O BRACELETE - Conto Clássico Sobrenatural - Jean Marechal

O BRACELETE

Jean Marechal

(Séc. XX)

Tradução de autor anônimo do séc. XX



O bracelete fora devolvido, acompanhado de uma carta:


“Dou graças por ter contemplado um espelho no qual volto a encontrar a mim própria, conjuntamente com as minhas perdidas ilusões, dissipando as sombras de um porvir que me reservava mais penas do que alegrias. Não me sinto tão segura dos meus sentimentos para aceitar esse formoso presente, sobre o qual pesa a profecia do berbere”.


Suavemente, como se o grosso aro de prata lavrada fosse algo infinitamente ágil, o depôs na mesa, enquanto a sua outra mão se crispava sobre a mensagem daquela que amava: a mensagem de adeus. Não havia duvidas; se as poucas linhas, traçadas rapidamente, podiam ser equívocas, a devolução do bracelete não deixava nenhuma esperança. Uma mão invisível cerrou-lhe a garganta, enquanto o seu olhar vagava, sem ver, pela paisagem.

Da janela aberta, chegavam até ele os suaves murmúrios das palmeiras agitadas pela brisa, que vinha do mar, murmúrio que fez surgir, envolvendo numa aragem de ternura, a recordação do encontro, daquele impulso irresistível, que os havia impelido um para o outro e que ele cometera a loucura de crer definitivo.


*


Madalena... Que sabia ele da sua vida? Encontrara-a em Ajaccio, pouco depois da sua chegada, no bar do hotel onde se hospedara. A impressão que causara a sua beleza fez que quisesse saber quem era. No registro, leu um nome, que talvez não fosse o seu próprio. Seria casada? Divorciada? Mais tarde, ela não fez nenhuma confidência, e a sua altitude, cheia de reticências, impedia as perguntas que lutavam por sair da sua garganta, plenas de anelante veemência. Seguira-a sem hesitação ao salão de baile, onde, na semiobscuridade que reinava, estreitara-a contra si ao bailar de um tango. Durante os dias que se seguiram, viam-se diariamente e não teve forças para ocultar os sentimentos, que se agitavam em sua alma e que supunha correspondidos, apesar de que ela não cessava de aparentar uma indefinida impressão de ausência e que o seu enigmático sorriso não parecia ser inteiramente seu. A causa dessas reservas não quisera precipitar, contentando-se em demonstrar o seu amor em todos os seus atos. Até que, uma tarde, ela consentiu em acompanhá-lo a sua casa; acreditou, emfim, ser correspondido.

Madalena... Via-a ainda estendida sobre o divã, cujos coxins não souberam guardar as formas do seu corpo divino. Imaginava ver o reflexo dourado de sua ruiva cabeleira e a expressão dos seus grandes olhos cinzentos, carregados da nostalgia que ele cria ser ternura. Entrara em casa com a despreocupação de sempre. O seu olhar examinou-a toda com rapidez e fixou logo o bracelete, que estava sobre a mesa. Aproximou-se, tomou-o, examinou-o um segundo e deslizou-o no seu punho, com um sorriso.

— É um aro simbólico, Madalena, um bracelete de noivado — disse ele, sentindo-se audaz e esperançoso.

Ela o interrogou com o olhar. Ele a olhou por sua vez e depôs logo um terno beijo no aro. Depois a conduziu novamente até o divã, onde fez apoiar a sua cabeça nos suaves coxins.

Ela deixou-o fazer, como a uma menina a quem se trata de fazer dormir, e ele sentara-se ao seu lado.

— Um anel de esponsais que quase me custa mui caro — continuou, numa voz que tremia de ansiedade. — Foi na Argélia, quando era oficial da reserva. Estávamos num período de manobras e nos internamos na região montanhosa dos berberes, onde acampamos sob tenda. Não a enfado com a minha história, Madalena?

Um movimento negativo de cabeça e aquele sorriso enigmático, que tanto o inquietava, responderam.

— Uma tarde, encontrava-me perto dos poços onde as mulheres vão buscar água, quando vi no braço de uma delas dois braceletes. O que leva você e outro mui parecido. Minha esposa ainda não morrera e pensei que poderiam agradar-lhe aquelas raras joias. Pedi à mulher que os vendesse, porém sorriu movendo a cabeça. Não estavam à venda. Meu desejo de possuí-los fez-se mais forte com a sua negativa.

“— Meu preço será o teu — disse-lhe.

Então, fitando-me de um modo às vezes provocativo e terno, respondeu, balançando a mão:

“— Que dirias tu si eu te pedisse a tua aliança? O bracelete é a minha aliança. Não posso vender sem meu marido querer.

“Carregou o pesado cântaro sobre os ombros e foi-se com os passos cadenciados, dos que andam com os pés nus. Pouco depois a vi voltar, acompanhada de um gigantesco berbere, que cravou em mim os seus olhos.

“— Tens sorte de ser francês — disse-me com voz colérica. — Senão… Mas lutei pela França. De onde vens?

“— Da Córsega — respondi.

“— Da Córsega? Mentes. Com teus olhos azuis e teus cabelos ruivos não podes ser da Córsega. Não importa... Porém, não sabes que se Aicha te houvesse dado o bracelete, eu te mataria? Esse aro, eu o pus no dia do nosso noivado. O outro na noite da nossa boda. São garantia da sua fidelidade.

“Depois de um silêncio, disse bruscamente:

— Por quanta o compras?

“Seguiram-se grandes regateios, sem os quais nenhum muçulmano se sente satisfeito e, enfim, feito o acordo no preço, retirou o bracelete do punho de Aicha, beijou com fervor o lugar onde estivera e estendeu-me:

“— Que a mulher a quem o destinas seja tão fiel quanto Aicha — disse com uma ameaça na voz. — Senão, trará desgraça.”

Quando acabou a sua narrativa, o jovem guardou silêncio, olhando Madalena, que brincava distraidamente com o aro de prata. Esperava com ânsia uma palavra dela. Uma palavra que não chegou. Não podendo suportar mais aquela tensão, levantou-se, tratando de armar-se de coragem.

— Não queres aceitar o bracelete de Aicha, Madalena?

Ela não respondeu e continuou fazendo girar o aro em torno do punho. O tiquetaque do relógio ritmava a ansiedade do homem, que não ousava pronunciar uma palavra. Sentia uns impulsos loucos de tomá-la em seus braços, de oprimi-la contra o seu peito e de beijar esses lábios enigmáticos. Contudo, havia algo que o continha, algo que não conseguia precisar, porém que era mais forte do que o seu desejo.

—Sua esposa usava este bracelete?

— Oh, sim! — conseguiu balbuciar, sobressaltado pela voz da amada. E, já refeito:

— Ela o apreciava muito. Pusera-o no dia em que morreu no acidente de automóvel.

—Então, não ia você com ela?

—Não, eu estava em viagem. Um dos meus amigos levara-a a uma excursão. Gostava muito de passeios de auto.

— É tarde… — disse Madalena levantando-se e sorrindo enigmaticamente. Até logo…

*


Durante os dias que se seguiram, não voltou a vê-la e agora…

Tomou o papel enrugado, alisou-o e tornou a ler. Seus olhos se detiveram na última frase, como se já compreendesse: “sobre o qual pesa a profecia do berbere”. Então a sua mulher… Um frio atroz atravessou-lhe a alma como um punhal. Cerrou os olhos para não ver a luz que se fizera nele, deixando-se cair no divã, o rosto oculto entre as mãos…


Fonte: “O Malho”/RJ, edição de abril de 1940.

 

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