ELA - Conto de Terror - Rodrigo Cesar Picon de Carvalho
ELA
Rodrigo Cesar Picon de Carvalho
Jamais me olvidarei das lembranças
daqueles momentos tortuosos. Sempre que fecho o olho, vem à minha memória flasbacks lembrando o que passei. Posso
estar louco – possivelmente estou; mas não há como negar que qualquer ser, que
tivesse o mínimo de lucidez em suas mentes, não ficaria. Caro leitor, não me
julgue antes de entender a minha história e os motivos pela qual estou aqui,
preso neste local escuro e sombrio, tachado por todos como louco. Passo agora a
escrever os fatos que me levaram a ser encarcerado neste hospital psiquiátrico
e, certamente, você entenderá o que aconteceu comigo.
Era
maio de 2005. Na época, eu tinha acabado de me mudar para Lavras, uma cidade no
interior de Minas Gerais. Eu tinha 19 anos na época e meu irmão tinha 21.
Mudamos para aquela cidade por causa de meu pai, que havia sido mandado para lá
por causa de seu emprego. Talvez não fosse tão ruim, eu pensava na época.
Lavras era uma cidade maior que a minha, com maiores opções para curso na
faculdade. Fora que lá poderia começar uma nova vida, do zero, longe de todo o
passado.
Estávamos
felizes. Queria logo explorar a cidade, conhecendo-a, mas meus pais me
proibiram, por ser sábado e não demoraria a escurecer. Fiquei parcialmente
desapontado, mas não me incomodei muito.
Mudamos
para uma casa de esquina na rua de entrada da cidade, no segundo cruzamento à
direita, logo acima da rodoviária. Era uma casa parcialmente velha, com o teto
de forro carunchado. Possuía um jardim frontal, uma garagem, a sala
introdutória, um pequeno corredor com o banheiro, uma sala central, com dois
quartos à esquerda e o quarto maior, à direita, com uma suíte e, ao fundo, copa
e cozinha. Havia uma pequena área de lavandeira à direita e outra maior à
esquerda. Ao fundo, um grande terreno irregular, com árvores e mais alguns
cômodos e outro banheiro.
Chegamos
a Lavras após uma viagem de uma hora e meia pela BR-265, por volta de 1 hora da
tarde. O Sol estava fraco e o ar ameno da cidade nessa época do ano já dava os
sinais do frio que faria naquela noite. Começamos a esvaziar o caminhão de
mudança. Adentrei no local e logo já escolhi o meu quarto — o primeiro. Já
passei a colocar as minhas coisas no meu novo quarto.
Por
volta das 4 horas da tarde, o caminhão da mudança já estava completamente
vazio. Aproveitamos o momento para tirarmos diversas fotos em frente à nossa
nova casa, para fazermos o nosso “primeiro, de muitos álbuns, na nossa nova
vida”, como disse minha mãe – tiramos foto minha com meus pais; depois, estes
com meu irmão; meus pais sozinhos; eu com o meu irmão, e por aí em diante. Só
paramos de tirar fotos quando o filme da máquina acabou.
Após,
entramos novamente na residência para começarmos a abrir a caixa.
Vivemos
uma bela primeira semana em Lavras. Eu arrumei um emprego em uma das lojas do
comércio central, enquanto já estava de olho no próximo vestibular da UFLA, a
universidade federal da cidade. No fim de semana seguinte, minha namorada, Ana
Laura, veio me visitar e conhecer minha nova residência. Achou a cidade
maravilhosa. Aproveitou o comércio local para comprar o máximo que pôde. À
noite, fomos a um restaurante local e desfrutamos de uma deliciosa pizza
servida em um estranho barquinho de papel.
Chegamos à minha casa por volta da 1 hora da
manhã. Adentramos em total silêncio na residência. Abri a porta da sala e
caminhamos pelo interior da residência, totalmente escura. Laura ficou na sala,
à procura de suas roupas de dormir para se trocar – era lá que ela iria dormir,
por causa do conservadorismo de meus pais. Enquanto isso, caminhei em direção
ao meu quarto, a fim de igualmente trocar de roupa.
