A DAMA RESSURRECTA - Conto Clássico Fúnebre - Léon Gozlan
A DAMA RESSURRECTA
Léon Gozlan
(1803-1866)
Tradução de J. Moreira
(Séc. XIX)
Em princípios do ultimo século, no mês de março de 1707, Luís XIV, que então estava em toda a plenitude do seu poder e autoridade, teve a bem conferir a presidência do parlamento de Paris ao senhor de Lafaille, um dos membros mais distintos do tribunal superior de Tolosa.
Descendente de uma das mais antigas famílias do Languedoc, contava Lafaille, no número dos seus antepassados, embaixadores, senescais, regedores e militares distintos de grande nomeada. Sábio, íntegro, como a maior parte dos magistrados daquela época, juntava, à austera sagacidade do juiz, a excelente urbanidade do homem do mundo. Com aquele tato e aquela delicadeza, que tanto distinguem os homens de elevado talento, o sábio e integérrimo conselheiro do parlamento de Tolosa tinha sabido brilhar e resplandecer, tanto com a sua eloquência no foro e na tribuna, como com a sua polidez e grave aticismo no meio dos mais ruidosos e elegantes salões da primeira grandeza daqueles tempos de faustosa fama. Achille de Harlay, o ilustre primeiro presidente, dizia de Lafaille que na pessoa deste o dom de agradar se unia perfeitamente ao dom de persuadir e convencer. Lafaille era viúvo e, se não havia querido contrair segundas núpcias, fora tão somente por ter concentrado todas as suas esperanças — todos os seus cuidados e ternura — em sua única e estremecida filha. Clémence, pois que assim se chamava a menina de Lafaille, tocava de perto os dezesseis anos quando seu pai, em obediência às ordens do rei, tomou posse em Paris do seu lugar de presidente do parlamento.
Estabelecidos que foram pai e filha na capital, não se passou muito tempo sem que ambos fossem recebidos na melhor sociedade, dispensando-lhe a um e outro o mais cordial afeto. As brilhantes reuniões dos suntuosos palácios de Rambouillet e de Rochefoucault há muito que haviam deixado de existir; porém, em compensação, tinham-lhe sucedido muitas outras nas quais luzia e campeava a paz da elegância e do bom gosto, a franqueza e a bondade; e onde o gênio, as graças e o talento eram acolhidos com avidez e distinção.
Certa senhora, viúva de um tenente dos reais exércitos, residia então em Paris em companhia de seu filho, Georges de Garan, capitão do regimento de La Fere. Esta dama, que gozava uma boa fortuna, era oriunda de Tolosa; seu filho havia estado de guarnição naquela cidade e tinha sabido merecer ao Sr. de Lafaille a maior consideração e amizade. A espécie de simpatia, que une instintivamente as pessoas naturais de uma mesma terra, serviu, já se vê, para estreitar mais as relações destas duas famílias. Lafaille e Clémence, a senhora de Garan, viúva do general, e Georges, na opinião de toda a gente, deviam com brevidade vir a formar uma só casa e uma só família.
A formosura, a riqueza e a esmeradíssima educação de Clémence correspondiam admiravelmente aos princípios de honradez, valor e talento do senhor capitão; os seus nascimentos eram iguais.
Finalmente, um poderoso auxílio veio secundar os votos secretos do Sr. de Lafaille e da Sra. de Garan. O amor havia-se deslizado sorrateiramente, sem talvez se aperceberem dele, para o coração dos dois jovens, e este amor, germinado em Tolosa, tomara corpo em Paris, convertendo-se em violenta paixão.
As disposições preliminares de uma união que se apresentava sob tão felizes auspícios não se fizeram esperar, e seguiram após o consentimento dado pelo Sr. de Lafaille à súplica do moço capitão, advogada com fervoroso e diligente empenho por sua estremecida mãe. Estava, portanto, já designado o faustoso dia destinado aos desposórios daquelas duas felizes criaturas; já os enamorados, menos sujeitos pela autoridade paterna, fabricaram, em sua exaltada imaginação para o porvir, esses encantados edifícios, a que se chama castelos no ar, quando um desses inesperados acontecimentos, que destroem os mais bem combinados planos, veio de repente transtornar e destruir todas as suas mais bem fundadas esperanças de ventura e felicidade.
O senhor capitão recebeu, de súbito, ordem para se reunir no prazo de vinte e quatro horas ao seu regimento, que ia embarcar-se para as Índias na esquadra que comandava o conde de Forbin, a qual devia fazer-se de vela imediatamente.
Apossado de violenta desesperarão, Georges correu, desorientado, a participar tão cruel e funesta notícia à sua noiva e a seu pai. Clémence apenas manifestou, ao princípio, a sua profunda dor por meio de um melancólico silêncio; porém, em breve, abundantes lágrimas traíram essa afetada resignação e patentearam todas as angústias de sua alma. O austero magistrado parecia haver dominado a sua comoção, porém estava pálido, e divisava-se em suas feições o selo e os sulcos de uma profunda e viva mágoa.
