A COVA É MINHA! - Conto Humorístico de Terror - Maycon Guedes
Maycon Guedes
—
Ei, você! Sai da minha cova!
—
Hã!? Mas o que…
—
A cova é minha, vamos, saia!
—
Onde estou? Não enxergo nada.
—
Anda logo, idiota, pula fora daí! Essa cova é minha!
—
Por favor, pode me dizer onde estou e quem é que está falando comigo?
—
Já disse, você está na minha cova! E eu sou o dono dela.
—
Como assim, na sua cova? Mas que droga, eu não sinto o meu corpo.
—
Como você é burro! Você está morto, palhaço!
—
Morto? Eu? Quem é você? Apareça!
—
Escuta aqui, hoje eu tô um nojo, não vou perder meu tempo falando com você,
vamos, cai fora daí, sai da minha cova, agora!
—
Tá, então me ajuda. Acende essa luz! Como que eu saio daqui?
—
E eu vou lá saber? Eu já teria te chutado daí faz tempo! Não teria ficado horas
aqui embaixo da terra esperando a donzela acordar.
—
Horas?! Há quanto tempo estou aqui?
—
Tempo o bastante para eu enjoar da sua cara amassada!
—
Foi você que me colocou aqui? Maldito!
—
Calma lá, meu cumpade. Eu jamais colocaria você na minha cova! Ela é minha! Só
minha! Escuta aqui, você está morto! Tá entendendo? Te enterraram, mortinho da
Silva, só o bagaço. Agora sai da minha cova!
—
Eu adoraria sair daqui, mas não posso! E que história é essa de que estou
morto?!
—
Sim, você está morto! E eu também estou, e essa cova era minha antes de te enterrarem
aí.
—
Tá certo! Cansei dessa palhaçada. Eu quero sair daqui!
—
Escuta bem o que eu vou te dizer. Eu estava descansando em paz, curtindo a
minha morte até você aparecer. Tiraram os meus restos mortais desta cova e eu
fui transformado em uma espécie de espírito, acredito eu, e agora eu estou
preso aqui no cemitério. Eu posso vagar por aí sem que ninguém me veja; posso
atravessar paredes, pessoas ou qualquer objeto sólido, inclusive, posso descer
aqui embaixo da terra, a sete palmos, que é onde eu estou agora enquanto falo
com você.
—
Estou realmente morto? Dentro de um caixão?
—
Mas será possível? Você é morto, não surdo! É o que eu estou te dizendo faz
tempo, vê se me ouve!
—
Socorro! Socorro!
—
Ninguém pode te ouvir, imbecil; ninguém além de mim.
—
Por favor, me explica como tudo isso é possível, estou enlouquecendo!
—
Pois então, eu acredito que essa cova é mágica, que esse pedaço de terra é
sagrado, por isso continuamos conscientes mesmo depois de mortos, apesar de não
conseguirmos nos mover ou respirar. Acho que essa cova armazena a nossa alma,
mas o corpo já era, logo você vai ouvir os vermes te devorando.
—
Então, isso é morrer? Ficamos conscientes dentro de um caixão, na escuridão,
sem se mover e conversando com os mortos? Por que você quer estar no meu lugar?
Você é maluco? Enquanto estou aqui apodrecendo, querendo sair, você tem a opção
de vagar pelo cemitério, ver a luz do dia, ver as pessoas.
—
Vem aqui ficar no meu lugar, seu desgraçado! Você acha que é fácil ficar
vagando por aí? É um esforço danado! É cansativo! É preciso força e técnica
para manter o corpo flutuando. Levei muito tempo para aprender isso! Quando
tudo isso começou eu desci direto pra debaixo da terra e não parava de cair;
caí tão fundo, mas tão fundo que levei horas pra controlar o meu corpo e poder
subir de volta à superfície. Agora, eu não tenho um segundo de paz, se paro por
um instante o meu corpo começa a descer, e se eu descer muito fundo posso ter
que passar uma eternidade procurando o caminho de volta. Você não tem noção de
como é extenso lá embaixo, parece não ter fim!