Repentinamente,
eis que escuto um barulho de panelas caindo no interior da cozinha. O silêncio
total do ambiente fez com que eu me assustasse.
—
Amor? — perguntei, em voz alta. Não obtive respostas. Caminhei em direção à
porta do quarto. – Amor?
— Oi? —
respondeu Ana Laura. Para minha surpresa, na sala.
— Foi
você que derrubou as panelas? — perguntei, mesmo já sabendo da resposta.
— Não.
Achei que fosse você quem derrubou – respondeu Laura. Senti, em sua voz, um
leve sentimento de medo.
Mesmo
com o receio, caminhei em direção ao interruptor da sala principal. A luz desta
iluminaria a cozinha, pois a divisória entre ambas é um balcão de pouco mais de
um metro e meio de altura. E assim ocorreu. Liguei a luz e esta iluminou a
cozinha. Todavia, naquele instante, visualizei momentaneamente aquilo que seria
o meu maior pesadelo e o motivo pelo qual estou aqui neste exato momento...
“ela”. Vou chamá-la de “ela” por não ter outra definição melhor para
chamá-la... poderia ser fantasma, monstro, capeta, qualquer coisa, mas acho que
“ela” “a” define.
A
verdade é que, assim que liguei a luz, momentaneamente eu “a” vi, antes de
dissipar. Ao visualizá-la, soltei um grito abafado, tamanho o susto. Fiquei ali
paralisado, tamanho o susto. Ana Laura veio ao meu encontro.
—
Descobriu o que era?
— Um
bicho, eu acho. Não deu para ver direito — respondi. Não quis contar a Laura a
respeito “dela”. Mas era certeza que aquele acontecimento mudaria por completo
minha vida.
Naquela
noite, eu não consegui dormir. Apenas fiquei com o rosto “dela” em minha mente.
Aquele rosto humano. Aquele olhar demoníaco. Qualquer barulho na casa me
acordava. Um móvel estralando. Meu irmão acordando para ir ao banheiro. Qualquer
barulho. Mesmo.
Os
dias se passaram desde a aparição “dela” naquela noite de sábado. A priori, foi a “sua” primeira e única
aparição em minha residência. Ana Laura foi embora para sua residência no
domingo, dia 22, e continuei a viver minha vida naturalmente.
Duas semanas se passaram como um raio. “Ela”
não apareceu novamente para mim desde então e eu comecei a esquecê-“la” com o
dia a dia na nova cidade.
Entretanto,
na quarta-feira 8 de junho, eu estava descansando em casa. Meus irmãos haviam
saído de casa cedo e meu irmão estava na universidade – ele transferiu de nossa
cidade. Estava deitado no sofá assistindo TV quando, repentinamente, eis que eu
escuto um barulho oriundo do interior do meu quarto. Levantei em um só pulo.
Meu coração começou a pulsar violento no peito. Caminhei vagarosamente em
direção ao meu quarto, pé a frente de pé. O barulho aumentava à medida que eu
chegava perto. Com o coração quase pulando do peito, virei em direção à porta
do meu quarto. Sobressaltei-me. Era “ela”!
“Ela”
se encontrava dentro do meu quarto, à frente do meu guardarroupa, que se
encontrava aberto, lançando minhas roupas ao chão. Olhou para mim com aqueles
olhos demoníacos, enquanto eu me encontrava completamente paralisado, tomado
pelo terror.
“Oláááá”,
ela disse, com uma voz arrastada e sombria. Os pelos do meu pescoço eriçaram
instantaneamente; senti um terror que nunca senti antes. “Ela” estava
conversando comigo!
Andei
para trás, lentamente, sem deixar de fixar o olhar “nela”, só parando quando
esbarrei minhas costas na parede logo atrás de mim.