—Senhor presidente — diz-lhe Georges —, só me resta um meio para fugir à desgraça que me ameaça: este meio é pedir a minha demissão; porém, o amor de Clémence não me é suficiente, quero também possuir a sua estima, e, seguramente, eu não a mereceria se porventura fosse capaz de cometer uma baixeza.
Lafaille apertou silenciosamente a mão do senhor capitão em sinal de assentimento.
Este deixou, então, pressentir, com timidez, os projetos que havia concebido, os quais consistiam em obter o consentimento de Lafaille para o seu enlace com Clémence, enlace que deveria realizar-se imediatamente, levando em seguida, consigo, sua senhora esposa; porém, teve que resignar a este seu segundo desejo, e deixá-la na companhia de seu pai, dando-se, todavia, por muito feliz com o poder levar tão somente o doce título de esposo, título este que coroava os seus mais ardentes desejos.
O rígido presidente lutava com as suas habituais armas, a razão e o sentimento, e determinou que o casamento se realizaria logo que fossem terminados os dois anos da ausência de Georges.
Adotado irrevogavelmente que foi este propósito, a severidade parlamentar voltou, pois, a recuperar todos os seus direitos; por isso, daí em diante, já não foi permitida a Clémence e a Georges aquela liberdade de trato até então concedida: o olho vigilante de Lafaille espiava os seus mais pequenos movimentos de lábios, os seus mais imperceptíveis olhares.
Não obstante todas estas precauções, e apesar da zelosa vigilância do velho magistrado, no momento em que Georges ia a separar-se da sua amada, ele murmurou rapidamente ao ouvido de Clémence estas palavras que lhe penetraram no coração:
—Esta noite, às dez, no jardim.
Clémence, não podendo conter o seu espanto, encarou Georges com assombro; porém, era tão visível nele o sobressalto de sua alma, estava tão agitado e convulso, que ela não pôde deixar de lhe redarguir:
—Irei.
O austero presidente Laifaille nada viu; nada escutou.
Naquela mesma noite, às dez em ponto, achavam-se no jardim os dois apaixonados amantes, e ali tiveram lugar os mais fervorosos protestos de amor, fidelidade e constância.
*
Quatro anos depois da cena que acabamos de esboçar ligeiramente, Georges Garans, cujo regimento tinha sido derrotado quase todo nas Índias, a ponto que, tendo sido ele próprio ferido e feito prisioneiro, todos o tiveram por morto, chega a Paris e se dirige à casa que habitava sua mãe na rua de São Luís.
Tudo ali se achava disposto e preparado com a magnificência própria de um sumptuoso festim para celebrar o inesperado regresso do moço capitão, do filho muito querido. Uma brilhante multidão de parentes, amigos e alguns companheiros da sua infância e da sua juventude tinham sido convidados para aquela festiva recepção.
A senhora de Garans, louca de alegria, não se fartava de manifestar à numerosa reunião o júbilo que lhe inundava a alma, e fazê-la participante da felicidade íntima que o seu coração de mãe extremosa sentia, e, por conseguinte, todos à porfia se entregavam, seguindo o seu exemplo, ao prazer que o regresso inesperado do senhor capitão motivava. Unicamente Georges é que se conservava triste, e como que preocupado por uma ideia fixa, mais impressionável em extremo; e, por isso, não respondia às manifestações de contentamento de que era objeto, senão com uma profunda e silenciosa tristeza.
—Peço-vos mil perdões, minha boa mãe, desculpem-me meus excelentes amigos — disse ele finalmente —, se não tomo a parte que devera tomar na vossa alegria, na satisfação que a todos é comum; porém, os meus infortúnios, as minhas desgraças fizeram-me um tanto supersticioso, e há impressões que são impossíveis de dominar. E, se não, ouçam: esta manhã, no momento de entrar em Paris, vi, ao passar pela frente da igreja de São Germano, faustosos preparativos de uma cerimônia fúnebre. Grandes cortinas negras ornavam as majestosas portas do templo em sinal de luto e dó; uma comprida fileira de pobres, com tochas acesas, se estendia ao longo do átrio, em frente do pórtico principal, esperando a saída de um féretro, cuja marcha lenta e solene se acompassava unida e uníssona com os cânticos fúnebres da colegiada, e o sinistro tanger dos sinos do ostentoso campanário. Assaltado por uma triste e dolorosa impressão, e tomando este fatal e sinistro encontro como um presságio de próxima desgraça, eu me afastei, o mais apressadamente que pude, daquele melancólico sítio; porém, com o coração extremamente oprimido.
