O BARBEIRO DE NUREMBERGUE - Conto Clássico de Terror - Robert Macnish

O BARBEIRO DE NUREMBERGUE

Robert Macnish

(1802 – 1837)

Tradução de O. J.1

(Séc. XIX)



Ainda repercutia no espaço a última badalada das dez horas que o grande relógio da municipalidade acabava do bater.

O barbeiro da universidade do Nurembergue, depois de haver raspado a barba de uma dúzia de estudantes, preparava-se para o repouso da noite, quando, de repente, a porta da loja se abriu para dar entrada a um homúnculo robusto e bem fornido de carnes, que para ele se dirigiu agilmente. A rotundidade do seu abdômen faria honra ao mais digno burgomestre. As maneiras e a linguagem deste personagem revelavam um espírito desassombrado de penas e isento de cuidados. Vinha singularmente trajado. Um chapéu oleado de abas largas deitava-lhe sombras sobre os olhos; vestia calça preta de feição antiga e uma casaca parda com abotoaduras de cobre. As melenas pretas caíam-lhe sobre as espáduas, espessos e eriçados bigodes cobriam-lhe o lábio superior, e a barba hirsuta acusava pelo menos cinco dias de data.

Este estranho visitante endereçou sua saudação ao barbeiro, sentou-se sem cerimônia na poltrona dos fregueses e, correndo a mão pela barba, disse:

—Podes barbear-me?

—Como, meu senhor? — respondeu o barbeiro, como se não tivesse ouvido a pergunta.

—Pergunto se podes barbear-me — retrucou o homúnculo, alterando a voz. — Por acaso estaria eu aqui para outro fim?

O barbeiro era um sujeito alto, magro, de pernas finas, orçando por seus 50 anos. A coragem nunca fora o lado brilhante de seu caráter, mas tinha suficiente dignidade pessoal para não consentir que um estranho o viesse insultar no próprio lar doméstico. À impertinente interpelação de seu novo freguês, opôs ele uma firmeza fora do comum.

—Perguntas, senhor, se e eu posso barbear-te — disse ele, continuando a afiar uma navalha quo tinha na mão. — Respondo-te que não tenho dificuldade em te raspar a barba, se bem que a noite vai alta. Não será mais penoso barbear-te do que fazer o mesmo a outro qualquer, apesar de que este pelo que te eriça o queixo pareça-se algum tanto com as puas de um ouriço ou qualquer outro animal da mesma espécie.

—Ainda bem que vais me barbear — respondeu o nosso personagem, repoltreando-se na cadeira, desembaraçando-se da gravata, o pondo-se em altitude de receber os ofícios do barbeiro.

Este encaixou os óculos no nariz pontiagudo e, estendendo o queixo com gesto irônico e malicioso, fixou no homúnculo um olhar cheio de satisfação. Rompendo, enfim, o silencio, disse:

— Eu afirmei, senhor, que posso barbear a quem quer que seja, mas…

—Mas, o quê? — murmurou o outro, descontente.

—Mas não posso barbear-te.

E continuou a amolar a navalha, sem fazer o menor caso do recém-chegado.

Este manifestou profundo espanto de ouvir semelhante resposta, e fitava no barbeiro olhos em que transluzia a surpresa de envolta com a curiosidade.

Este sentimento, porém, foi logo substituído pela cólera. As faces do desconhecido entumeceram-se tanto que imitaram duas enormes cidras.

—Não podes barbear-me! — bradou ele, vomitando dos pulmões e das bochechas a massa de ar que as dilatava.

Terrível foi a explosão desta borrasca. O barbeiro tremia como varas verdes.

—Não me podes fazer a barba? — rugiu segunda vez o nosso homem. E o silêncio continuava.

—Não me podes fazer a barba? — urrou pela terceira vez, com voz de tenor, atirando-se para longe da poltrona com um pulo de que ninguém o julgaria capaz à vista de sua obesidade.

O barbeiro recuou aterrado e, sem saber o que fazia, pousou sobre a lareira a navalha e o couro em que a estava afiando.

—Queres insultar-me dentro de minha casa? — murmurou com toda a coragem que pôde chamar em seu auxílio.

—Pelas barbas de Netuno! Quem fala aqui em te insultar? Quero fazer a barba. Que há nisto do extraordinário?

—Não faço a barba a ninguém depois das dez horas — replicou o barbeiro. — Além disto, eu não trabalho senão para os professores e estudantes da universidade. O reverendo Dr. Anhelat e toda a congregação acadêmica proibiram-me de meter a navalha em rosto que pertença a outra classe.

— Quem diabo é o Dr. Anhelat? — perguntou o desconhecido com acento de desprezo.

