estima dos seus semelhantes e do respeito dos seus fornecedores, e morreu de uma maneira estranha.

Conheci-o em Hastings, cidade que emprestou o nome a uma batalha célebre, praia elegante, que é, mais ou menos, de todos os lugares que eu conheço, aquele que o homem mais cientificamente desfigurou o mar.

Essa praia é um ponto sem igual para fumar um charuto, ouvindo o murmúrio das ondas domesticadas e os acordes de uma orquestra húngara; mas, para as pessoas que adoram a água em liberdade, e os recantos em que e dominam os rochedos tranquilos, “isto não serve”.

Aquilo não servia”, evidentemente, para um homem de elegante aparência que eu encontrava todos os dias, naquela praia-bulevar. E foi, provavelmente, o que nos atraiu um ao outro. Trocamos, uma tarde, severas opiniões sobre a localidade e os seus habitantes e, no dia seguinte, fomos juntos para o banho, evitando as proximidades da areia, onde brincam as crianças, e tagarela o mundo elegante, e se desencadeiam as orquestras.

O meu companheiro nadava com perfeição; não era o estilo impecável, nem o pontapé formidável de certos nadadores, mas o nado de um homem habituado às ondas e que se sente à vontade dentro d'água. Desde então, fomos sempre juntos ao banho. Ele não era conversador, e eu não me mostrava muito curioso, de modo que se passaram várias semanas sem que nenhum de nós procurasse nada saber do outro, a não ser aquilo que ele espontaneamente contava. Certa manhã, comunicou-me que partia à noite e, com alguma surpresa minha, ajuntou que morava numa propriedade de Devon, e que teria grande satisfação em ver-me, se eu achasse tempo para ir passar alguns dias com ele. Fez-me ver a delícia dos cachimbos, fumados deitado sobre a erva, e dum lago situado na sua floresta, digno de receber banhistas exigentes. Aceitei o convite e dirigi-me para lá um mês mais tarde.

Vivia numa casa absolutamente vulgar, de tijolo e argamassa, assentada no flanco duma colina. Mostrou-me, atrás da casa, um jardim que descia por um declive e, com um gesto vago, indicou o vale abaixo de nós, dizendo-me que lá é que se achava o lago. Propus um banho imediato, mas ele respondeu-me, embaraçado, que era melhor esperar a tardinha e que, além disso, estávamos na hora do chá. Entramos. O chá do meu amigo compunha-se de brandy e soda em partes iguais. Bebeu três copos, e falamos de banhos e de natação. As corridas e os recordes não o interessavam. Contou-me, com um ar pensativo, que todos os homens da sua família adoravam a água; o pai morrera de uma congestão, na idade de setenta e dois anos, banhando-se nos arredores de Maidenheard, e um dos seus irmãos afogara-se num tanque — que não me disse onde ficava situado. Quis, por delicadeza, contar também a minha historia, e falei-lhe de um homem que eu conhecera, o qual, numa ocasião em que se banhava nas costas da Irlanda, vira, distintamente, a alguns metros do lugar em que se encontrava, um polvo de seis pés de largura, colhido num rochedo. Sentiu um medo tão grande que nadou desesperadamente para a terra, mas, no momento em que ia içar-se para cima de uma pedra, as suas mãos escorregaram, e ele ali ficou, dentro d'água, por mais de um quarto de hora, sem poder mover-se e urrando de terror.

Ouviu-me o meu amigo com o olhar desvairado, a boca aberta e as duas mãos crispadas sobre a mesa. Perguntei-lhe se era nervoso; respondeu-me que não, bebeu dois goles de brandy — a sua mão tremia ao levantar o cálice — e pôs-se a olhar pela janela.

O Sol estava prestes a desaparecer quando descemos para o vale. O tal lago era um enorme charco de selvagem aspecto, completamente rodeado de ervaçais com uma forma bastante curiosa. Tinha, de comprimento, cerca de cento e cinquenta metros e, de largura, no ponto em que estávamos, cerca de sessenta. A água parecia perfeitamente limpa e, no entanto, era muito pouco transparente, e de tal forma que, salvo junto às margens, não se lhe podia ver o fundo.

Comecei a tirar a roupa, tranquilamente, gozando previamente a volúpia de uma meia hora na água fria, após um dia tão quente. O meu amigo ficou alguns segundos imóvel, depois despiu-se bruscamente, atirou as roupas ao chão, vestiu o calção e pôs-se de novo imóvel, considerando a água. Atribui à influencia do brandy o seu evidente nervosismo, e não pude deixar de pensar que havia muitas probabilidades de ele terminar em uma terrível congestão, como o pai.