“Não obstante as variadas reflexões, que a mim próprio tenho feito, para tranquilizar o meu desassossegado espírito, e por mais e maiores diligências que agora mesmo trato de empregar, para dar outra direção aos meus pensamentos, é tudo em vão, porque, diante de meus olhos, não se apaga a vista daquele féretro, nem daquelas pálidas tochas, tristes fachos da morte.”
— Essa fúnebre cerimônia, que tão desagradável impressão produziu na sua alma, capitão — disse um dos convidados —, deve ter sido o enterro da formosa senhora de Boisseiux, a esposa do presidente do Supremo Tribunal, que faleceu ontem em resultado de uma doença de dois dias apenas.
—A formosa senhora de Boisseiux? —interrompeu Georges. — Com efeito, deve ter sido um completo tipo de formosura, visto assim lhe chamarem!
—E era-o realmente — replicou um outro convidado —, tanto que em Paris era conhecida pelo nome de formosa presidenta, bem como outrora o foi em Tolosa pelo de Clémence de Lafaille.
—O que! Morreu Clémence de Lafaille?! —exclamou Georges. — Engana-se… Não pode ser… Porém, digam-me, expliquem-me este mistério: a senhora de Boisseiux e Clémence de Lafaille são uma e a mesma pessoa?
—Sim, meu filho — disse, afinal, a senhora de Garan, a quem a emoção de Georges e a sua palidez gelavam de espanto. —Uma vez que o acaso permitiu que fosses espectador dos funerais da Sra. de Boisseiux, seria inútil prolongar por mais tempo a tua ignorância. Sim, Georges; a presidenta de Boissieux não é mais nem menos que Clémence de Lafaille... O seu casamento foi filho do rumor, da notícia da tua morte, a qual se divulgou com tantos visos de verdade, que eu própria te chorei e me vesti de luto. Ao desposar-se, pois, com o presidente Boissieux, homem digno a todos os respeitos do afeto e ternura de uma consorte virtuosíssima, ela não fez mais que obedecer às ordens e vontade de seu pai.
Georges escutou sua mãe comovido; não lhe respondeu; porém, grossas lágrimas, caindo silenciosamente por suas faces, desceram a umedecer a cruz de São Luís que ornava o seu peito, recompensa gloriosa de seu valor e bravura, e que o rei lhe havia concedido ao desembarcar em França.
Retiraram-se todos os convidados e Georges ficou só com sua mãe, a qual redobrou os seus esforços, ainda que inutilmente, para o consolar.
Chegada a noite, Georges de Garan tratou de se embuçar no seu longo capote de militar, tomou as suas armas, muniu-se de uma boa porção de ouro; e, aproveitando em seguida uma favorável ocasião, enganou a vigilância dos criados de que sua mãe o havia rodeado, e saiu de sua casa, dirigindo-se a largos passos para o cemitério da igreja de São Germano. Logo que chegou ao sítio mais isolado de um bairro quase deserto, bateu à porta de uma pobre casinha de ruim aparência, na qual habitava o coveiro.
—És um pobre miserável — disse Georges. —Posso, num momento, fazer-te rico. Queres?
O coveiro vivia, com efeito, na maior indigência; carregado de filhos e mulher, apenas lhes podia proporcionar o seu diário e parco sustento com o escasso produto do seu humilde e lúgubre trabalho. Ao ver, pois, em sua casa um cavalheiro ricamente vestido, resolveu fazer-lhe pagar o mais caro que pudesse o serviço que ia a reclamar dele.
—Meu capitão — respondeu em seguida o estalajadeiro dos mortos —, não desejo outra coisa mais do que chegar a ser rico; e, se para o conseguir, eu não comprometo a segurança do meu pescoço neste mundo, nem a saúde da minha alma no outro, estou à vossa disposição.
—Imbecil, nem o teu pescoço nem a tua alma têm nada que arriscar em tudo isto — replicou vivamente Georges. —Trata-se unicamente de ires, agora mesmo, em minha companhia, remover a sepultura que esta manhã abriste no cemitério, para da mesma tirares o caixão que ali baixaste, o qual abrirás para eu ver e contemplar a pessoa que ele encerra.
—Pelos ossos de meu pai, que tal coisa não farei! — exclamou cheio de espanto e terror o taciturno coveiro. —Não darei a minha alma ao demônio, cometendo tão espantoso sacrilégio.
—Aqui tens pelo sacrilégio — tornou Georges, arremessando-lhe um punhado de ouro sobre os velhos epitáfios apagados pelo tempo, que formavam o lajeamento da habitação do coveiro.
—E se me atiram para as galés?
—Poltrão, toma lá pelas galés —disse Georges, arrojando-lhe por sobre o outro um novo punhado de ouro.