—É reitor da universidade e professor de filosofia moral.

— E este pedante Anhelat dá ordens deste jaez? Não me sobra tempo para aqui passar a noite. Numa palavra, se teimas em não me raspar a barba, eu me encarregarei de barbear-te de uma maneira assaz enérgica.

E meu dito, meu feito. Eis que o homúnculo estende o braço, agarra o barbeiro pela ponta do nariz e o prega imóvel na cadeira que deixara vazia.

O barbeiro, atônito pela rapidez do movimento, encarava surpreso o autor de tão despejada audácia, e não volveu ao seu estado normal senão quando sentiu a fria e úmida impressão do pincel ensaboando. Quis erguer-se, mas o braço vigoroso e inflexível do homúnculo o reteve no mesmo lugar. Não teve o barbeiro outro remédio senão volver o rosto alternadamente à direita e à a esquerda, a fim de ver se escapava à ação do fatal pincel. Inútil esforço. A untura saponácea besuntava-lhe a testa, o nariz, as faces e as orelhas. Queria gritar, e não lograva fazê-lo, porque o nosso homenzinho enchia-lhe a boca de espuma e continuava o seu mister com crescente e infatigável energia. Com a esquerda, apertava a gasganete do barbeiro, e com a direita manejava o pincel, soltando gargalhadas estrepitosas, tripudiando de prazer e mofa ante a cena que se lhe exibia aos olhos.

Finalmente, o babeiro pôde proferir algumas palavras, pedindo misericórdia ao seu opressor com toda força dos pulmões e prometendo barbeá-lo a qualquer hora lhe aprouvesse, mesmo contra as ordens do Dr. Anhelat e da congregação acadêmica.

Esta declaração valeu-lhe alguns momentos de trégua. Ergueu-se cambaleando e enxugou a espuma que atestava a humilhação, enquanto o homúnculo se espojava na poltrona quase arrebentando de riso.

O barbeiro, assombrado, preparava os instrumentos para a operação que ia fazer, ainda que não tivesse a intenção de pagar-lhe na mesma moeda. Para recobrar-se do abalo de que fora vítima, empregava maior vagar nos movimentos. Depois de afiada a navalha, atou um guardanapo ao queixo do desconhecido, e ia começar a ensaboar-lhe a cara, quando o freguês bradou-lhe:

—Espera!

O barbeiro, aterrado como um gatuno pilhado em flagrante, recuou alguns passos, lançando-lhe um olhar de mal dissimulado medo.

—Atenção! Vê que não me cortes o queixo! — disse o estrangeiro energicamente.

—Meu ofício é raspar a barba e não decepar o pescoço — respondeu o barbeiro humildemente.

—Por certo que sim; mas não tenho muita confiança em tua palavra. Assim, pois, cautela. Se me cortares o pescoço, faço-te saltar os miolos!

E, introduzindo a mão numa das largas algibeiras da casaca, sacou uma pistola, engatilhou-a e colocou-a numa cadeira a seu lado.

—Podes começar — prosseguiu — e lembra-te que se me arranhares de leve o queixo, ou se me deixares ficar com um fio do cabelo, estraçalho-te o crânio. Estás advertido.

À vista da horrível pistola, dobrou o terror do barbeiro. Tremia-lhe fortemente a mão; não obstante, pôs a preparar o sabão, gastando nesse mister o décuplo do tempo ordinário. Receava aproximar a navalha à cara do desconhecido e, por isso, resolveu-se a ensaboá-lo indefinidamente, de preferência a arriscar-se a ter a cabeça esmigalhada por urna bala. Esta demora deu tempo a que a sua mão recobrasse a firmeza perdida. O estrangeiro não se desgostou de tão incessante ensaboar; pelo contrário, parecia recobrar o bom humor sob a titilação agradável do pincel; e, pondo-se a assoviar prazenteiro, soprava a espuma dos lábios sobre a face do barbeiro com o gesto mais satisfeito do mundo.

Meia hora se escoara no trabalho preliminar do ensaboamento, que parecia comprazer ao homúnculo. Longe de se impacientar, ele continuava a assoviar e a cantarolar, com grande desgosto do nosso barbeiro, que se via em apuros para correr ligeiramente o pincel sobre tão móvel fisionomia.

Havia cerca do três quartos de hora que ele friccionava o rosto do singular freguês, sem entrever o termo de seu trabalhar incessante; o homúnculo ria-lhe sempre à cara, e o eterno estribilho “continua a ensaboar” saía-lhe a cada passo da boca quando o braço do barbeiro pretendia largar o pincel.

O barbeiro recordava-se temeroso do castigo de sua primeira resistência, e a fatal pistola permanecia ameaçadora ante seus olhos turvados.

