OS OLHOS FECHADOS - Conto Clássico de Suspense - Pierre Vernou
OS OLHOS FECHADOS
Pierre Vernou
(1865 – 1927)
Tradução de autor desconhecido do início do séc. XX
Gosto desta casa de arrabalde, que aluguei há trés meses. É isolada de todas as demais habitações e os ruídos da vida, que se agitam em torno de mim, só chegam aqui longínquos, enfraquecidos e misteriosos.
Neste úmido outono, o perfume das folhas mortas vem pelas janelas abertas e enebria-me, de envolta com o relento capitoso dos crisântemos, que florescem ao longo da estrada, apenas perturbada pelas emanações fortes de resina dos grandes pinheiros, erguidos à beira-mar. Neste sossego, eu sinto melhor a tranquilidade de minha cegueira. Parece-me que já conheço o número e a forma das árvores que me rodeiam. Tenho-as apalpado, uma a uma, e os pardais, que chilreiam em torno de minha casa, hão de acabar por conhecer e não temer o cego que passa todos os dias junto deles.
Eis minha vida regulada como eu desejava.
Ninguém em torno de mim. De manhã, vem a criada trazer-me os alimentos, arruma a casa, volta à tardinha e deixa-me tranquilo até o dia seguinte.
Um amigo veio visitar-me e disse:
— Não deves viver aqui sozinho. Esta casa tem aparência e parece abandonada. Os ladrões podem visitar-te.
— Não tenho medo.
*
Tocaram a campainha esta manhã. Eram nove horas.
Segundo o meu hábito quando não se anunciam, não respondi. Bateram de novo e, encostado à janela, ouvi a mão de um homem, que tentava dar volta à maçaneta da porta.
À tarde, repetiu se a manobra. Querem ver que meu amigo tinha razão? Quando senti a noite, meus nervos ficaram um pouco excitados, mas isso pôde ser da névoa muito fria e do ruído monótono das folhas que caem mais pesadas de umidade.
Não saí. Fechei, cuidadosamente a porta e fiquei em meu quarto, tiritando um pouco. Valerá a pena fazer fogo na lareira? Mas, para isso, teria que descer novamente, e o cansaço entorpece-me todo e pesa-me sobre o cérebro. Tenho preguiça até de pensar. Corro os dedos sobre as páginas de um livro gravado para os que, como eu, não têm olhos.
É um conto de Barbey d'Aurevilly, fúnebre e desolador…
…Mexeram na porta do jardim. Foi um ruído muito fraco, imperceptível quase, mas que me fez estremecer, como se todo um bando de salteadores invadisse minha morada. Sim… Agora caminham na areia da alameda, que conduz à escada. Caminham sem cerimônia, sem precauções: os passos estalam nitidamente sobre o cascalha fino… Agora um objeto metálico arranha as molas interiores da fechadura. É a visita indesejável que meu amigo anunciara.
Continuo imóvel e ouço o rangido leve da porta girando sobre as dobradiças e, logo, passos abafados circulam, rápidos, sobre o ladrilho do vestíbulo, espalham-se pela sala de repouso e biblioteca. Há exclamações de alegre surpresa. Pudera!… Naturalmente, encontraram no vestíbulo minha coleção de medalhas, que deve ser para tais criaturas um belo achado.
São dois. Não ouso negar que o medo faz-me passar pela espinha dorsal um arrepio gelado. Não tenho uma só arma ao meu alcance. De resto, para que serviria ela? Que pode valer o melhor revólver na mão de um cego? Há no vestíbulo uma panóplia de espadas e punhais japoneses; mas como chegar a eles? E, principalmente, como utilizá-los sem ver ?
Entretanto, superior à inquietação que me invade, vai surgindo em mim um sentimento de repugnância e horror por esses animais humanos, que se introduzem como larvas no interior de minha casa, que maculam, com seu contato odioso, todos os objetos de minha intimidade, que passam às mãos de bandidos, mãos criminosas, sobre o que é meu, só meu. Oh, sim, o ódio que me inspira essa gente é mais forte do que o terror! É preciso castigá-los ferozmente, para que os outros lobos, seus irmãos, conheçam também o medo.
Sobem. Um degrau moveu-se sob um pé. Outro estalido. São dois, pouco importa. A escuridão protege-me. A luz de que eles mais precisam deve estar nas mãos do que vem à frente. Espero que ele a descanse em algum lugar. Oculto-me por trás de uma cortina. Era tempo. A porta de meu quarto abre-se e eu ouço a respiração precipitada e curta de dois homens.
A lanterna tine sobre o mármore de um consolo a meu lado e os dois curvam-se, encarniçando-se para forçar as gavetas da escrivaninha. Ei-las abertas: os miseráveis murmuram termos grosseiros no desengano de encontrá-las vazias.
Estendo, cautelosamente, a mão direita. Ah, cá está a lanterna! Um gesto brusco e ela é atirada ao jardim, através da vidraça rebentada com fragor.
Um grito, uma praga e, no silêncio que caiu de novo, subitamente a respiração daqueles homens revela susto intenso.
Preciso agir, imediatamente, porque já os dedos nervosos de um larápio palpam a algibeira em busca de fósforos. O outro vem ao longo das paredes procurando orientar-se. Invisível e mudo, adianto-me rapidamente e, com a visão interna que a natureza concede aos cegos, minhas mãos não hesitaram em encontrar um pescoço, onde o sangue bate com precipitação cobarde.
Que horror! Como é desagradável a sensação de carne esmagada, das artérias rijas, que cedem pouco a pouco, sob meus polegares. Deus me perdoe!… Mas que havia eu de fazer?
Houve um grito breve, rouco, medonho. Os brados do homem erguem-se para me enlaçar; mas era tarde. O outro, adivinhando a cena horrível, bate alucinado contra os móveis em busca da porta, que encontra e atira contra a parede, precipitando-se pela escada. Seus pés falham o primeiro degrau e o corpo rola pesadamente.
Corro, também, atrás dele. Nada pode deter meu passo. Conheço os degraus um a um; tenho a consciência perfeita da altura e distancia de todos os recantos e curvas em minha casa, tantas vezes percorrida. Chego a tocar o miserável, que foge quando alcança o jardim; toco-o somente para que precipite a fuga. Não vale a pena persegui-lo: o castigo do primeiro será suficiente.
E, encostado ao batente, eu o vejo galopar entre as árvores que evito, sem hesitação, todos os dias, em meus longos passeios.
Volto ao meu quarto para esperar que venha o dia e que passem na estrada os primeiros operários. Que noite, meu Deus! Com esse cadáver a meu lado e os dedos tão magoados… Quanto tempo ficarão eles doloridos assim?...
Fonte: “Eu Sei Tudo”/RJ, edição de janeiro de 1919.
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