O homem dos mortos fez, todavia, três ou quatro objeções ainda; porém, tranquilizada afinal a sua consciência pelo brilho fascinador daqueles luíses de ouro, que resplandeciam em sua sórdida caverna como fulgurantes estrelas em um céu toldado de nuvens, decidiu-se, pois, a obedecer ao moço capitão. Tomou, portanto, a enxada e a pá — instrumentos do seu melancólico labor —, armou Georges de Garan de uma lanterna, e ambos seguidamente se encaminharam para a sepultura onde repousava, havia algumas horas apenas, aquela que tinha sido a formosa presidenta de Boissieux, a adorada Clémence de Lafaille.
Depois de um trabalho de alguns minutos, durante os quais o coração de Georges batia com violência, o caixão foi descoberto, tirado para fora e colocado sobre a borda da sepultura.
—Ei-lo. Aí está! — disse friamente o coveiro. —Fazei agora o que vos aprouver. Eu já concluí a minha obrigação.
—Ainda não; é necessário que levantes a tampa desse caixão — disse Georges. —Já esqueceste o nosso contrato?
—É justamente isso o mais difícil — resmungou por entre dentes o tristonho coveiro.
—Miserável! — interrompeu o capitão, mostrando-lhe um punhal. —Já te dei bastante ouro, não queiras que eu tenha de recorrer ao ferro.
Esta patética cena mudou completamente a resolução do carrancudo obreiro da morte. Pôs mãos à obra e, em breve, o corpo gentil da senhora de Boissieux, envolto na sua alva mortalha, rolou por sobre o solo atapetado de verdejante relva.
Georges caiu, então, de joelhos em terra, como fulminado, ao lado do cadáver, e assim permaneceu por longo tempo, submerso em seus pensamentos e no mais profundo recolhimento.
Vendo, pois, o coveiro que o senhor capitão, ao qual havia em vão dirigido uma e mais vezes a palavra, continuava na sua imobilidade e no seu silencioso êxtase, inferiu que, todavia, ainda lhe restava alguma coisa mais que fazer.
Saiu, portanto, da cova, aonde havia descido para a sua primeira operação, e, aproximando-se rudemente do cadáver, lhe afastou uma parte da mortalha, descobrindo assim o rosto da Sra. de Boissieux.
A este aspecto, uma faísca elétrica pareceu ferir a alma galvanizada de Georges: reconheceu, então, a sua amada, Clémence, finalmente, a menina de Lafaille.
Era ela, com efeito. Não lhe restava a mais pequena duvida: as violetas da morte não haviam, todavia, substituído o animado carmim da vida; estava, como dantes, formosa, e o último selo não aparecia impresso sobre a sua fronte.
Georges estreitou docemente o precioso cadáver entre os seus braços, colocou-o sobre os seus joelhos, cingiu-o sofregamente contra o seu coração, falou-lhe de amor, de felicidade, recordou-lhe os seus belos dias passados... De repente, porém, solta um grito que ressoa em todos os ângulos do cemitério... Uma risada convulsiva e nervosa sucede a este grito. Depois, tudo entra de novo no silencio da morte.
O coveiro, que permanecia a alguma distância, e se achava meio adormecido sobre os degraus de uma campa, levantou-se imediatamente para se acercar do cavalheiro; porém, em vão o procura no lugar em que o havia deixado, e apenas o vê, com surpresa sua, ao longe, fugindo por entre os monumentos fúnebres e taciturnos ciprestes, levando em seus braços o cadáver que acabava de arrebatar.
*
Entretanto, a prematura morte de uma esposa, que idolatrava, tinha submergido o presidente de Boissieux numa inconsolável tristeza.
Todos os anos, pois, no dia aniversário daquela separação, que havia sido tão inesperada e tão cruel, o respeitável magistrado ia só, vestido de pesado luto, ao cemitério, e ali, de joelhos sobre a pedra que cobria os restos de uma esposa querida, ele orava fervorosamente por aquela que tinha sido a estrela brilhante da sua vida.
A 14 de outubro de 1716, isto, é cinco anos depois da morte da Sra. de Boissieux, fora o presidente, como de costume, ao cemitério para cumprir o piedoso dever que a si próprio havia imposto em comemoração deste fúnebre aniversário.
Havia, já cerca de uma hora, que ele ali estava entregue às suas recordações, e no mais profundo recolhimento, quando, de súbito, um ruído ligeiro, como o ranger de um vestido de seda, o veio a despertar e arrançar de suas cruéis meditações. O senhor de Boissieux levantou, pois, a cabeça, e qual não foi a sua admiração ao reconhecer, na pessoa que acabava de perturbar deste modo a sua dor, sua própria esposa, Clémence, o objeto de tantas tristezas e de tantas lágrimas vertidas!