“O que
quer comigo?”, perguntei. Não queria ouvir “sua” voz novamente. Sentir o terror
da sua voz foi a pior sensação já vivida por mim até hoje.
“Voooooocê”,
ela respondeu. Congelei-me momentaneamente. Meus braços tremiam
involuntariamente. “Como assim, eu?”, essa pergunta começou a martelar
continuadamente no interior da minha mente. “Meu Deus. Como assim? Como assim?”
Repentinamente,
eis que escuto a porta da sala abrir. Senti o coração apertar no peito, mas
aliviei quando escutei meus pais conversando animadamente. Disfarcei o que
estava acontecendo e saí da frente do meu quarto. Percebi-o vazio. Meus pais
encontraram comigo e postaram a conversar. Fingi interesse. Fingi estar rindo.
Dentro de mim, entretanto, uma dúvida martelava continuadamente no meu âmago:
“O que está acontecendo?”
Aquele
oito de junho mudou minha vida. Desde então, as aparições “dela” passaram a ser
frequentes. Passei a vê-“la” diariamente, praticamente; de dia, de noite,
sozinho, principalmente. “Ela” sempre se encontrava no meu quarto, ou nos seus
arredores. Eu passei a evitar ficar dentro de casa o máximo de tempo possível,
queria ficar o tempo todo na rua, ou do lado de fora da residência. Apenas
adentrava em casa ao escurecer – caso não estivesse na rua – ou para comer.
Queria trocar de quarto e passei a ficar agressivo. Meus pais estranharam o meu
comportamento. Acreditaram que foi por causa da mudança, da nova cidade e da
nova vida e me deixavam quieto, na esperança de que, com o passar do tempo,
tudo voltaria ao normal. Mas eu queria apenas que “ela” fosse embora! Somente
isso, e minha paz voltaria.
Os
dias foram passados, como as águas passam sob a ponte. Ana Laura voltou a me
visitar no meio do mês de junho, após os meus pais telefonaram para ela
avisando da minha mudança de comportamento. Esta veio na tentativa de me
acalmar e me fazer mudar o comportamento. Porém, o que ocorreu não me fez
acalmar... pelo contrário, só piorou minha angústia.
Era sábado.
Meus pais e meu irmão haviam saído, deixando-me sozinho novamente. Ana Laura
estava comigo. Assistíamos deitados no sofá a um engraçado filme de comédia. Em
um dado momento, começamos a nos beijar ardentemente, após trocas de olhares
românticos. E ficamos ali, sobre o sofá, beijando-nos. Repentinamente, após
desvencilhar-me momentaneamente dos lábios de Laura, fitei-me o seu rosto,
apaixonadamente. Todavia, assustei-me. Meu coração foi à boca. Dei um grito
abafado e afastei-me tão atrapalhadamente que caí no chão. Eu “a” vi! Por um
momento. Eu tenho certeza. No rosto dela eu “a” vi!
Desesperada,
Ana Laura perguntou o que aconteceu. E com razão! Ela percebeu a minha cara de
assustado. E o que eu deveria responder a ela? Que “ela” existe? Eu seria
tachado como louco. Não posso.
Tentei
bolar alguma resposta convincente, mas não consegui. Nem bolar, nem falar, de
tão paralisado eu estava. Laura percebeu que eu estava tremendo e com rosto de
amedrontado e desceu do sofá, abraçando-me e me consolando.
Após a
aparição “dela”, saímos. Não disse nada a Ana Laura sobre o que aconteceu e
quase não trocamos palavras. Provavelmente Laura acreditava que fez algo de
muito ruim para me assustar daquele jeito. Coitada! Mas não poderia contar a
ela a verdade.