É impossível descrever as angústias do pobre barbeiro. Como aquele que girasse no âmbito do um circulo mágico impedido por mão poderosa, as forças estavam prestes a abandoná-lo. Se parava um momento, o eterno “continua a ensaboar” restrugia-lhe aos ouvidos; se empunhava a navalha, o mesmo brado o obrigava a largá-la e, se recusasse barbear o seu freguês, corria o risco de ser por este barboado.

—Continua a ensaboar! — trovejava o estrangeiro enterrando os dedos nos anéis de suas espessas guedelhas, e escancarando no seu rir descompassado umas fauces capazes de engolir a Lua cheia.

—Não posso mais! — suspirou finalmente o barbeiro, aniquilado de fadiga, deixando descair as mãos amortecidas.

—Não podes mais? Vou curar-te do cansaço. Toma algumas gotas deste maravilhoso licor; é o elixir de Mefistófeles, o amigo do Dr. Fausto.

Juntando a ação à palavra, sacou da algibeira um frasco de licor vermelho, desarrolhou-o e, antes que o barbeiro fizesse qualquer gesto de resistência, forçou-o a tragar metade de seu conteúdo.

—Agora, continua a ensaboar; não há nada como isto!

Confundido pela rapidez desta ação, o pobre-diabo não teve tempo de refletir e, umectando de novo o pincel no sabão, continuou no moto continuo a que fora forçado. Reanimado pelo licor, desenvolvia nas mãos o vigor que lhe aquecia os membros, enquanto o homúnculo gritava sempre entre mil trejeitos:

—Continua a ensaboar!

O relógio dá universidade já era onze horas, depois onze e meia, meia-noite e não tardava a soar. O barbeiro continuava sua incessante tarefa e o desconhecido não parava com as eternas vociferações:

—Continua a ensaboar!

Tão profunda tornou-se a obscuridade do quarto que o barbeiro apenas distinguia o pincel. A lâmpada, como um meteoro moribundo, lançara os últimos clarões de sua luz vacilante e expirara. Os pálidos raios da Lua espancavam fracamente as trevas do estreito recinto em que esta cena se passava; restavam apenas na lareira alguns carvões acesos, que derramavam um calor enfraquecido e reflexos avermelhados. As angústias do barbeiro cresciam com a obscuridade; mal podia suster nas mãos trêmulas o pincel, que ora oscilava no vácuo, ora roçava pela cara do desconhecido; mas, em breve, a obscuridade tornou-se completa, e o relógio deu meia-noite, sem que o freguês se mostrasse fatigado, e ele repetia sempre o seu terrível estribilho:

—Continua a ensaboar!

Alguns instantes depois, começou a dormitar e a ressonar. De vez em quando, um longo murmúrio “continua a ensaboar” saía-lhe das cavernas do peito como do fundo do um sepulcro. E as fôrmas das cabeleiras da loja repetiam as mesmas sílabas com o mesmo acento e lentidão.

Uma nuvem que passava obumbrou a face da Lua e deixou o quarto sepultado em plena escuridão; então, apoderou-se do barbeiro inexprimível terror.

Os fundos de sua loja davam para o cemitério da igreja, cercados por todos os lados de altas muralhas, e que era regularmente fechado todas as noites. Tudo contribuía a redobrar o horror de sua posição.

Entretanto, ganhando forças na mesma intensidade do sofrimento, volveu de súbito as costas para o seu algoz e deitou a correr em direção à porta, no intuito de fugir.

Apenas, porém, dera alguns passos, ficou petrificado ante um novo rugido do homúnculo, que do novo o atormentava com o estribilho:

—Continua a ensaboar!

Os gritos tornaram-se progressivamente mais aturdidos e violentos.

—Por certo que não estais fatigado, não é assim? Queres nova libação de meu elixir?

—Precisamos mais de luzes que do elixir — respondeu a custo o barbeiro.

—Pois continua a ensaboar, que não nos faltará luz. Aqui tens dois archotes que te darão claridade suficiente.

O barbeiro recuou horrorizado. No meio das trevas, viu cintilar dois olhos flamejantes, que sobre ele se cravaram. Eram os olhos do homúnculo, que vibravam um fulgor semelhante ao dos espectros que vagam à noite pelos cemitérios. Ao reflexo desse luzir medonho, as faces do pavoroso personagem tingiram-se de um e vermelho carmesim, que se destacava fantasticamente dentre a espuma de sabão que as branqueava; a coma hirsuta parecia um feixe de negras serpentes; e quando as gargalhadas estridentes o forçavam a descerrar os lábios, o interior de sua enorme boca semelhava o orifício de fornalha ardente.