A esta aparição miraculosa, Boissieux ergueu-se imediatamente e estendeu os braços para aquela que julgava ser uma visão, uma sombra, exclamando com apaixonada acentuação:
—Clémence! Minha adorada esposa!… Es tu! Tu, que, por um piedoso milagre, tornas à vida?!
A desconhecida, porém, que a princípio não o tinha visto ajoelhado, tomada de surpresa, soltou um grito e fugiu precipitadamente.
Boissieux tentou ir em sua perseguição e alcançá-la a todo o custo; porém, menos veloz na sua carreira, em consequência dos seus anos, apenas conseguiu vê-la, a alguma distancia, subir para uma carruagem, a qual desapareceu a toda a brida, tirada por dois magníficos e possantes cavalos.
Fora de si, extremamente agitado pela inexplicável comoção que em seu ânimo acabava de causar-lhe aquela aparição inesperada, Boissieux correu à habitação do coveiro, interrogou-o, suplicando-lhe que lhe desse a explicação do que acabava de presenciar. Intimou-o, emfim, para que lhe dissesse tudo que sabia e dizia respeito ao enterro da Sra. de Boissieux.
—Bem quisera poder satisfazer as perguntas de vossa senhoria; porém, há apenas quatro anos e meio que estou neste lugar.
—Logo, não foste tu que abriu a sepultura da presidenta e assistiu ao seu enterramento?
—Não, meu senhor, quem fez esse trabalho foi Réné Glot, o coveiro meu antecessor.
—E que é feito desse tal René Glot?
—Disse-se que herdou uma soma considerável, e retirou-se com sua mulher e filhos para a Normandia, onde vivem.
—Há cinco anos?
—Pouco menos.
—Ora, dize-me —prosseguiu Boissieux —, durante o tempo que tem decorrido desde que estás de posse do lugar de coveiro deste cemitério, nunca viste vaguear, ao redor da campa da senhora presidenta, uma dama ainda jovem, muito formosa e ricamente vestida?
—Nunca, meu senhor… Apenas haverá uns três ou quatro dias que um criado veio perguntar-me em que parte do cemitério se achava o túmulo da Sra. de Boissieux, defunta esposa do senhor presidente do Supremo Tribunal.
—E nada mais te disse?
—Nada mais.
—Está bem — replicou Boissieux, deixando escorregar algumas moedas de prata na mão do coveiro. —Vigia, pois, cuidadosamente o túmulo da senhora presidenta. E, se alguma coisa extraordinária despertar a tua atenção, avisa imediatamente ao Sr. tenente de polícia. Brevemente darei por cá uma volta. Adeus.
Boissieux, ao sair da casa do coveiro, dirigiu-se, sem demora, à do conde de Argenson, tenente de polícia, ao qual relatou o que acabava de lhe acontecer, não lhe ocultando particularidade alguma, principalmente as suspeitas, que haviam excitado no seu ânimo, quanto à desaparição repentina do antigo coveiro, enriquecido subitamente por uma pretendida herança.
—Tudo isso é muito romanesco — disse o Sr. de Argenson, depois de ter escutado atentamente o digno magistrado. — E confesso-vos que conto, no número das vossas preocupações dolorosas, a semelhança extraordinária que assegurais haver notado entre a dama do cemitério e a finada presidenta de Boissieux. Não obstante, vou imediatamente dar ordem para se procederem às possíveis diligências, a fim de se averiguar o nome dessa dama. E, ao mesmo tempo, farei partir para a Normandia um agente, com o propósito de interrogar discretamente o antigo coveiro.
—Porém, antes, Sr. conde — interrompeu Boissieux —, não seria conveniente ordenardes que, amanhã, se procedesse à competente exumação?
Com efeito, no seguinte dia, o tenente de polícia, acompanhado de dois conselheiros do Chatelet, um comissário, dois cirurgiões e do Sr. de Boissieux, dirigiram-se ao cemitério de São Germano, onde, com prévia autorização eclesiástica, se procedeu à abertura da cova em que havia sido depositado o cadáver da presidenta.
O caixão estava vazio e quebrado.
Três dias depois, o tenente de polícia dirigiu ao Sr. de Boissieux uma carta, na qual lhe dava as seguintes notícias:
“A pessoa que o Sr. presidente encontrou no cemitério, em 11 de outubro, é a senhora de Garan, esposa do senhor de Garan, major do regimento de artilharia de la Fere. O seu casamento foi celebrado em Pondicherry1, de onde ela é oriunda, e os dois esposos há um mês que chegaram à França. O agente enviado à Normandia encontrou facilmente a família do coveiro Bené Glot. Este homem, há perto de três anos que morreu; porém, pelo interrogatório que se fez a sua mulher e a seus filhos, soube-se que não herdou coisa alguma, mas que chegou a Vire com uma soma de dez mil libras. Estes pormenores, únicos que se puderam adquirir até agora, são de uma verdadeira importância quando se considera que, da exumação da senhora presidenta, resulta que o seu corpo foi extraído do competente caixão.”