Caminhamos
pela cidade até a Praça Dr. Augusto de Lima, uma das, ou talvez a principal,
praças de Lavras. A praça se encontra no centro da rua, cercada de asfalto
pelos lados. É bastante arborizada e sua entrada estava cercada pelos dois
lados por palmeiras imperiais. Na Augusto de Lima se encontrava um grande
número de bancos, além de bares e restaurantes. Fomos a um deles. Ficamos lá
até por volta de onze horas da noite, quando subimos – era longe de casa, não
arriscaria atravessar uma boa parcela da cidade de madrugada. Chegamos a minha
casa, assistimos um pouco de TV junto de meus pais e fomos dormir.
Em um
determinado momento, acordei. Acreditei que já era dia, mas tudo ainda estava
escuro. Acendi a luz do meu quarto e fui ao banheiro. Quando saí do recinto,
escutei um barulho oriundo do interior da sala. Parecia um objeto batendo, de
um lado para o outro, em locais duros.
“Laura?”,
perguntei, em um tom de voz mínimo. Não obtive resposta. Com passos vacilantes
e lentos, caminhei até o local. Ao visualizar toda a cena, sobressaltei-me.
“Ela”
empurrava Laura de um lado ao outro, batendo sua cabeça nos sofás laterais.
“O que
está fazendo?”, perguntei. Fiquei com receio da resposta, mas não poderia
deixá-la matar minha namorada na minha frente.
“Ela”
virou para mim novamente, mostrando-me o seu olhar demoníaco. Seu semblante
estava furioso – o que a deixou mais demoníaco.
“Vocêêêê
é meeeeeu!”, ela me respondeu, gelando minha espinha. Não apenas pela voz
demoníaca, mas pelas palavras proferidas por ela. Estagnei no local. Como
assim, “você é meu?”. “Eu pertenço a ‘ela’?”. “‘Ela’ me quer?”
Novamente
não consegui dormir. Aquelas palavras “dela” ecoaram em minha mente por toda a
noite. Deitado sobre a cama estremecia involuntariamente. Rezei apenas que a
luz do dia seguinte logo chegasse.
Tão
logo a luz adentrou no interior do quarto, despertei. Aliás, despertar não.
Apenas abri os olhos apenas; desperto eu estava, pois jamais adormecera.
Levantei da minha cama e postei a caminhar em direção à saída do meu quarto,
cambaleante, sonolento.
Ouvi a
voz de Ana Laura. Conversava com alguém, que se encontrava no interior da
cozinha. Percebi-a narrando uma forte dor de cabeça, além de um grande galo que
apareceu na região de sua têmpora esquerda. Logo acreditei se tratar dos fatos
ocorridos na noite anterior. Mas não quis contar a ela o que, de fato,
aconteceu. Queria apenas verificar se ela estava bem.
Já me
encontrava ao lado da porta do meu quarto quando, repentinamente, percebi algo
na minha cômoda. Algo estava diferente nos meus portarretratos. Mais
precisamente, em quatro deles. Os rostos de Ana Laura nas fotos contidas nos
portarretratos sobre a minha cômoda estavam rasgados. No mesmo instante, chamei
a todos os presentes para verificarem o que havia acontecido. Vieram minha mãe
e Laura, que ficaram estupefatas com o ocorrido. Por mais que eu imaginasse que
aquilo era obra “dela”, fingi desconhecer quem foi o causador daquele
incidente.
Todos
ficaram preocupados. Principalmente Ana Laura. Principalmente por estar com um
galo gigantesco na cabeça que adquiriu enquanto dormia. No mesmo instante em
que minhas fotos com ela foram rasgadas.
Naquele
dia, não saímos. Ficamos em casa o dia inteiro, amedrontados com a situação. Só
saímos quando precisamos deixar Laura na rodoviária. E, naquele instante, eu
percebi, com o canto do olho, “ela” na janela do meu quarto, fitando-me
incessantemente.
Eu
estava sentado na varanda de minha residência, em um clássico dia de começo de
inverno. Lá fora ventava uma fria brisa. Lia os classificados de um jornal
local, à procura de um novo emprego – já que eu perdera o anterior, devido à
confusão mental que me encontrava. Pessoas passavam continuadamente pela frente
da residência, até que uma delas, ao me fitar no interior da residência,
perguntou, dirigindo-se a mim, em voz alta:
“Olá.
