DANCE COMIGO ATÉ O FIM - Conto de Terror - Maycon Guedes
Maycon
Guedes
A
rua que acompanha o extenso muro do cemitério era o único caminho para chegar
em casa depois de um longo dia de trabalho. E foi nessa rua onde tudo começou,
enquanto eu caminhava e olhava para o interior do cemitério e via as figuras
disformes que se escondiam atrás dos túmulos, outras se escondiam atrás das
árvores secas que enfrentavam o inverno. Por três noites foi assim, espectros
atormentados e zombeteiros flertavam comigo durante minha caminhada noturna.
Certo dia, decidi parar para observá-los — grande erro, talvez! Me sentei em um
velho banco de madeira que ficava do outro lado da rua, de frente ao muro do
cemitério; naquele horário, perto das onze da noite, ninguém transitava por
aquela rua de terra úmida, e eu sozinho, naquela noite fria, tinha como
companhia - além daqueles espíritos — apenas o som do vento e dos jarros de
flores se quebrando ao cair dos túmulos. Eu contemplava as sinistras sombras
que vagavam pelo cemitério, algumas se atreviam a se movimentar até o muro,
outras mais ousadas vinham de encontro a mim, parando no meio da rua, evitando
se aproximar do banco onde eu estava sentado; era como se aquelas figuras
tentassem, de alguma forma, se conectar comigo. Nos dois primeiros dias que as
vi, acelerei o passo e evitava olhar para elas, mas naquela noite eu não senti
medo algum.
Meus pensamentos suicidas evoluíram naquele
momento, para mim, aquela era a hora certa de eu acabar com a minha vida e
terminar de vez com meu sofrimento; eu queria me juntar àquelas figuras, me
despedir do mundo e se tornar uma delas. De repente, graças ao forte brilho da
lua, enxerguei algo ao lado de um jazigo me observando e, assim que me levantei
para ter certeza do que eu estava vendo, a coisa retirou-se, flutuando
levemente para de encontro com a escuridão das sepulturas mais ao fundo. Por um
instante, eu tive a impressão de que aquilo se parecia com minha falecida
amada, morta há alguns meses depois de lutar contra uma terrível doença. Nos
amávamos muito, éramos os melhores dançarinos da região, e foi através das
aulas de dança que nos conhecemos; devemos todo o nosso amor à dança. Eu não
era mais o mesmo depois que ela se foi; eu sentia muito a sua falta naqueles
meus dias sombrios; eu faria de tudo para tê-la de volta, tudo mesmo! Lembrei
da nossa promessa, de ficarmos juntos e dançar “até que a morte nos separe”;
infelizmente, a morte veio e a dança acabou. Eu não tinha nada a perder naquela
noite, minha vida já não fazia muito sentido mesmo, e então, um louco
pensamento se apoderou de minha mente, fazendo-me ter mais coragem, uma coragem
tão grande a ponto de querer visitar meu finado amor que descansava naquele
cemitério. Talvez, a aparição daqueles espectros tivesse um propósito, me
convidar para entrar no cemitério e reencontrar minha amada. Decidi invadir
aquele local macabro.
Eu
não tinha certeza se o coveiro Tavares — aquele velho beberrão — estaria
vigiando a entrada do cemitério, por isso, decidi pular o muro o mais longe
possível da entrada para evitar de ser pego, já que àquela hora da noite era
proibida a permanência no local. Pulei o muro e em questão de segundos eu já
caminhava entre os falecidos. Enquanto eu andava pelos tristes corredores,
procurando a cova de meu amor, as sinistras figuras me acompanhavam; algumas
delas, fugazmente atravessavam meu caminho, outras, pareciam estar presas em
grandes jazigos com grades, tentando se libertarem em desespero. Eu sentia a
terra das covas sendo jogadas em meus pés; alguns jarros continuavam a cair no
chão, mas eu já estava tão acostumado com os barulhos que nem me assustava
mais; eu só queria encontrar uma pá, e não seria difícil, pois o coveiro
daquele lugar sempre deixa algumas espalhadas pelo cemitério, evitando de
voltar ao depósito caso esqueça de pegá-las. Não demorou muito e eu já estava
empunhando uma pá, me aproximando da cova que armazenava o lindo cadáver que eu
iria exumar.
Lá
estava ela, em um caixão barato coberto por terra; uma cova tão humilde e
pequena; somente terra e uma cruz de lata indicando o seu número, não o seu
lindo nome — Elizabete — somente um número. Olhei ao redor para ter certeza de
que o coveiro ou algum outro invasor não estavam por perto e comecei a cavar.
Nem precisei cavar muito fundo e logo senti o caixão com a pá. As malditas
sombras rodeavam o buraco que cavei em euforia, subiam nos túmulos vizinhos,
nas árvores, e pareciam emitir um tipo de som naquele momento, um som
indescritível. Com um pouco de esforço consegui abrir a tampa do caixão; me
veio aquela sensação de ansiedade e paixão, como quando eu contava os minutos
para ver Elizabete no início do nosso namoro. Com a tampa já aberta pude ver
seu rosto; o que fizeram com ela? Como que em tão pouco tempo ela pôde se
transformar naquilo? Me senti tão mal por tê-la abandonado naquele local para
ser maltratada daquele jeito. Me deitei um pouco ao lado de seu corpo putrefato
e com meu braço esquerdo a abracei, e com meus dedos fiz carinho em seu rosto
endurecido e gelado enquanto as lágrimas escorriam em meu rosto. De alguma
forma, eu ainda enxergava beleza em Elizabete, como não poderia? Era minha
esposa, e para mim, continuava bela mesmo naquele estado; eu pude sentir
naquele momento como era estar apaixonado de novo. Queria tanto que ela
acordasse e olhasse para mim, mesmo sabendo que não me enxergaria, pois seus
olhos já foram comidos, mas gostaria que ela inclinasse seu rosto na direção do
meu e me dissesse algo bonito.