Boissieux julgou, então, dever manifestar ao tenente de polícia as íntimas relações que haviam existido entre a família do senhor de Garan e a da menina de Lafaille, o projetado casamento entre o moço capitão e Clémence, as causas do rompimento deste e os obstáculos que ele, presidente, tinha encontrado quando, ao receber-se a notícia da morte de Georges de Garan, pediu a mão da Sra.de Lafaille.
Concluiu suplicando ao senhor de Argenson que nada perdoasse para averiguar os menores passos dos dois amantes, pois que não lhe restava dúvida alguma de que aquela que passava, ou se inculcava por esposa do Sr. de Garan, era sua própria mulher, a qual ele estava na plena disposição de obrigar, por todos meios possíveis, a voltar para sua casa.
Verificadas que foram estas diligências, o presidente Boissieux entabulou imediatamente uma ação judicial de rapto, contra o senhor de Garan, pedindo, além disto, a nulidade do segundo matrimônio da Sra.de Lafaille, a quem intimava e requeria para voltar ao domicílio conjugal. Ao mesmo tempo, pôs em prática as maiores diligências para recolher e coligir todos os dados, todos os indícios que pudessem concorrer para a averiguação completa da verdade. Soube, com exatidão, pelo Ministério da Guerra, o dia preciso da primeira chegada de Georges Garan a Paris, dia notável — porque foi o mesmo da sua precipitada saída da capital —, e aquele em que viu e presenciou o funeral da presidenta. Encontrou os postilhões, que o haviam conduzido por essa ocasião de Paris a Brest, acompanhado de uma senhora enferma, e embuçada em uma longa capa; soube, por último, que haviam embarcado em um navio mercante, a Bela Margarida, podendo, aliás, fazê-lo num navio do estado.
Provido destes diversos, mas interessantes elementos, deduzidos de fontes incontestáveis, intentou um processo cujo resultado não duvidava lhe fosse favorável.
Esta causa excitou imensa curiosidade, não só por sua novidade, pelas dificuldades de seus procedimentos e pelo mistério de que parecia estar rodeada; porém, mais que tudo, pelos distintos personagens que nela figuravam.
Nos brilhantes salões de Paris, faziam-se as mais estranhas suposições, os mais absurdos comentários e picantes alusões, ora contra o esposo que reclamava sua pretendida mulher, ora contra o marido que defendia aquela que havia arrebatado ao sepulcro.
O grande dia dos debates chegou enfim, e o majestoso recinto do tribunal foi invadido por uma multidão ávida de comoções, apaixonada, ardente, fácil de comover, e que, arrastada pela notória eloquência dos advogados, seduzida pela formosura de Clémence, fazia pública ostentação dos seus desejos pelo triunfo de uma mulher que se apresentava como vítima de uma infernal maquinação.
Lafaille — a quem a resistência de sua filha, quando quis casá-la com o presidente de Boissieux, afetou profundamente — tinha-se retirado para Tolosa desde a sua imprevista morte, cheio de profunda dor, tanto mais pungente quanto que se culpava a si próprio de haver concorrido para lhe abreviar os seus dias. À noticia, pois, do estranho processo que ia ventilar-se no parlamento, o venerando magistrado pôs-se a caminho de Paris. Apenas chegado, procurou ver Clémence e, chamando-lhe filha, a estreitou em seus braços, chorando como uma criança. Porém, Clémence, sem que sinal algum aparente manifestasse nela a mais ligeira comoção, sem que nenhum outro sentimento além do da surpresa e dum respeitoso interesse parecesse alterar a serena tranquilidade do seu semblante, declarou aos magistrados, que tinham querido assistir a esta entrevista, que ela não conhecia absolutamente a pessoa em frente da qual a haviam colocado, e que se admirava muito de ser o objeto de umas perseguições tão cruéis quanto imerecidas.
Na audiência, renovou, pois, as mesmas declarações; e, na presença do senhor de Boissieux, repeliu e rebateu, com serena dignidade, as suas alegações; referiu a história, tão curta como simples, da sua vida, e as suas palavras foram, em seguida, reforçadas e habilmente desenvolvidas nos argumentos produzidos e provas exibidas das peças do processo pelo distinto advogado Moizas, as quais não deixavam dúvida alguma sobre a sua autenticidade.
A esposa do senhor major de Garan, nascida em Pondichery, de pais franceses — o senhor de Merval e a senhora Fichot —, havia casado há três anos na capela do governo, sendo testemunhas deste ato militares de elevada graduação e funcionários de distinta categoria. A sua certidão de batismo estava competentemente legalizada, o contrato do seu casamento e certidão deste revestidos de todas as abonatórias prescrições determinadas na lei, e julgadas legais; finalmente, os esposos tinham vindo para França a bordo de um navio do estado.
