O CADÁVER ARREBATADO - Narrativa Clássica de Horror - Autor anônimo do início do séc. XX
O CADÁVER ARREBATADO
Autor anônimo do início do séc. XX
Tradução de autor anônimo do séc. XX
O conde Z. vivia no castelo de S. Monique, situado num recanto solitário do litoral bretão, entre a ponte de S. Mathieu e Brest.
Estava malquistado com a família que, emuralhada em preconceitos sociais, não lhe perdoava o ter ele desposado uma mulher que não era rica nem nobre, mas que era bela e a quem amava.
Reportemo-nos ao passado do fidalgo. Quando aproximadamente contava 35 anos, o conde trouxera das suas viagens na Malásia um orangotango, captado aos seus, na mais tenra infância.
Numa caçada, matam-se dois velhos macacos — Um macaquinho adotado pelo caçador.
Numa batida de caça, organizada com o concurso de oficias holandeses, no seio das florestas de Java, o viajante, empolgado por essa paixão irracionada, estúpida de matar, fulminara, com uma bala no coração, o chefe de uma família de macacos.
Duas outras balas tinham prostrado a mãe, macaca, vibrado de um grande amor pelo filho, um simiozinho pequenino, com o qual, apertado contra o peito, subira a uma alta árvore para fugir à sorte que o caçador lhe destinava.
O assassino, tendo assim morto os dois velhos macacos, agarrou no macaquito, adotou-o, fê-lo batizar civilmente e criou-o a mamadeira.
Depois, de volta à Europa, trouxe-o consigo.
Muitos anos decorreram. O símio crescera muito, sempre em companhia daquele que matara os seus pais.
O conde casara e levava na sua residência senhorial a vida de um fidalgo provinciano. Com ele viviam, além de sua esposa Ana Maria, doze empregados.
O funeral da condessa— Gargalhadas macabras — Vultos misteriosos no cemitério.
Nenhumas relações mantinha com a vizinhança e só saía do seu castelo para ir com a condessa à missa dos domingos.
Ana Maria morreu há dias. E foi pela sua morte que se produziu em S. Monique um acontecimento memorável e impressionante como um conto de Edgar Poe.
Na noite seguinte ao dia do funeral da condessa, o sacristão do lugar, Maciou, voltava de casa do seu velho amigo, o pai Trennec.
Espessas nuvens velavam por instantes a Lua. O vento soprava ao largo.
Na sombra, ouvia-se o murmúrio das ondas chocando-se na praia.
Maciou, que caminhava num passo firme pela estrada da ponte de S. Mathieu a Plougouvelin, tropeçou, de súbito, num calhau do qual a escuridão o impedira de se livrar. Escapou-lhe dos lábios esta exclamação pouco própria de um homem da igreja:
— Oh! Com os diabos!
Logo após a última sílaba, ouviu um riso indescritível, umas gargalhadas macabras e arrepiantes, que partiam da sombra, perto dele. Maclou começou a tremer como varas verdes, lívido, horrorizado.
Dois vultos misteriosos num cemitério — O pânico prostrando um religioso.
A Lua, surgindo de uma sombra de nuvens, iluminou o local. E o sacristão pôde, então, contemplar um espetáculo terrificante.
Diante dele, cavalgado no muro do cemitério, estava um vulto negro.
Era humano? Por instantes, Maiou, cheio de pavor, horrivelmente perturbado, não o acreditou, apesar de o vulto lhe parecer ter duas pernas, dois braços que se lhe afiguravam imensos e uma cabeça cujas linhas não podia definir.
Cúmulo de horror! Esse vulto tinha estreitamente apertado contra si um outro vulto não menos fantástico, todo branco — uma mulher lívida, de longos cabelos loiros esparsos, envolta num sudário.
Persuadido de que se encontrava em presença do Diabo, que viera naturalmente empolgar a alma de alguma grande pecadora, Maclou prosternou-se, fechando os olhos e invocando Jesus, a Virgem e todos os santos conhecidos e desconhecidos.
Depois, como uma nova gargalhada retinisse, fantástica e pavorosa, o sacristão desmaiou pela comoção do pânico.
Na pesquisa do diabo — Sonho ou bebedeira? — Uma sepultura esvaziada.
Ao amanhecer, um camponês, o pai Barnabé, deu com aquele corpo jazendo ali.
Aproximou-se-lhe e sacudiu-o violentamente, depois de estupefato ter reconhecido nele o sacristão.
Maclou voltou a si e, ainda tremendo de pavor, contou o que vira ali no princípio da noite.
O campônio comentou:
—Tu bebeste, Maclou?
—Eu?! Há mais de trinta anos que não sei o que é uma bebedeira!…
—Então sonhaste! E, para provar-te, vou entrar contigo no cemitério. Se o Diabo ali tiver entrado para arrebatar algum defunto, deveremos encontrar traços, sinais que indiquem a sua passagem.
Maclou quis, em vão, resistir; mas o aldeão agarrou-o pelo braço e arrastou-o para o cemitério.
A porta gradeada da necrópole nunca estava fechada à chave.
Barnabé empurrou-a e, arrojadamente, penetrou no campo mortuário, rebocando sempre com força o seu companheiro.
Subitamente, este parou de novo aterrado, apontando com um dedo um canto do cemitério.
Aproximando-se dali, percebia-se numa campa, jazendo por terra uma cruz mortuária, tendo no extremo inferior o escudo onde se podia ler o nome de Maria Ana, condessa de Z.
Era a sepultura provisória da nobre dama, inumada pela noite.
Assim que a triste cerimônia do funeral se acabou, o conde partira para Brest, sentindo o desejo de abandonar, ainda que fosse só por algumas horas, aquele lugar onde tudo lhe recordava a morte de uma companheira estremecida.
Maclou e Barnabé ficaram petrificados diante da cruz arrancada, a cova vazia revolta e juncada de pétalas arrancadas às coroas de flores naturais que na véspera tinham ali sido depostas.
O cadáver da condessa desaparecera!
Este desaparecimento causou uma verdadeira revolução na localidade e proximidades. Formaram-se logo duas opiniões, entre os habitantes, acerca da desaparição misteriosa: uma, a dos fanáticos, afirmava que a condessa fora levada para o inferno por Satã; outra, a dos céticos, atribuía a horrível profanação a qualquer malfeitor vagabundo, notívago, dublê de sátiro.
Um cadáver levado a uma sebe — A investigação do delito de um símio por um policial.
Tanto uma como outra eram erradas. Depois de vários caminheiros sem domicílio, dos que pela noite atravessam as povoações, terem sido injustamente presos por suspeitos, um policial hábil descobriu que o misterioso arrebatador do cadáver fora o orangotango, o Jocko.
Fora ele que, seguindo com a vista do telhado do castelo o funeral, se tinha dirigido horas depois para a sepultura.
Como sentira sempre um afeto muito acentuado pela condessa, queria “amá-la”, agora que ela estava fora do castelo. Para isso, revolveu a cova e tirou-lhe o caixão. Abriu-o e arrebatou o cadáver que a polícia fora encontrar numa inextrincável sebe, no meio de um bosque próximo, e que depois foi conduzido para uma sepultura digna de condessa.
O conde Z. desfechou um revólver contra o crânio do macaco, matando-o pela sua repugnante profanação do cadáver da mulher que muito amava.
Declarou, em seguida, que fará todas as diligências humanamente possíveis para nunca mais ver um símio.
E o caso não é para menos, se é que o caso é verdadeiro...
Fonte: “A Notícia”/SP, edição de 24 de dezembro de 1913.
Fizeram-se breves adaptações textuais.
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