Você é o novo morador dessa casa?”
No
instante em que escutei as perguntas da mulher, fechei o jornal e a fitei. Era
uma mulher de certa idade, de pele negra e cabelos baixos.
“Oi,
tudo bem?”, eu respondi, tentando ser amigável. Não queria conversar. “Sim, sou
sim.”
“Que
legal. E estão gostando da casa?”
Veio,
instantaneamente, um flashback em
minha mente “dela”. Senti um calafrio no corpo e deixei transparecer em meu
semblante.
“Sim,
estamos sim”, respondi, forçando um falso sorriso.
“Hum...”,
disse a mulher, pensativa. “Eu trabalhei nesta casa, anos atrás.”
“Ah...
legal”.
“Moravam
um casal de senhores e eu era a empregada doméstica de ambos. Cuidava da casa e
dos senhores. Então eu conheço bem a residência”. Eu fazia força para escutar o
que a mulher dizia. Não estava nem um pouco interessado em saber a história
dela para com esta casa, entretanto, não pude deixar de demonstrar interesse
quando a mulher disse que conhecia bem a residência.
“E o
que aconteceu com os senhores?”
“Estes
senhores tinham uma neta, que vieram a morar com eles anos atrás. 15 ou 20 anos
atrás. Ela morava em Ribeirão Vermelho, uma pequena cidade próxima a Lavras, e
veio para cá para estudar na Universidade Federal da cidade. Porém, em um dia
qualquer, enquanto voltava a pé da UFLA, ela foi atacada por dois homens na
parte deserta da Perimetral, onde foi estuprada. O Inferno foi estabelecido
dentro desta residência. Os senhores, sabendo do que aconteceu, trancaram-na no
interior do seu quarto, não a deixando sair dia algum. Nem eu pude adentrar no
quarto, para auxiliá-la. Ela ficou o tempo todo no interior do quarto, fitando
pela janela a rua. Enquanto isso, marido e mulher começaram a brigar
continuadamente, a ponto de determinada vez o homem esfaqueou sua esposa após
um acesso de raiva e, em seguida, acabou por falecer, vítima de ataque
cardíaco. Neste instante, pensei que a neta deles estaria livre do cárcere
maldito. Abri a porta. Entretanto, ela já não estava mais viva. Após dias sem
comer ou dormir, ela sucumbiu parada em frente à janela do quarto.”
Eu
fiquei estarrecido. A história dos antigos moradores desta residência era
demoníaca. A neta foi estuprada covardemente por dois homens e foi trancafiada
dentro do quarto, sem comer nem beber. O avô foi um covarde, igual aos
estupradores. Coitada dela...
“Essa
história realmente é terrível.”, continuou a mulher. “Desculpe-me se lhe deixei
assustado.”
Mas
não prestei atenção a nenhuma palavra proferida pela mulher. Estava absorto em
meus devaneios. Com toda a certeza do mundo, a neta destes senhores é “ela”. O
quarto “dela” provavelmente é o meu, já que é o único que dá para ver a rua.
Isso explica o porquê de eu sempre vê-“la”... mas, por que os dizeres “você é
meu?”
“Bom,
estou indo”, disse a mulher. “Se cuida, e prazer em conhecê-lo”.
“Igualmente”,
eu respondi, apenas.
Saber
da história “dela” me fez enxergá-“la” com outros olhos. Talvez “ela” não fosse
tão demoníaca e assustadora como imaginei. Talvez... “ela” fosse apenas uma
pessoa que sofreu nas mãos de tantos demônios, que se tornou um... Comecei a
ter pena e compaixão “dela”. Mesmo que “ela” continuasse a me aterrorizar com
suas aparições repentinas, cada vez mais frequentes.