Nada, portanto, devia fazer suspeitar que um homem de honra, um militar distinto, como sempre o fora o cavalheiro de Garan, quisesse enganar impudentemente a justiça, do mesmo modo que não era possível ajuizar que uma mulher, jovem e virtuosa, pudesse sustentar, com tanta tenacidade e audácia, uma impostura que confundia a própria razão.
Este tema, desenvolvido com proficiência pelo senhor Moizas, um dos advogados mais conspícuos do parlamento, causou, no apaixonado auditório, e até mesmo no ânimo dos magistrados, certa impressão de dúvida que não tardou em converte-se em convicção.
Debalde, o presidente Boissieux, e o eloquente órgão da sua querela, invocaram recordações e fatos em nada duvidosos, e coincidências irrefragáveis; em vão, eles insistiram, firmando-se nas graves suspeitas que infundiam o procedimento do cavalheiro de Garan, que havendo chegado a Paris no próprio dia do enterro da senhora de Lafaille, naquela mesma noite saíra precipitadamente da capital, sem dizer sequer adeus à sua mãe, sem havê-la abraçado, sem finalmente receber a sua benção; quando, segundo todas as probabilidades, não devia tornar a vê-la, tomando furtivamente em certo modo o caminho de Brest em uma carruagem postal que desaparecia de sobre o solo com a velocidade de sua carreira, levando, em sua companhia, quase moribunda e coberta com uma longa capa, a fim de que vistas estranhas não pudessem penetrar e devassar o seu segredo, uma mulher ainda jovem, com a qual embarcou em seguida, sob um nome suposto, em um navio mercante, com manifesto desprezo de sua origem e de seus deveres.
O senhor de Boissieux invocou, além disto, e com excessiva firmeza, a controvérsia ou contestação suscitada pelos médicos e cirurgiões daquela época, contestação que apontava um grandíssimo número de casos nos quais o letargo tinha durado muitos dias, revestido de todos os sintomas e aparências de morte.
Toda esta eloquência, toda esta acalorada argumentação devia, porém, cair por terra diante da tranquila serenidade da senhora esposa de Garan. Sentada ao lado do seu defensor, rodeada de amigos da família de seu marido, ela parecia esperar a sua sentença, confiada na justiça humana e divina.
Os magistrados, ao principio indecisos, não tardaram em se interessarem pelo estranho e singular destino daquela mulher tão jovem ainda, e tão formosa que, tendo nascido sob um céu estrangeiro, se havia confiado ao amor de seu esposo, seguindo a sua sorte, e que, chegada à pátria inóspita, se vê arrastada ao banco do crime, para lhe disputarem os seus direitos de esposa, de filha e de mãe.
Debaixo da impressão de tais pensamentos, depois que o órgão imparcial da lei pronunciou o seu juízo, no qual era de parecer, e pedia que fosse desprezado o pleito do presidente Boissieux, não deixando em esquecimento a devida reparação ao senhor major de Garan e à sua esposa, injustamente atacados no seu estado, na sua consideração e honra, os magistrados iam levantar-se já dos seus lugares, quando um imprevisto incidente, capital, decisivo, veio mudar subitamente a disposição de seus ânimos e dar um aspecto inteiramente novo ao processo.
Enquanto que, no meio do silêncio mais profundo e de uma atenção geral, o advogado do rei discursava larga e brilhantemente, o Sr. de Boissieux, que havia ficado fora de si ao ouvir o parecer do representante da lei, dirige-se rapidamente à sua casa e abraça sua extremosa filha, que havia completado seis anos, e a tinha posto também o nome de Clémence, tendo pouco mais de um ano quando perdeu sua mãe. Ao estreitar, comovido, em seus braços, a sua querida e inocente filhinha, um pensamento de esperança o assalta, uma ideia luminosa brilha na mente do aflito e consternado magistrado: rápido, envolve a encantadora menina em uma mantilha e, tomando-a pela pequenina mãozinha, com ela volta apressadamente ao tribunal.
Os juízes, segundo acabamos de dizer, levantavam-se vagarosamente para passarem à sala das suas deliberações, quando o Sr. de Boissieux cujo regresso ao tribunal excitou a atenção do presidente, fez ao digno magistrado um sinal de súplica, a fim de obter que o ouvisse por alguns segundos, dirigindo-se ao mesmo tempo aos lugares ocupados pela Sra. de Garan e seu defensor. Este, distraído, pois, em reunir todos os documentos que haviam constituído o corpo e base da sua defesa, estava inteiramente absorto em suas investigações. A Sra. de Garan, com a cabeça dolorosamente apoiada sobre a sua mão direita, parecia engolfada em pungentes reflexões.