Esse boqueirão abrasado exalava um hálito sufocador e sulfúreo como uma emanação do inferno.

Tão horrendo espetáculo gelou o sangue nas veias do mísero barbeiro, que só viu na fuga a última tábua de salvação. Arrojando para longe o pincel, esforçou-se por alcançar o limiar da porta, murmurando na angústia de seu desespero:

—Senhor, senhor, misericórdia, que fiz a barba ao diabo!

Concentrando as forças, atirou-se através das ruas de catacumbas do cemitério. Mas ainda não tinham decorrido trinta segundos quando ouviu de novo magoar-lhe os tímpanos o riso medonho do desconhecido, e o grito ainda mais medonho:

—Continua a ensaboar!

Ele viera-lhe no encalço; já o barbeiro sentiu perto o estrépito do seus passos; quis duplicar de esforço e correu para a torre do campanário, que estava aberta. Entrou, mas o seu perseguidor o acompanhava de perto. Galgou a escadaria da torre com a rapidez do relâmpago. No alto havia uma porta que se abria sobre um terraço exterior; se alcançasse essa porta, fechá-la-ia para vedar a entrada ao seu inimigo e estava salvo. Mas, quando pisava na soleira do terraço, o homúnculo cosia-se a ele e entrava ao mesmo tempo. Por cima deles, a cento e trinta pés do altura, campeava a agulha da torre; por baixo, estendia-se um abismo ainda mais profundo. O barbeiro sentia os dentes ranger e seus joelhos dobravam-se de terror.

—Ah! Ah! — exclamou o desconhecido. — Que queres fazer, meu velho? Continua a ensaboar até as seis horas da manhã! Pega o pincel e na caixa do sabão. Mas que fizeste desses objetos?

—Atirei-os fora — gaguejou o barbeiro.

—Deveras! Sinto também minhas cócegas de te atirar daqui abaixo. Um salto do alto deste campanário seria coisa bem curiosa de ver-se ao clarão de tão belo luar.

Assim dizendo, travou do barbeiro pelo nariz.

— Misericórdia! — gritava o mísero. Mas o homúnculo, surdo às súplicas, levantou-o sem dificuldade e o suspendeu com o braço estendido por cimo do abismo.

É mais fácil julgar que experimentar as angústias do pobre homem. Ele se agitava, estendendo para todos os lados os longos braços como uma aranha em tortura; exalava gritos horríveis, e pedia misericórdia em termos tão distintos quanto o permitia a posição aflitiva em que jazia, e prometia barbear o homúnculo até o último momento de existência. Pintava-lhe o abandono em que deixaria sua mulher, e empregava os mais patéticos argumentos para enternecer o coração de seu verdugo, mas debalde. O homúnculo era de bronze e, em vez de se deixar comover, abriu o polegar e o índex que sustinham o barbeiro, e este começou, através dos abismo do espaço, uma queda de cento e trinta pés, ora volteando como um volante, ora com a cabeça, ora com os pés, para baixo.

Enquanto assim cambalhotava, via de vez em quando seu inimigo em cima do terraço, debruçado sobre o abismo com a face branqueada de espuma de sabão, apertando as ilhargas, e rindo às gargalhadas, enquanto que da boca saía rapidamente o eterno “continua a ensaboar!”.

Mas o que havia de mais medonho nesse quadro era o coruscar daqueles olhos, que pareciam dois tocheiros fúnebres para alumiar-lhe a queda. Ao aproximar-se da terra, a sensação que experimentava o barbeiro tornou-se horrível de ansiedade. O corpo se lhe horripilava convulsamente, o peito oprimido ofegava e respirava a custo. Ele se enroscava como um caracol nas mais diminutas dimensões.

Estava iminente o momento em que ele ia ser esmagado. Entretanto, à proporção que se aproximava da terra, mais lento era o movimento descendente; as leis da gravidade falhavam desta vez. Finalmente (coisa extraordinária), tão vagaroso se tornou o impulso que o barbeiro julgou-se equilibrado no ar. Talvez que algum bom anjo, comovido de piedade pelas súplicas ferventes do mísero, o houvesse amparado nos braços. Assim, em vez de se achar esquartejado no lajedo, sentiu-se, ao acordar, docemente reclinado no leito e então conheceu com grande efusão de júbilo que apenas fora ludíbrio de um mau sonho.


Fonte: “O Observador”/MA, edição de 23/10/1856.

NOTA:

1Trata-se de tradução indireta, a partir do francês. Malgrado o texto francês, sem mencionar o autor, refira-se a Nurembergue (cf. Collin de Pancy, Légendes des Espirits et des Démons), o original de Macnish, de 1825, reporta-se a Gotinga (Göttingen).

 

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