Certa
vez, eu dormia tranquilamente em meu leito quando senti um agradável afago em
minha cabeça. Uma macia mão acariciava o meu couro cabeludo gentilmente e mexia
docemente em seus cabelos, acalmando-me. Senti-me mais relaxado, com o corpo
tomado pela endorfina e quase voltando ao sono profundo. Eu estava extasiado,
de tão boa as carícias. Todavia, dei-me conta, lentamente, de que era uma mão
feminina que me acariciava. Ana Laura,
pensei primeiramente. Porém, lembrei-me que Laura se encontrava em minha cidade
natal, a 100 Km de Lavras. Não era Ana Laura com toda certeza. Abri os olhos,
para identificar quem estava a me acariciar. Sobressaltei-me, quase me jogando
na parede do lado oposto. Era “ela”! Estava ajoelhada na cabeceira da cama,
apoiando a cabeça sobre o colchão.
Junto
ao sobressalto, veio um grito, que ecoou pelos quatro cantos da residência. Era
sete horas da manhã e todos se encontravam ainda repousando. Com o meu grito,
não estavam mais. Estavam todos de pé, assustados, correndo em minha direção.
Fitaram-me encolhido e encostado na parede. Na minha frente, nada havia...
Todos
me julgaram, de uma forma ou de outra. Meu irmão me achou louco. Minha mãe
achou que tive um pesadelo vívido. Meu pai achou que eu estava confundindo
sonho com realidade. Não contei a eles “dela” ou certamente me julgariam como
loucos.
“Ela”
começou a aparecer com cada vez mais frequência para mim. Nem mesmo dormindo
“ela” me deixava em paz. A minha compaixão por “ela” logo se dissipou, sendo
substituída por um ódio e um medo vorazes. Quando eu estava sozinho, a situação
era pior. Quase sempre “ela” tentava se comunicar comigo, falando que queria me
ter eternamente. Certa vez, enquanto eu estava tomando banho, a porta do
banheiro foi violentamente esmurrada pelo lado de fora e alguém gritava
continuadamente para eu sair. Não seria problema algum, se não fosse o detalhe
de que eu me encontrava sozinho dentro de casa. Outra vez, estando novamente
sozinho, encontrei escrito no espelho do banheiro, a tinta vermelha, os
seguintes dizeres:
Passei a ver coisas voando e meus
pertences começaram a desaparecer. Continuadamente, eu enxergava os escritos
supramencionados em diferentes pontos da casa, como sobre o retrato meu e de
Laura – foto que fora trocada, depois de a anterior ter sido rasgada -, ou no
meu guardarroupa. Barulhos de gemidos e sussurros se tornaram audíveis na
madrugada. Eu não dormia, não comia, não descansava. A exaustão rapidamente
apareceu em meu corpo, deixando-me completamente esgotado. Com toda essa
situação, comecei a ficar louco. Em qualquer lugar da casa eu passei a vê-“la”,
o tempo todo. Não queria mais ficar em casa, passando a ficar até altas horas
da madrugada na rua, vagando como um sem teto. Comecei a citá-“la”
continuadamente e de forma desconexa. Meus pais ficaram sabendo da existência
“dela”, mas acreditaram se tratar de um delírio meu. Chamaram novamente Ana
Laura para me ajudar – e para tentarem identificar se “ela” era uma segunda
mulher que eu conhecera. E foi nesta estada de Laura que tudo aconteceu e eu
vim parar aqui, neste manicômio.
Não me
lembro mais em que dia da semana tudo ocorreu. Minha mente se encontrava
nebulosa e muitos detalhes de minha vida simplesmente apagaram dela – mesmo da
grande importância deste dia para minha vida. Ana Laura se encontrava em minha
residência, onde passaria dez dias, na tentativa de me acalmar. Entretanto, tão
logo chegou ao meu encontro, já percebeu a situação em que me encontrava.