Naquele momento, a menina, que Boissieux havia conduzido até junto dela, pega-lhe docemente na mão e, erguendo-se com esforço sobre as pontas de seus pequeninos pés para facilmente lhe poder apresentar a sua fresca e risonha carinha de anjo, lhe diz com meiga e doce voz infantil:
—Mamãe, dá-me um beijo?
Arrancada, então, subitamente, do seu êxtase por esta inesperada aparição, a Sra. de Garan lança um grito denunciativo, estreita com ternura em seus braços a loura criancinha, cobre-a de sôfregos beijos e de abundantes lágrimas, deixando ao mesmo tempo escapar por entre os lábios estas palavras:
—Clémence! Filha das minhas entranhas!
*
Desde aquele momento, mudou o processo completamente de direção; porém, o defensor da Sra. de Lafaille, que via desabar o edifício por ele arquitetado tão habilmente, longe de vacilar com este inesperado golpe, retomou antes nova energia, não abandonando a sua cliente em tão crítico momento, louvando-a, engrandecendo-a aos olhos dos juízes, de todos.
Traçou, então, um quadro verdadeiramente patético, arrebatador, de seus sofrimentos; pintou com vivas cores os seus combates, a sua resignação, a sua piedosa obediência à vontade paternal; apresentou-a, em seguida, na cena mais comovedora deste drama de lances imprevistos sensibilizadores, desenhando-a, com mestria e vigor, no momento de ser arrancada milagrosamente das garras da morte, fugindo de França e julgando-se livre para poder consagrar toda a sua nova vida àquele a quem dela era devedora. Finalmente, concluiu solicitando do justiceiro tribunal que declarasse nulo um matrimonio que a morte havia já rompido e que não desse o seu beneplácito à odiosa pretensão de Boissieux, a qual consistia em querer levar à viva força para sua casa aquela que ele não tinha sabido conservar e pôr ao abrigo do maior e mais espantoso dos erros.
Uma sentença neste sentido era impossível: o matrimônio contraído com o cavalheiro de Garan, em Pondichery, foi, portanto, declarado nulo, e Clémence Lafaille condenada a voltar para o domicílio conjugal de seu legítimo esposo, o presidente Boissieux.
*
No seguinte dia ao da sentença da Sra. de Lafaile, a qual havia retomado o seu verdadeiro nome, mas ainda assim insistia em lhe adicionar o de madame de Garan, foi apresentado ao rei um memorial pedindo-lhe a graça de lhe ser permitido retirar-se ao convento das monjas carmelitas, ou a qualquer outro que porventura sua majestade tivesse a bem designar-lhe.
Esta petição não foi tomada em consideração; antes, pelo contrário, lhe foi intimado que, no prazo de vinte e quatro horas, deveria cumprir a sentença do parlamento.
Às seis horas da tarde do dia imediato, o presidente Boissieux tinha reunido em sua casa as pessoas de sua família, os seus amigos e conhecidos, para a recepção que a própria Clémence lhe havia comunicado, em aviso especial para esse fim, com designação do dia e hora.
Chegado o preciso momento, Clémence apresenta-se só, vestida de branco, e levando sobre si, em asiático adorno, as suas joias mais preciosas.
Ao abrir-se a porta da sala, e ao anunciar um criado a senhora presidente de Boissieux, o grave magistrado, ébrio de satisfação, levanta-se precipitadamente para lhe sair ao encontro e introduzi-la. Clémence, porém, que a este tempo já havia assomado ao limiar da porta, faz-lhe um gesto, um sinal para que se detenha.
—Senhor — diz-lhe ela com voz tranquila e resignada —, venho restituir-vos o que havíeis perdido.
Terminadas que foram estas palavras, caiu morta sobre o pavimento.
Naquela mesma noite, Georges de Garan, que se envenenara com ela, expirou nos braços de sua estremecida mãe.
*
Entre os processos célebres, cuja tradição terrível ou sentimental chegaram a tornar-se de certo modo populares, o de Clémence de Lafaille e Georges de Garan é, sem questão, um dos mais curiosos; todavia, não se encontra menção dele em nenhuma das coleções onde sucessivamente se têm ido consignado os dramáticos anais dos grandiosos debates judiciais. Assim, pois, para dar uma relação completa e exata deste assumto, tão fértil em peripécias, foi necessário recorrer a documentos muito raros e pouco conhecidos, e, sobretudo, a uma memória do Sr. de Comeras, advogado distinto do parlamento de Paris, e, por último, ao resumo de uma discussão sustentada entre as academias de medicina e de cirurgia sobre uma das questões suscitadas neste processo.
Fonte: “Universo Ilustrado”/PT, 1878.
Ilustração: PS/Copilot.
Nota:
1Território da antiga Índia francesa.
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