As
estranhas figuras se aquietaram e ficaram nos observando, pareciam apreciar
aquele nosso momento amoroso, pareciam invejar aquilo que estava acontecendo.
Então, uma canção tocava não muito longe dali, uma canção tão interessante que
me fez levantar. A música era tão linda, o som do piano expressava notas muito
calmas e minimalistas. Em alguma casa não tão distante do cemitério, havia
alguém apaixonado, com seu aparelho de som em alto volume ouvindo aquela linda
canção. Eu não podia escutar muito bem a letra da música, mas consegui entender
algumas frases que aquele cantor, ou cantora, pronunciava: “Dearest, Lá Lá Lá
Lá, Don’t You Cry, It's All Right…”. Essas palavras se repetiam bastante
naquela linda canção, elas não me saem mais da cabeça até os dias de hoje.
Minha Elizabete iria adorar aquela música, iria adorar dançar comigo,
lentamente, bem juntinho de mim, e foi exatamente isso que eu fiz, a convidei
para uma última dança. Estendi a minha mão até a dela e tentei levantá-la
daquele caixão mofado mas não tive sucesso, parecia que seu corpo e o caixão
eram um só, carne e madeira unificados; usei as duas mãos para puxá-la e,
enquanto eu forçava, podia ouvir alguns estalos sem saber se eram os ossos de
Elizabete ou a madeira do caixão se quebrando enquanto desgrudava do corpo de
minha querida. Assim que consegui levantá-la, ainda dentro do buraco que cavei,
a agarrei com firmeza e conduzi a sua carcaça acompanhando o ritmo da música
que tocava, segurando aquele corpo quase que em fase de esqueletização. A cova
era estreita e comprometia a nossa dança, precisávamos de mais espaço.
Saí
do buraco carregando Elizabete, agora tínhamos um cemitério inteiro para
atravessar dançando, cantarolando baixinho a linda canção "Dearest… Mmmmm
It's All Right". Tínhamos uma plateia incrível, nunca dançamos para tanta
gente assim, apesar da plateia estar morta, mas eu não me importava, e nem
Elizabete, afinal, ela também estava morta, Ah! Ah! Ah! Ah! … me desculpe… bem…
atravessamos grande parte do cemitério dançando entre as sepulturas, e as
estranhas figuras nos acompanhavam, também em dança; era uma linda cena, tente
imaginar, Doutor, um vasto cemitério servindo de palco para dois amantes,
sombras se movimentando, vento e neblina, música tocando, era tudo tão
perfeito. Encostei Elizabete em uma parede, minha mão foi subindo de sua
cintura até chegar em sua costela — não se preocupe, Doutor, não vou relatar
nada explícito — então, eu senti uma casca grossa querendo se soltar da região
da costela; eu senti tanta dó, minha amada estava se desfazendo. Olhei para seu
rosto e pude ver que seus lábios faziam um leve movimento, comecei a acreditar
que ela diria algo, um "te amo", talvez, mas percebi que a bochecha
também fazia movimentos, e a testa, e o pescoço, que desgraça, o interior de
seu corpo estava infestado de bichos, se movimentando por todas as partes,
bichos esses que nem sei como nomeá-los; minha roupa também ficou infestada, e
eu assustado, larguei o corpo de Elizabete que caiu no chão como uma marionete,
inclinada para o lado esquerdo, deixando à mostra um arrombo no local de sua
costela onde os bichos escorriam até o chão. Nesse momento, caí de joelhos e só
pude chorar.
Eu
chorei feito uma criança, tão alto que devo ter acordado o coveiro Tavares, e
então, fui trazido para cá há alguns meses. Eu não me arrependo do que fiz
porque agora eu posso vê-la a todo instante, para sempre; agora mesmo ela está
parada ao seu lado, impaciente, esperando que o senhor vá embora logo para
continuarmos a nossa dança. Agradeço por ouvir a minha história; sei que
precisa visitar os outros quartos agora. Foi um prazer te conhecer, Doutor,
espero que a sua estadia aqui seja agradável e que possa adquirir muito
conhecimento. O senhor é tão jovem, e eu já devo ter dito isso, né? Não se
esqueça de empurrar bem a porta quando sair, está emperrada, e boa sorte com os
outros pacientes; alguns deles irão zombar de você, principalmente por ser os
seus primeiros dias aqui, mas logo eles vão gostar de você; o da sala trinta e
um é o mais agressivo, cuidado e até outro dia. Agora, se me der licença, irei
dançar com minha amada Elizabete, "Dearest, Close Your Eyes Now, Don't You
Cry, It's All Right, Lá Lá Lá, Don't You Cry, I'm Here".
❤
ResponderExcluirNão encontro o link para seguir o seu Blog, Maycon Guedes.
ExcluirOlá. Criei o blog agora. Estou arrumando ainda, tá bem minimalista, mas já pode ler algumas coisas ;)
Excluirhttps://contosdeterrordemayconguedes.blogspot.com/
que bizarro kkkkkk nunca vi nada parecido. Mas, uma boa historia pra dar medo.
ResponderExcluirValeu pelo comentário :)
ExcluirCaracáaaa
ResponderExcluirmaluco! Me arrepie com essa história, muito boa!
Fico feliz que tenha gostado. Tem mais uma história minha aqui no site. Se interessar, se chama "Te Aguardo Em Tua Sepultura"
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