O CEMITÉRIO - Conto Clássico de Terror - Lima Barreto

 


O CEMITÉRIO

Lima Barreto

(1881 – 1922)

 

Pelas ruas de túmulos, fomos calados. Eu olhava vagamente aquela multidão de sepulturas, que trepavam, tocavam-se, lutavam por espaço, na estreiteza da vaga e nas encostas das colinas aos lados. Algumas pareciam se olhar com afeto, roçando-se amigavelmente; em outras, transparecia a repugnância de estarem juntas. Havia solicitações incompreensíveis e também repulsões e antipatias; havia túmulos arrogantes, imponentes, vaidosos e pobres e humildes; e, em todos, ressumava o esforço extraordinário para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento que ela traz às condições e às fortunas.

Amontoavam-se esculturas de mármore, vasos, cruzes e inscrições; iam além; erguiam pirâmides de pedra tosca, faziam caramanchéis extravagantes, imaginavam complicações de matos e plantas – coisas brancas e delirantes, de um mau gosto que irritava. As inscrições exuberavam; longas, cheias de nomes, sobrenomes e datas, não nos traziam à lembrança nem um nome ilustre sequer; em vão procurei ler nelas celebridades, notabilidades mortas; não as encontrei. E de tal modo a nossa sociedade nos marca um tão profundo ponto, que até ali, naquele campo de mortos, mudo laboratório de decomposição, tive uma imagem dela, feita inconscientemente de um propósito, firmemente desenhada por aquele acesso de túmulos pobres e ricos, grotescos e nobres, de mármore e pedra, cobrindo vulgaridades iguais umas às outras por força estranha às suas vontades, a lutar…

Fomos indo. A carreta, empunhada pelas mãos profissionais dos empregados, ia dobrando as alamedas, tomando ruas, até que chegou à boca do soturno buraco, por onde se via fugir, para sempre do nosso olhar, a humildade e a tristeza do contínuo da Secretaria dos Cultos.

 Antes que lá chegássemos, porém, detive-me um pouco num túmulo de límpidos mármores, ajeitados em capela gótica, com anjos e cruzes que a rematavam pretensiosamente.

Nos cantos da lápide, vasos com flores de biscuit e, debaixo de um vidro, à nívea altura da base da capelinha, em meio corpo, o retrato da morta que o túmulo engolira. Como se estivesse na Rua do Ouvidor, não pude suster um pensamento mau e quase exclamei:

— Bela mulher!

Estive a ver a fotografia e logo em seguida me veio à mente que aqueles olhos, que aquela boca provocadora de beijos, que aqueles seios túmidos, tentadores de longos contatos carnais, estariam àquela hora reduzidos a uma pasta fedorenta, debaixo de uma porção de terra embebida de gordura.

Que resultados teve a sua beleza na terra? Que coisas eternas criaram os homens que ela inspirou? Nada, ou talvez outros homens, para morrer e sofrer. Não passou disso, tudo mais se perdeu; tudo mais não teve existência, nem mesmo para ela e para os seus amados; foi breve, instantâneo e fugaz.

Abalei-me! Eu que dizia a todo o mundo que amava a vida, eu que afirmava a minha admiração pelas coisas da sociedade — eu meditar como um cientista profeta hebraico! Era estranho! Remanescente de noções que se me infiltraram e cuja entrada em mim mesmo eu não percebera! Quem pode fugir a elas?

Continuando a andar, adivinhei as mãos da mulher, diáfanas e de dedos longos; compus o seu busto ereto e cheio, a cintura, os quadris, o pescoço esguio e modelado, as espáduas brancas, o rosto sereno e iluminado por um par de olhos indefinidos de tristeza e desejos…

Já não era mais o retrato da mulher do túmulo; era de uma viva, que me falava.

Com que surpresa, verifiquei isso.

Pois eu, eu que vivia desde os dezesseis anos, despreocupadamente, passando pelos meus olhos, na Rua do Ouvidor, todos os figurinos dos jornais de modas, eu me impressionar por aquela menina do cemitério! Era curioso.

E, por mais que procurasse explicar, não pude.


Comentários

  1. Barão, o Lima Barreto e o João do Rio tem vários contos que tranquilamente se enquadrariam no gênero terror.
    Recentemente, ganhei de uma amiga uma versão em papel, um exemplar ,um livro usado de contos do Lima Barreto. Além do virtual eu leio bastante em papel também, quando ganho ou compro em sebos, já que os novos são caros pro meu bolso. Inclusive o conto "O bebê de tarlatana rosa" , do João do Rio, é puro terror. Ocorre que esses autores clássicos da literatura brasileira, embora tenham contos de puro terror, a crítica, os intelectuais e os meios acadêmicos, que em sua maioria tem preconceito contra esse gênero e o da FC também, por achá-los subliteratura, talvez estupidamente para salvaguardar esses autores ou por interesses editoriais gananciosos, não assumem que tais contos são de terror mesmo. Mais recentemente, na literatura moderna atual brasileira, a Lygia Fagundes Telles também tem contos de terror. Por ser famosa e estar, se não me engano, na Academia Brasileira de Letras, dificilmente os críticos colocam esses contos dela como sendo de terror. Mas o são, sim! Veja que o terror está presente inclusive nesses autores brasileiros consagrados.
    Nos dias atuais então, com esse discurso politicamente correto e o país dividido como está, o genêro terror virou sonho diante do terror da realidade cotidiana brasileira...me lembro nos anos 80 e começo dos 90, passavam filmes de terror na sessão da tarde. Me lembro do Zé do Caixão reclamando que perdera o emprego nas tardes da tv Bandeirantes (ele apresentava à tarde filmes de terror) por causa duma juíza que proibiu filmes de terror passarem à tarde. Estava começando o discurso politicamente correto no Brasil...hoje tudo é motivo para "cancelamentos". Nos anos 70, 80,90 jamais se imaginaria que haveria tanta censura como há hoje.

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  2. E essa estátua que ilustra o conto, que fantástica! Os escultores realmente são fantásticos! Hoje em dia, a arte da escultura, por onde anda a arte escultura? Adoro esculturas e estátuas assim, sombrias.

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    1. Recomendo o canal.
      https://www.youtube.com/@colecionadordemedo

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