Sentia-me acuado, triste e amedrontado. Não queria ficar dentro de casa, sempre
me assustava – com coisas invisíveis aos olhos dos outros – e comecei a contar
para Laura sobre “ela”. Minha namorada se encontrava deveras preocupada – sabia
da minha condição, contada por telefone por minha mãe, mas ela era
incrivelmente pior do que imaginara. Chegara a conversar com meus pais da
possibilidade de me levar a um psiquiatra e os mesmos já cogitaram tal ideia. O
pior, entretanto, ainda estava por vir.
Era
noite. Lembro-me bem dessa situação. Todos já se encontravam dormindo,
incluindo a mim. Em dado momento, acordei, pois “ela” já se encontrava dentro
de meus sonhos, transformando-os nos mais nefastos pesadelos. Levantei da cama,
acendi a luz do quarto e caminhei em direção à saída do quarto, onde adentrei
na sala principal, virando-me em direção à cozinha, a fim de beber um copo de
água. Repentinamente, eis que escuto um barulho às minhas costas. Meu coração
saltitou feroz no peito. Virei de inopino para trás, onde sobressaltei. Era
“ela”, novamente! E estava carregando Ana Laura pelos braços.
“O que
está fazendo?”, perguntei, assustado. Mas “ela” emudeceu. Nada disse a mim.
Passou por mim carregando Ana Laura. Segurei-a, pelas pernas, impedindo que
“ela” continuasse o seu intuito. “Ela” olhou furiosa para mim – onde me fez
bambear pelas pernas.
“Soooooolte!”,
disse “ela”, com a sua característica voz demoníaca.
“Não”, respondi, firme. Aquilo soou para “ela”
como um desafio. “O que quer com ela?
“Voooocê
é meeeeu!”, “ela” disse. Em seguida, segurou o meu braço esquerdo com
considerável força. Sua mão era gelada – parecia estar encostado em um pedaço
de gelo – e apertava meu braço com tamanha força que eu sentia os nervos e os
músculos romperem. “Ela” me soltou. Fui ao chão, com a mão direita sobre o
local. A dor era pungente; não conseguiria ficar em pé. Aproveitando a ocasião,
“ela” voltou a carregar Ana Laura.
Tentei
levantar o quanto antes, conseguindo-me ficar de pé apenas longos segundos depois.
Fitei o meu braço, onde vi com clareza a marca roxa dos dedos demoníacos
“dela”. Mas não poderia ficar ali parado. Precisava auxiliar Ana Laura, que
certamente corria perigo. Corri a toda velocidade em direção à saída da casa,
passando pela lavanderia e adentrando na parte externa de minha residência. O
local estava incrivelmente escuro, possuindo como uma única fonte de luz a
iluminação artificial oriunda da lavanderia. Estava nublado e era possivelmente
dia de lua nova, pois nenhuma luz oriunda dos céus existia.
Entretanto,
enxerguei-“a” com clareza, ao lado do pé de carambolas, ao fundo no terreno.
Acelerei os passos, atravessando todo o local e sujando o meu pijama de terra.
Aos poucos, fui visualizando o que “ela” estava fazendo: abaixando-se para
pegar algo no chão; uma faca, suja de terra; levantava-a no ar.
“Pare!”,
eu gritei. Estava próximo o suficiente “dela”. Segurei-“a” pelo pulso,
impedindo o seu intento. Entretanto, foi apenas por alguns segundos. “Ela” desferiu
um violento soco em meu rosto, na altura do supercílio direito. Cambaleei. O
meu cérebro começou a rodopiar. Senti um líquido escorrendo pelo meu rosto,
quase adentrando no meu olho. Após, senti um gosto amargo na minha boca.
Quando
voltei a mim, “a” percebi cravando a faca ferozmente no peito de Laura,
continuadamente. Esta soltava um tímido gemido de dor, enquanto grandes
quantidades de sangue esvaíam de seu corpo. Entrei em choque. “Ela” estava
matando Ana Laura na minha frente! E o que eu poderia fazer? Meu cérebro
estagnou, não conseguia reagir. Apenas gritar para que ela parasse. E gritar. E
gritar. Até o dado momento em que as luzes de minha casa acenderam e todos os
que lá residam saíram às pressas.