Meti-me na água de um salto e, sem grande demora, ele me seguiu. A princípio, avançou lentamente, cheio de prudência, medindo as braçadas, mas, quando a profundidade se tornou suficiente, nadou resolutamente para um certo ponto do tanque. Chegado aí, pôs-se a olhar para o fundo, parecendo examinar algo para mim invisível. Os seus modos me causavam grande estranheza, e resolvi perguntar-lhe o que estava vendo. Respondeu-me muito baixo: “— Há… há uma fonte...” e calou-se de novo. Procurei ver o que havia ali, e só consegui saber que a profundidade naquele ponto era bem maior do que eu supunha.

Virei a cabeça para fazer uma observação ao meu companheiro, mas o seu semblante fez-me logo esquecer o que ia dizer. Estava pálido, o que podia explicar-se pela frialdade da água, mas, principalmente, coberto de rugas súbitas, mostrando que uma grave preocupação o torturava.

Pôs-se a nadar na minha direção e, quando me atingiu, perguntou: “Não há nada, hein?”. Ia responder-lhe com doçura que não havia nada, e que faríamos melhor vestindo-nos, quando senti as camadas profundas do tanque remexidas por um vento misterioso. As compridas ervas do fundo abriram-se de repente, como se afastadas pela passagem de um corpo, e o meu companheiro virou-se rapidamente, gemendo, e nadou para a margem, como perseguido por alguma força inimiga. Quando cheguei à terra, achei-o sentado na erva, com a boca aberta, a respiração tão arquejante que pensei que ele ia morrer.

Cobrou ânimo, no entanto, e, quinze minutos mais tarde, já vestidos, e ele muito mais calmo, voltamos para a casa.

Evitei referir-me aos incidentes do dia, deixando em paz aquele que eu já catalogara como um alcoólico, atacado de perturbações nervosas, contentando-me com observá-lo discretamente. Conservou-se calmo todo o tempo que estivemos juntos naquela noite, falando ele, apesar de pouco amigo de conversar, sobre vários assuntos, muito ajuizadamente.

A manhã seguinte foi igualmente calma. Depois do lanche, perguntei-lhe se não seria preferível tomar o nosso banho mais cedo. Concordou, mas acabou achando um pretexto fútil, e era quase noite quando partimos. Ele ia, como na véspera, não de todo embriagado, mas superexcitado pelo álcool, e logo, ao aproximar-se do tanque, deu sinais de um doentio nervosismo. Executou, diante do buraco escuro em que se achava a fonte, a mesma pantomima de medo abjecto e de curiosidade e avançou mais e mais ainda, até que, vendo o brusco sobressalto das ervas, voltou-se como na véspera e quis fugir.

Mas eu tivera o cuidado de colocar-me um pouco atrás dele e, agarrando-o fortemente pelo braço, fi-lo parar. De repente, conservando-o sempre agarrado, vi a água agitar-se detrás dele. Então, senti distintamente, nas minhas pernas, o roçar rápido de um corpo comprido, de qualquer coisa que parecia ter surgido das ervas espessas, remexendo as camadas, profundas do tanque. Sou pouco impressionável, e nada nervoso, mas, àquele simples contato, o medo, o terrível medo apertou-me de repente a garganta. Não posso me lembrar senão da minha desesperada fuga, ao lado de um homem que deixava escapar, a cada braçada que dava, um angustioso gemido.

Quando chegamos à margem e nos vestimos, voltei-me um momento para olhar o tanque: a superfície das águas estava maravilhosamente calma, e brilhava, sob a luz desfalecente do dia, como uma placa de estanho. Pareceu-me, contudo, ver, na outra extremidade, os inexplicáveis redemoinhos que faziam oscilar as ervas do fundo.

Não trocamos nenhuma palavra sobre o que se passou naquela noite, nem no dia seguinte; mas, quando chegou a hora do banho, recusei-me a acompanhá-lo ao tanque e dei a entender que, visto o estado de seus nervos, ele faria melhor imitando-me.

Não quis ouvir-me e partiu.

Durante a sua ausência, dominou-me a ideia do enorme ridículo da situação e, deixando-lhe algumas palavras, afivelei a minha valise e retirei-me, sem maiores formalidades.

Mês e meio mais tarde, o acaso levou-me a ler um curto fait-divers, que dizia que Mr. Silver, de Sherborne (Devon), fora encontrado morto num tanque de sua propriedade. Atribuía-se a morte a um acidente cardíaco.

A minha versão era um pouco diferente; mas não me pareceu conveniente externá-la naquela ocasião, pela simples razão de que não me acreditariam, assim como não me acreditareis agora.


Fonte: “Leitura para Todos”, edição de agosto de 1923.



 

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