O DIABO E O NATAL - Conto Sobrenatural - Emilio Vilaró
O DIABO E O NATAL
Emilio Vilaró
Tradução de Paulo Soriano
Certa tarde, o Diabo foi dar um passeio numa montanha longínqua a fim de meditar sobre um grave problema que tinha. Tão absorto estava que não percebeu que se tinha afastado muito da sua morada, o Inferno, e que aquele era o dia mais frio de todo o inverno.
Quando viu a tremenda nevada que o sepultava — e que, até então, não havia notado —, apercebeu-se do grave erro que cometera ao afastar-se tanto do calor do seu Interno. Mas era tarde demais.
Por mais que tivesse vivido e por mais sábio e Diabo que fosse, tantas vezes abandonara a sua casa que chegaria um dia em que ela não voltaria. Sempre se comete um primeiro erro e, hoje, o frio, o seu eterno inimigo, ainda mais velho do que Ele, finalmente, ao cabo de muitos anos, o derrotou.
*
—Senhor! Cuide de mexer-se, pois está congelando.
Ele não conseguiu responder, sentiu que o alçavam a uma prancha de madeira de arar e que um animal o puxa para uma casinha que já havia observado ao passar. Que humilhação para o Diabo encontrar-se numa situação destas!
Queria desaparecer, destruir quem o socorria, mas não conseguia se mexer.
Já dentro da casa, viu aquele que tentava salvá-lo: um garoto de tenra idade que, com muita força e vontade, o arrastava passo a passo à lareira doméstica.
O jovem lançou ao fogo os últimos troncos de lenha que restavam, algumas roupas velhas e quebrou cadeira para obter mais calor.
As chamas — suas grandes aliadas — começaram a devolver-lhe a vida. Mais preocupado do que nunca, ficou imóvel, sem saber o que fazer. Destruiria a casa, o garoto, a montanha inteira e esqueceria que isto — a Ele — pudera acontecer.
A vivenda era pequena, quase uma cabana, humilde, mas limpa.
Sentiu que lhe seguravam a mão com carinho e que lhe davam um doce de Natal.
Ia esmagar a criança e a casa. No entanto, a cálida mão do rapazinho na sua cabeça fez com que olhasse para ele e, graças aos reflexos do fogo, vislumbrou a cara mais carinhosa que alguma vez tinha visto. A expressão no rosto do menino que dizia “Vamos comer, o caramelo vai ajudar-te!” impediu-o de fazê-lo.
Comeu o doce e, enquanto o saboreava, retrocedeu milhares de anos até o tempo em que se lembrava que tinha uma alma. Nesse tempo longínquo em Ele amava e foi amado… e chorou.
Enquanto se recuperava, o rapazote, que estava à mesa, pôs-se a escrever numa folha de papel.
— Como é que o senhor se chama?
— Chamo-me Diabo. Por que queres saber?
— Hoje é Natal, sempre escrevemos com os meus pais alguma coisa para os nossos amigos que nos visitam, para recordar este dia tão feliz. Até agora, somente o senhor esteve aqui. Com este tempo, não creio que alguém mais venha. Como quase cada inverno, toda a montanha fica isolada e, por isso, a sua presença é a coisa mais importante que hoje aconteceu.
O fogo — agora abundante e que, para surpresa do garoto, mantinha-se sem a necessidade de acrescentar-se mais lenha — reanimou-o.
—E os teus pais?
— Saíram para trabalhar no campo esta manhã e à tarde vão ao cume da montanha buscar lenha. Como vê, pouca acha sobrou. Devem ter sido apanhados de surpresa pela tormenta, mas, como sempre, logo voltarão.
O Diabo, que tinha visto duas pessoas geladas abraçando-se à beira do caminho, perto da casa, aproximou-se para acariciar a cabeça do rapazinho, mas não teve coragem de fazê-lo.
— Sabes, meu jovem, como se chama a esta linda montanha? É ela encantadora, embora hoje me tenha pregado uma peça. Lembrar-me-ei sempre dela. Tem sido um adversário difícil.
— Chama-se Montanha Encantada. Ignoro por quê. O senhor tem chaminé em casa?
O diabo riu e, como há muitos anos não sorria, muito gostou de fazê-lo, pois era um gesto de que já se tinha esquecido.
—Sim, tenho uma e é muito, muito grande.
— É-me sempre difícil acendê-la; é como se as chamas temessem o fogo, pois quase sempre se apagam.
— O truque — disse o Diabo, agora em voz muito grave — é nunca deixá-las se extinguir…
Deu-se conta que sua verdadeira personalidade estava voltando e tomou uma decisão.
— Devo ir-me agora — disse.
Não deixou que de sua boca escapasse a palavra de nunca precisou, empregou ou quis usar: “obrigado”.
— Tome. Leve consigo o que escrevi — é sobre o senhor e sobre o que falamos — e mais outro doce para o caminho.
—Filho, de minha feita, não trouxe nada para te dar.
—Não se preocupes; talvez na próxima vez em que nos encontrarmos.
O Diabo abandonou a casa e foi-se embora.
Todavia, como não pôde evitá-lo, voltou-se. Através da janela, viu o garoto que, encostado ao vidro, acenava-lhe um adeus. Ergueu a mão e, com um gesto que tentava ser carinhoso, retribuiu.
*
Prometeu a si mesmo — ao ver o que Ele próprio, o Diabo, iria fazer — que esta seria a última coisa, contrária aos seus princípios e à sua natureza, que faria e que nunca mais repetiria.
Seguindo o caminho da montanha, nela subiu. No final da estrada, aproximou-se dos pais. Ali, apesar de todo o seu poder nesta questão da vida, Ele nada pôde fazer. Mas fez um acordo desvantajoso e humilhante, que preferiu esquecer, com alguém mais poderoso do que ele.
Depois, subiu até ao mais alto dos cumes, de onde se divisava a casinha e, através da janela, o seu fogo. Pegou cuidadosamente no papel e leu:
Hoje o Sr. Diabo visitou-nos no dia de Natal. Apesar do nome, é muito boa pessoa e não é da região.
Prometeu-me que, se um dia o destino me fizer voltar a vê-lo, Ele me levará a um lugar melhor do que a sua casa.
Ali permaneceu por mais um tempinho, até ver os pais aproximando-se da casinha. Pôs o doce na boca e saiu, mas não sem antes olhar de cima para toda a beleza que o rodeava, algo que nunca se permitira fazer. Pensou que jamais esqueceria o menino, o feitiço da Montanha Encantada, aquela casinha e, sobretudo, o fogo daquela lareira que nunca mais precisou de lenha.
Ilustração: PS/Copilot.
Este conto foi publicado originariamente, em português e espanhol, na revista Relatos Fantásticos. Para acessá-la, clique AQUI .
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