—
Nossa! Não imaginava que era tão ruim assim. Olha, sei que está nervoso mas, eu
não posso fazer nada, eu morri e fui enterrado aqui, não há nada que eu possa
fazer.
—
Tá, tá, já entendi, só preciso achar um jeito de te tirar daí. Quer um pouco de
luz?
—
Misericórdia! Não faz mais isso!
—
Ah! ah! ah! Assustei você?
—
Mas é claro, eu não esperava que fosse enfiar essa cara iluminada dentro do meu
caixão.
—
Ora, eu só quis me apresentar; sou tão feio assim? Devia ver essa sua cara
amassada.
—
Maluco! Faz alguns minutos que só enxergo a escuridão, e de repente me deparo
com esse seu rosto cheio de brilho, você me assustou; e que brilho é esse? Você
é mesmo um espírito?
—
Eu não sei, depois que fui expulso da minha cova fiquei assim, com esse brilho
azulado por todo o corpo; coisa ridícula, pareço uma fada zumbi.
—
Parece mesmo. Me responde uma coisa, por quanto tempo você ficou enterrado
aqui?
—
Alguns meses.
—
É… até que você ficou bem conservado; seu corpo não sofreu tanto durante esse tempo.
—
Maneiro, né? Olha o meu antebraço, não se assuste, tô colocando ele dentro do
seu caixão.
—
Uau! Realmente, está inteirinho, nem parece que é de um cadáver.
—
Pois é; e não é só o meu rosto e meu antebraço que ficou conservado, olha só
isso aqui.
—
Credo, que nojento! Tira isso daqui, seu pervertido!
—
Ah! ah! ah! Ficou ou não ficou conservado?
—
Você é muito idiota! Por que não vai dar uma volta e me deixa em paz?
—
É o que eu vou fazer, dar uma volta e pensar em como te tirar daí, cara
amassada.
—
Espera! Por que fica me chamando de cara amassada? Eu não tenho cara amassada.
—
Você não se lembra como morreu, né? Deve ter sido feio, hein?
—
Calma aí, eu lembro que estava pilotando minha moto e… bom, eu não me lembro de
mais nada.
—
Aí está, você sofreu um acidente de moto. Deve ter batido a cara em algum
lugar, e deve ter sido uma bela de uma pancada pra ficar com o rosto desse
jeito.
—
Estou tão feio assim?
—
Meu cumpade, se fosse eu aí no seu lugar e você enfiasse essa sua cara dentro
do meu caixão eu iria ressuscitar de tanto susto.
—
E você, espertão? Morreu como?
—
Não quero falar sobre isso. Continuamos nossa conversa depois. Já anoiteceu e
eu estou indo ver se algum gótico invadiu o cemitério; preciso assombrar
alguém, me divertir um pouco e sair desse tédio.
***
—
Ei! Cumpade, ainda está aí? Você não faz ideia da loucura que eu acabei de ver
lá em cima.
—
O que é? Vamos, desembucha!
—
Um doido pulou o muro do cemitério, desenterrou um corpo e começou a dançar
pelas sepulturas segurando o presuntão. Foi uma loucura! Você devia ter visto
que incrível! Mas o coveiro Tavares apareceu e acabou com toda a diversão;
velho chato!
—
O coveiro Tavares ainda está vivo? Quantos anos aquela múmia tem? O último
velório que eu estive presente foi há nove anos e aquele cachaceiro já estava
um bagaço.
—
Bagaço é pouco!
—
Era difícil distinguir quem era o defunto, o que estava dentro do caixão ou o
que cavava a sepultura.
—
Exato! Ah! ah! ah! E você sabia que Michele é um nome masculino na Itália?
—
Não sabia, e o que isso tem a ver?
—
Escuta essa, um italiano que vivia aqui na cidade morreu e foi enterrado neste
cemitério. Naquele dia houve dois velórios, e o coveiro Tavares ficou
encarregado de construir duas lápides. Ao fim do velório de Michele, o
italiano, levaram seu caixão até a sepultura onde ele seria enterrado; chegando
lá, uma surpresa! Ah! ah! Era uma cova minúscula, a lápide era cor-de-rosa e
com enfeites de ursinhos. O Velhote bebaço, como de costume, confundiu o nome
do italiano com o nome de uma garotinha que seria enterrada naquele mesmo dia;
dá pra acreditar nisso?
