AS IMIGRANTES - Narrativa Clássica Cruel - Iracema Guimarães Vilella

AS IMIGRANTES

(Crônica)

Iracema Guimarães Vilella

(1875 – 1941)


Os países novos, como o nosso, são como grandes hospedarias onde vive reunida gente a mais diversa, chegada dos pontos mais longínquos. Na vida, para nós quase sempre misteriosa, do imigrante, há frequentemente uma razão dramática a impeli-lo à expatriação. A miséria e a ambição trazem-nos as grandes legiões humildes dos camponeses e dos operários, gente de campo e de fábrica. Mas os outros? Há os imigrados políticos, os que se sacrificam a abandonar a pátria para guardar, intacta, a sua fé, como Rybeirolles1, como os artistas franceses que D. João VI contratou para inaugurar o ensino das Belas Artes. Ha os polacos e os judeus, que fogem às perseguições da Rússia, e os sírios católicos, que fogem dos morticínios da Turquia. Mas há também os criminosos evadidos dos cárceres e afugentados pela polícia e aqueles que nunca cometeram delitos, vítimas dolorosas de seu destino, que vão procurar em paragens distantes, sob um céu novo, numa terra estranha, divorciados de tudo o que amavam, o esquecimento de imensas amarguras.

Eu olho sempre, com uma piedade triste, para as crianças imigradas, condenadas à perda das carícias maternas e que o Brasil vai enriquecer ou vai devorar, de quem vai fazer lobos ou ovelhas. Mas não é só para as crianças que a minha ternura se volta, compassiva. Há mulheres que emigram, sozinhas. São as náufragas da vida, as sobreviventes de terríveis, de tremendos, de lancinantes sinistros, as mortas-vivas, que sobem as escadas de um transatlântico, se confundem com os párias, atravessam os mares olhando tristemente as ondas como se olhassem um cadáver, desembarcam na terra estrangeira e vêm lutar pelo pão… como Deus quer!

Observem a mulher estrangeira. Fitem-lhe bem os olhos. Interroguem-na. Mas não; é melhor não a interrogarem. Não a façam chorar. Não bulam na sua grande ferida!

Seria preciso um Dostoiévski para fazer a patética biografia dessas mártires, que têm o pudor sagrado das suas mágoas, dessas condenadas ao suplício do silêncio, que ninguém sabe de onde vieram e que frequentemente alimentam o noticiário trágico dos jornais com as suas alucinações de desespero.

Há dias, era uma dessas mártires anônimas que se aproximava do cães, ali no fim da avenida, pousava no parapeito uma bolsa onde se encontraram retalhos de jornais, anúncios em que se pediam criadas, professoras, governantes — toda a historia da sua via-sacra pungente na luta pela subsistência! — e se lançava ao mar, como uma esquecida de Deus, procurando na morte o alívio dos seus transes.

E como é fácil reconstituir aproximadamente, por aqueles retalhos de jornal, a sua agonia! As portas a que ela bateu, suplicando trabalho, pão e abrigo! As recusas que a enxotavam para a rua! As peregrinações através da imensa cidade desconhecida! E nem um olhar amigo, nem o conforto de uma esperança, ninguém a quem abraçar, ninguém diante de quem possa chorar! Numa cidade onde vivem um milhão de criaturas humanas, essa criatura humana vagueava sozinha, sem conhecer ninguém! Já não tem forças para caminhar. Vai, de olhos baixos, pensando no passado, no lar perdido, na pátria que não voltará mais a ver. Ela teve pais, uma mãe que a criou e a embalou, talvez irmãos, talvez marido, talvez filhos… Talvez a tivessem amado… Talvez ela tenha amado alguém, pois que amar ou ser amada é o destino cruel ou venturoso de toda a mulher, fonte de suas delicias e de seus infortúnios. E ela recorda as horas boas e as horas aflitas, as venturas e as amarguras.

Chove. O vento agita as águas do mar. E ela olha o mar convulso e caminha para ele, como uma morta que caminhasse pelo seu pé para o túmulo... Horas depois, um cadáver nu — pois que o mar a despira, convertendo-a na estatua inanimada da miséria humana — flutua... Morta, ela tem, emfim, um abrigo: uma cova.

E tantas como ela! Quem não estremeceu ao ler nos jornais a história dessa outra imigrada louca, a quem chamaram “A mulher misteriosa”, que vagueava altas horas da noite pelas ruas, e que a polícia acabou por prender! Levaram-na para a delegacia. Soturna, muda, passiva, sem um só gesto de resistência, ela deixa-se conduzir. Tirita de frio. Está encharcada pela chuva. Os cabelos louros emaranhados compõem-lhe um aspecto trágico. É a Ristori2 da desventura. Interrogam-na. Ela fita no delegado os seus profundos olhos azuis, calada. De quando em quando, os seus lábios brancos descerram-se e ela sorri. Falam-lhe em francês, em inglês, em alemão, sem que ela responda, guardando, inviolável, na sua loucura, o segredo do seu infortúnio. Que desgraça tremenda destruiu aquela razão, emudeceu aquela mulher e a converteu numa esfinge? Que procurava ela, de noite, sob a chuva, pelas ruas desertas? Atrás de que saudade andava ela, como um fantasma, com os seus olhos azuis estupefactos, com os seus cabelos louros em desalinho? Mistério! São inúteis todas as solicitações e todos os estratagemas com que a curiosidade policial procura arrancar o segredo da vagabunda trágica. Ela sorri docemente, com uma expressão abstrata e atônita, para aqueles homens que a interrogam e obstinadamente se cala, absorvida na sua tragédia interior, deixando-se conduzir para o cárcere e para o hospício, dócil e indiferente.

Como ficar insensível perante estes espetáculos pungentes e dilacerantes? Como não pensar com piedade nessas vítimas do desamparo? Só a mulher compreende a sua própria fraqueza. Só a mulher pode sentir em toda a sua intensidade o horror do suplício a que estão condenadas essas náufragas sociais, que acabam no suicídio ou na loucura.

E diante da inutilidade de quaisquer esforços para socorrer essas abandonadas, para proteger essas míseras, meu coração fraco estremece e meus olhos se embaciam de lágrimas. Se fora possível desvendar todo o sofrimento feminino, ele espantaria o mundo, pois que a mulher, mãe da vida, e talvez em castigo de criar a vida em seu seio, é a grande vítima dolorosa, sobre cuja débil cabeça a Desventura descarrega o seu martelo de bronze!


Fonte: “Revista da Semana”/RJ, edição de 28 de outubro de 1916.

Ilustração: Angiolo Tommasi (1858 – 1923).


Notas:

1Charles Ribeyrolles (1812 - 1860) foi um jornalista francês, autor do livro Brasil Pitoresco (1859), para cuja publicação contou com o apoio financeiro do imperador Pedro II. Faleceu no Rio de Janeiro.

2Possível referência a Adelaide Ristori (1822 – 1906), famosa atris dramática italiana.

 

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