“O que
está fazendo?”, perguntou a minha mãe, sobressaltada. Meu pai e meu irmão
vieram em nossa direção, desesperados. Postei a abrir a boca para responder,
quando ouvi novamente minha mãe dizer, aos prantos. “Seu maníaco!”.
Sobressaltei-me. “Como assim, SEU MANÍACO?”. Olhei ao redor, no instante em
que, verdadeiramente, sobressaltei-me; meus pulsos tremeram e meu coração gelou
dentro do peito. Era EU quem portava a faca! Era EU quem estava ceifando a vida
de Ana Laura! Era EU o maníaco!
E cá
estou atualmente, neste manicômio judiciário. Fui processado, julgado e
condenado pela morte de Ana Laura. Pelo relato dos meus pais, livraram-me da
cadeia e enviaram-me a este hospital para tratamento de minha mente. Até hoje
aquele dia nebuloso ecoa constantemente em minha mente, batendo e rebatendo, tentando
entender o que aconteceu. Por que fui eu quem ceifou a vida de Laura? E onde
“ela” estava? Aliás, quem, afinal de costas, era “ela”?
Dez
anos se passaram. Aos poucos fui convencido de que “ela” jamais existiu e que
tudo foi obra da minha mente. E de fato foi. Analisando os detalhes, “ela”
somente apareceu para mim. Laura e eu brigamos, por ela jamais aceitar eu mudar
de cidade e seguir os meus pais, mesmo tendo emprego fixo em minha terra. Minha
mente provavelmente utilizou destes acontecimentos para criar a figura “dela”
para atacar Ana Laura, quando, na realidade, era eu quem queria fazer. Quando
fui encontrado por meus pais matando Laura, não possuía nenhum sinal de dedos
ou de soco em meu corpo. Se, de fato, “ela” existisse, não teria condições de
encostar-se a um ser vivo, pois seria um fantasma. “Ela” não existiu, pois
seria ilógico e impossível acreditar no contrário.
Escrevo este relato hoje para que fiquem guardados
os registros de minhas mais vis loucuras, com o intuito de mudar-me daqui para
frente. Escolhi a data de 14 de maio, pois, dez anos antes, eu colocava os meus
pés em Lavras para aqui residir; e daqui jamais saí. Até hoje. Recebi alta
hospitalar e extinção do cumprimento de minha pena. Estou sendo levado neste
exato momento à rodoviária da cidade, para embarcar no ônibus que me levará à
minha terra, onde meus pais me aguardam. Meu irmão não mais lá se encontrava.
Fiquei sabendo que o mesmo se casara seis anos antes e que a cerimônia foi
linda. Que pena que não pude acompanhar. Mas, finalmente, após longos dez anos,
recebi a minha liberdade de volta.
Estou
feliz por ter minha vida de volta. Será difícil eu acostumar no começo com uma
nova rotina, após longínquos dez anos aprisionados. Uma estranha nostalgia
bateu no meu peito quando visualizei a cor azul-claro do muro externo da minha
antiga moradia. Ali, no começo, era o símbolo de uma nova vida, em uma nova
cidade. Mesmo após os fatos, ainda enxergo como ali o símbolo da minha nova
vida nesta cidade. Dez anos se passaram e o local estava parcialmente
modificado. Fiquei a fitar, nostalgicamente, a minha antiga morada,
lembrando-me dos bons momentos em que eu passei ali. Repentinamente, arregalei
os olhos. Meus músculos travaram e meu coração congelou. “Ela” estava na janela
do meu antigo quarto, visualizando o exterior. Ao me fitar, sorriu. Meu Deus! “Ela”
existe!
E pensar que moro próximo a Lavras... Excelente conto!
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