—
Minha Nossa Senhora! É cada história que eu escuto desse coveiro.
—
Eu também, mas ele é menos estranho que a antiga coveira.
—
Coveira? Eu nunca vi uma coveira.
—
Tá de brincadeira?! São tantas. Mas a que trabalhou aqui deu o que falar.
—
Me conta!
—
Calma lá, não sou contador de histórias, e não pense que eu já me esqueci que
você invadiu a minha cova! Não consigo entender por que enterraram você numa
cova que já tinha dono. Ou o coveiro Tavares estava doidão e fez mais uma
tolice, ou você sabia do segredo dessa cova, sabia que poderia continuar
consciente mesmo depois de morto e deu um jeito de ser enterrado aqui; e talvez
você saiba de mais algum segredo. Vamos! Me diga! O que mais você sabe sobre essa cova?
—
Já vai começar? Eu não sei o que eu estou fazendo aqui nessa porcaria de cova.
A culpa de tudo isso deve ser só sua! O que você aprontou em vida, hein? Alguma
coisa você fez e agora está amaldiçoado, pois isso aqui é uma maldição! O que
você está escondendo? Você nem quis me dizer como morreu.
—
Eu… eu… eu matei uma pessoa! Tá certo? Escondi o corpo no depósito de areia que
eu trabalhava; depois eu tive que comprar a parte da areia onde o corpo estava
escondido para ninguém o encontrar, levei tudo pra casa e despejei no meu
quintal. É uma longa história, mas, um espírito vingativo me assombrou por
alguns dias e então eu acordei aqui. Não sei como foi a minha morte, mas
agradeço por ter morrido porque eu não aguentava mais aquela assombração
infernizando a minha vida.
—
Que ótimo! Divido a cova com um assassino, só faltava essa.
—
Divide? A cova é minha! Não estou dividindo nada com você! Ladrão de covas, se
sou assassino você é um ladrão!
—
Cala a sua boca, seu imundo! Assassino!
—
Sai da minha cova!
—
Imundo! Assassino!
—
A cova é minha! A cova é minha! A co…
—
O que está acontecendo, que barulho é esse?
—
Xiii… pelo jeito vão te tirar daqui. Tá ouvindo? Estão cavando. Vou subir e dar
uma olhada.
—
Finalmente o coveiro Tavares percebeu que me enterrou no lugar errado. É isso
aí! Me tira daqui, seu velho!
—
Tenho uma má notícia. Não estão te tirando daqui, estão te substituindo.
—
Hã?!
—
Vão enterrar outra pessoa no seu lugar, como fizeram comigo. E tem mais, a
pessoa que está dentro do caixão é o coveiro Tavares; o velhote finalmente
bateu as botas.
—
Tanto faz, me tirando daqui é o que importa. Adeus, otário! Isso, me puxem,
vamos, mais rápido, mais rápido, não vejo a hora de sair daqui!
***
—
Fala, meu cumpade! Sentiu a minha falta?
—
Como isso é possível? Não! Não!
—
Agora você está igualzinho a mim. Não desequilibra, senão você começa a descer
pra debaixo da terra e eu não vou te buscar.
—
Eu virei um espírito igual a você? Não acredito nisso. Eu quero voltar pra
minha cova, quero a minha cova de volta.
—
Sua não, eu já disse centenas de vezes que a cova é minha. Agora você entende
que era melhor estar deitado lá, né?
—
Pois é. Temos que tirar o velho Tavares da nossa cova.
—
Vamos lá, ele já deve estar acordado. Eu fico com a orelha esquerda e você com
a outra, vamos atormentá-lo e expulsá-lo.
—
Ok!
—
Vamos lá, no três.
—
Um!
—
Dois!
—
Três!
—
EI, TAVARES, A COVA É NOSSA!!!
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