VISÃO INFERNAL - Narrativa Clássica Sobrenatural - Oderico Vital
VISÃO INFERNAL
Oderico Vital
(c. 1075 – 1142)
Havia, numa aldeia chamada Bonneval, um padre de nome Gauchelin. No ano da Encarnação de 1092, no limiar de janeiro, o padre foi, à noite, visitar um enfermo. Voltava sozinho, distante de qualquer lugar habitado, quando ouviu um grande barulho, semelhante ao de um considerável exército a passar pelas cercanias.
Quando avançou na direção de quatro nêsperas, que vislumbrara num campo, um homem de enorme estatura, armado com uma grande clava, precedeu-o na corrida e, erguendo a arma por sobre a cabeça, disse-lhe:
— Alto! Fica onde está!
O padre deteve-se prontamente, paralisado de medo. E, apoiado no bastão que carregava, permaneceu imóvel. O homem armado com a clava estacou próximo ao padre. E, sem feri-lo, esperou a passagem do exército.
Teve início, então, a passagem de uma grande tropa de infantaria. Nela, entidades carregavam ovelhas, roupas, móveis e utensílios de toda espécie —no pescoço e nos ombros — , como costumam fazer os malfeitores. No entanto, gritavam e encorajaram uns aos outros a seguirem mais rapidamente. Entre eles, o sacerdote reconheceu vários dos seus vizinhos, falecidos recentemente, e ouviu-os queixarem-se das cruéis torturas que, por causa de seus crimes, estavam a sofrer. Então passou uma tropa de portadores da morte, com a qual o gigante, de que acabamos de falar, se encontrou. Levavam consigo cerca de cinquenta ataúdes, cada um amparado por dois carregadores.
Depois passou uma tropa — que, ao padre, parecia inumerável — de mulheres. Elas cavalgavam em selas femininas, cravadas de pregos flamejantes. O vento frequentemente elevava as amazonas à altura de um côvado e fazia com que elas caíssem imediatamente sobre os pregos em chamas. Horrivelmente atormentadas por perfurações e queimaduras, proferiram imprecações e confessavam publicamente os pecados pelos quais foram punidas.
O padre reconheceu algumas damas nobres desta tropa e, sobre as selas dos cavalos e das mulas, havia várias mulheres que ainda estavam vivas. Pouco depois, viu uma numerosa tropa de clérigos e monges, seus juízes e superiores, bispos e abades, carregando seus báculos pastorais. Os clérigos e bispos vestiam capas pretas; monges e abades usavam capuzes da mesma cor. Todos gemiam e protestavam. Alguns clamavam pelo nome de Gauchelin e imploravam-lhe, tendo em conta a antiga amizade, que orasse por eles. Ali, o padre viu muitas pessoas de grande estima, que a opinião comum supunha estar agora no céu entre os santos.
Diante dessa terrível aparição, tremendo e apoiado em seu cajado, aguardava ele coisas ainda mais terríveis. Viu, então, o avanço de um grande exército, destituído de qualquer cor perceptível, salvo o preto e uma flama cintilante. Todos os que o compunham, envergando insígnias negras, montavam gigantescos cavalos e marchavam totalmente armados. O padre viu, entre eles, Ricardo e Balduíno, filhos do conde Gislebert, falecido recentemente, assim como muitos outros, cujo número não consigo determinar.
Gauchelin, depois de ter visto avançar aquela grande tropa de cavaleiros, começou a refletir consigo mesmo:
— Sem dúvida, esta é a gente de Herlequin. Ouvi dizer que algumas pessoas a viu algumas vezes; mas, incrédulo que era, zombei desses relatos, porque nunca tivera quaisquer indícios plausíveis de tal coisa. Agora, eu realmente vejo os espíritos dos mortos. Porém, ninguém irá acreditar em mim se eu contar o que vi. Por isso, vou pegar um dos cavalos livres que acompanham a tropa. Vou montá-lo imediatamente, levá-lo à minha casa e mostrá-lo aos meus vizinhos, para lhes inspirar confiança em minha história.
De pronto, tomou a rédea de um cavalo preto; mas o animal sacudiu vigorosamente a mão que o tinha agarrado e fugiu em direção à negra tropa. O padre continuou parado no meio do caminho e, chegando-se-lhe um cavalo que vinha em sua direção, estendeu a mão. O animal parou, esperando o padre; depois, soprando pelas narinas, lançou uma nuvem do tamanho de um mui alto carvalho. Então o padre meteu o pé esquerdo no estribo, agarrou as rédeas, levou a mão à sela. Imediatamente, porém, sentiu sob os pés um calor excessivo, como o de um fogo abrasador; entrementes, pela mão que segurava a rédea, escorreu um frio incrível, que lhe penetrou as entranhas.
De repente, quatro cavaleiros horrendos apareceram e, soltando gritos terríveis, proferiram estas palavras:
— Por que estás a capturar nossos cavalos? Virás conosco. Embora mal algum tenhamos feito a ti, tu te propuseste a furtar o que nos pertence.
O padre largou o cavalo, assustado ao extremo. Três cavaleiros tentaram capturá-lo, mas um quarto lhes disse:
— Deixai-o ir. Eu falarei com ele.
Ele quis, então, que Gauchelin levasse várias mensagens para sua esposa e filhos. Mas, quando o padre se recusou a fazê-lo, o cavaleiro avançou sobre ele e agarrou-o pela garganta. O infeliz só foi libertado pela intercessão de outro cavaleiro, que se deu a reconhecer a Gauchelin como seu irmão e, conversando longamente com ele, falou-lhe, de forma comovente, de sua infância.
Durante a conversa, Gauchelin notou, no calcanhar daquela alma condenada, próxima à espora, uma espécie de caroço ensanguentado, que tinha a forma de uma cabeça humana. Espantado, perguntou-lhe o motivo.
—Não é sangue — respondeu o cavaleiro. — É fogo e parece-me mais pesado do que se eu carregasse comigo o Monte Saint-Michel, Como usei esporas preciosas e muito afiadas para derramar sangue mais rapidamente, carrego, por justo motivo, um peso enorme nos calcanhares.
Tendo proferido tais palavras, o cavaleiro fugiu apressadamente.
Durante toda a semana, o padre permaneceu gravemente doente. Depois, viveu quase quinze anos com boa saúde.
Foi pela sua própria boca que ouvi o que acabei de escrever, além de muitas outras coisas, das quais já me esqueci. Também vi seu rosto ferido pelo toque do terrível cavaleiro.
Versão em português de Paulo Soriano, a partir da tradução francesa, de 1845, publicada em La France Pittoresque.
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